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Deverei velar pelo outro?: suicídio, estigma e economia dos cuidados
Deverei velar pelo outro?: suicídio, estigma e economia dos cuidados
Deverei velar pelo outro?: suicídio, estigma e economia dos cuidados
E-book214 páginas4 horas

Deverei velar pelo outro?: suicídio, estigma e economia dos cuidados

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Sobre este e-book

De que maneiras nosso gesto de velar, cuidar – ou na recusa de fazê-lo – impacta na morte de outras pessoas? Esta responsabilidade ética e política nos conduz a pensar nas múltiplas representações que fazemos das relações entre vida e morte. Os modos como incitamos, produzimos ou permitimos que alguns tipos de morte ocorram nos conta também sobre as maneiras como valoramos a vida. Nos termos do livro, nossas políticas de morte determinam e são determinadas pelas éticas da vida que sustentamos. E como essas representações não são meramente individuais, todo o risco do que neste livro se descreve monta-se como uma armadilha prestes a disparar em qualquer direção. Ninguém está a salvo de ser capturada por essas políticas e éticas de mortificação da vida e de uma politização negativa da morte. E, ainda, dados os níveis de desigualdade social que nossa sociedade enfrenta, essa armadilha dispara de modo mais contundente contra as pessoas mais fragilizadas nas relações incisivamente assimétricas de nossa sociedade. Assim, o que está em jogo aqui é o que queremos para nossas políticas de saúde e para nossas éticas da vida de modo a protegermos as outras pessoas e a nós mesmas. O desafio proposto pela reflexão que aqui leremos nos coloca frente a um espelho, prestes a quebrar, cheio de rostos, nossos, outros, clamando por modos menos mortais de viver.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento23 de set. de 2020
ISBN9786587403953
Deverei velar pelo outro?: suicídio, estigma e economia dos cuidados

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    Deverei velar pelo outro? - Luana Lima

    2020.

    SUICÍDIO COMO PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA

    O conceito de saúde mental não existe se não abarcar projeto de vida.

    Eliane Brum

    Aspectos epidemiológicos e fatores de risco

    O suicídio como processo sócio histórico se apresenta como um fenômeno de grande complexidade para o campo da saúde pública¹. De acordo com o último relatório temático e estatístico da Organização Mundial de Saúde (OMS, 2019), a taxa global de suicídio padronizada por idade foi de 10,5 por 100.00 habitantes em 2016, sendo 13,7 entre os homens e 7,5 entre as mulheres. Em relação à idade, 52% do montante ocorreu antes dos 45 anos. Destaca-se um crescimento expressivo entre os jovens, sendo atualmente considerada a 2ª causa de morte entre indivíduos de 15 a 29 anos.

    Demarca-se que, apesar de os números serem distintos entre os países, são os de baixa e média renda que suportam a maior parte da carga global desse fenômeno, com uma estimativa de 79%. A lógica se reproduz com maior ênfase entre os adolescentes: 90% dos que morrerem por essa causa eram de países de baixa e média renda. Entre 2010 e 2016, a taxa global de ocorrências diminuiu 9,8%, com reduções que variam de 19,6% na região do Pacífico Ocidental a 4,2% na região do Sudeste Asiático. O único aumento transcorreu na Região das Américas, com acréscimo de 6% no mesmo período (OMS, 2019).

    Em âmbito nacional, quando comparada às taxas globais de suicídio, a mortalidade é uma das mais baixas. Todavia, em números absolutos o Brasil ocupa a 8ª posição no ranking mundial e é o quarto país latino americano com maior crescimento em números entre os anos de 2000 e 2012 (OMS, 2014). De acordo com o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde (2019), entre 2007 e 2016 foram registrados 106.374 óbitos por suicídio, com taxa geral padronizada de mortalidade de 5,3/100 mil habitantes, variando de 5,1 em 2007 a 5,5 em 2016. O risco de ocorrência no sexo masculino (8,6/100 mil) foi, aproximadamente, quatro vezes maior que no feminino (2,3/100 mil). Em ambos os sexos, no período mencionado, o risco aumentou, sendo o crescimento da taxa de 1,7/100 mil para o sexo masculino e de 0,4/100 mil para o feminino. Nesse mesmo documento vislumbra-se que 79,6% dos episódios de suicídio acontecem no ambiente doméstico.

    Entre os anos de 2007 e 2017 foram notificados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) 470.913 casos de intoxicação exógena no Brasil, sendo 220.045 (46,7%) caracterizadas como tentativas de suicídio. Dessas tentativas, foram registradas em pessoas do sexo feminino, 153.745 (69,9%) e, do masculino, 66.275 (30,1%) ocorrências. Observa-se que as mulheres realizam mais cedo as tentativas por intoxicação exógena, sobretudo as adolescentes entre 11 e 18 anos. Em ambos os sexos as notificações de tentativas estão concentradas na população de 15 a 59 anos, idade economicamente ativa. Contudo, a análise nesse período indica que a maior proporção ocorreu entre as pessoas que estavam desempregadas.

    No que diz respeito à raça/cor, detecta-se que a maior taxa de mortalidade corresponde à população indígena, fruto da vulnerabilidade histórica e programática. A taxa geral padronizada é de 15,2 por 100 mil habitantes, aproximadamente três vezes maior do que a população geral. Dos casos, 75% representa a faixa etária dos 10 aos 29 anos (BRASIL, 2017). Ademais, uma pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde em parceria com a Universidade de Brasília confirma o risco de suicídio aumentado para a população negra. Em 2012 a taxa de mortalidade por suicídio foi de 4,88 óbitos por 100 mil entre jovens negros, em 2016 este valor aumentou 12%, atingindo 5,88 óbitos por 100 mil; enquanto a taxa de mortalidade entre os brancos permaneceu estável. Além disto, em 2016 o risco de suicídio entre jovens negros foi 45% maior quando comparado aos brancos (BRASIL, 2018). O relatório aponta para outros fatores de vulnerabilidade atrelados ao racismo que contribuem para a ocorrência do fenômeno do suicídio: maior percentual de doenças crônicas, baixa escolaridade, dificuldades de acessibilidade aos serviços de saúde, um não lugar social, ausência de sentimento de pertença, sentimento de inferioridade, rejeição, maus tratos, negligência, violência, abusos, inadaptação, perdas violentas, sentimento de incapacidade, isolamento social, solidão, etc.

    Embora os números mencionados de ocorrências de suicídios e tentativas sejam críticos, estes podem ser ainda maiores. Segundo Bertolote (2012), tendo como base os estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 15,6% dos óbitos não são registrados e, entre os registrados, 10% correspondem a causa externa de tipo ignorado, causa indefinida entre acidente, homicídio ou suicídio. Há, portanto, um sub-registro desta categoria de mortalidade no país e no mundo, especialmente em função de razões morais, religiosas, discriminatórias e implicações legais (a ilegalidade ainda existe em alguns países).

    Em uma revisão sobre o fenômeno, Minayo (2005, 1988) valida o peso dos fatores socioculturais na subnotificação dos casos no Brasil, particularmente pela influência da cultura judaico-cristã. Entre as repercussões dessas influências, a autora destaca: a) com frequência familiares tentam encobrir o ato negociando com quem notifica; b) a inadequação dos registros por preenchimento impreciso dos instrumentos de captação de dados, pela existência de cemitérios clandestinos e por destruição de cadáveres; c) a dificuldade de diferenciar algumas formas de suicídio que provocam mortes ou lesões, a exemplo dos acidentes de trânsito que camuflam atos de autodestruição ou mesmo modalidades em que o suicídio pode ser confundido com morte natural, a exemplo de um indivíduo que decide morrer deixando de se alimentar. Dessa forma, o conhecimento sobre as ocorrências, periodicamente, fica restrito ao âmbito privado.

    No que se refere às tentativas somam-se às questões supracitadas, o fato de que a maioria dos episódios não chega ao conhecimento das autoridades de saúde. Quando chegam às unidades de assistência, as notas elaboradas nas emergências hospitalares e nos prontos-socorros costumam mencionar apenas a causa secundária, ou seja, as morbidades, as lesões ou traumas decorrentes que exigiram cuidados médicos (MINAYO, 2005).

    No Brasil os dados sobre a mortalidade por suicídio procedem de informações que constam em atestados de óbito, compiladas pelo Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde. As notificações de tentativas e óbitos por suicídio se tornaram obrigatórias no Brasil desde 2014, com demanda de registro até 24h após o ocorrido (Port.1271/2014). O instrumento prioritário da coleta de dados é a ficha de notificação de violência interpessoal/autoprovocada. Na circunstância de tentativa, além da notificação, inscrevem-se as seguintes recomendações: nos casos de intoxicações/envenenamento, acionar e notificar o Centro de Toxicologia Estadual; proceder tratamento com antídotos; avaliar necessidade de consulta psiquiátrica de urgência; avaliar necessidade de internação clínica/psiquiátrica; orientar a família sobre cuidados e proteção; encaminhar à referência em saúde mental municipal ou CAPS; monitorar vulnerabilidade no território e avaliar necessidade de acompanhamento em saúde mental da família. No caso de a tentativa de suicídio ocorrer por meio de uma intoxicação, a ficha de intoxicação exógena também deve ser preenchida. Esta duplicidade de meios de registros pode contribuir igualmente, para a ocorrência de subnotificações em ambas as vigilâncias.

    A notificação obrigatória tem como um dos principais objetivos vincular as pessoas aos serviços de saúde (BRASIL, 2017), além de alimentar informações e condições para construção de intervenções fundamentais para prevenção de novos casos. Em 2019 foi instituída a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio (Lei Nº13.819) a ser implementada pela União, em cooperação com os Estados, o Distrito Federal e os municípios. Esse documento reafirma a necessidade da notificação, tornando-a compulsória também para os profissionais da educação. Ainda que não se saiba os seus efeitos na prática, essa medida convoca novas condutas frente aos entraves do registro - questão que será discutida posteriormente.

    Entre as controvérsias que envolvem a temática há apenas um consenso na literatura da suicidologia, a compreensão do fenômeno via multifatorialidade (BERTOLOTE, 2012; BESSONI, 2017; BOTEGA et al., 2005; CARVALHO, 2013; DAOLIO & SILVA, 2009; MARQUETTI, 2011; MINAYO, 2016; MONTENEGRO, 2012; NETTO, 2017; OMS, 2014). O entendimento do fenômeno é atravessado pela interação dos fatores socioculturais, históricos, econômicos, psicológicos, biológicos, genéticos, religiosos, etc. Nesse sentido, torna-se crucial conhecer os fatores de risco e potencializar os fatores protetivos.

    A Organização Mundial de Saúde (2014) divide os fatores de risco em categorias oriundas de a) sistemas de saúde; b) âmbito comunitário; c) meio social; d) relacionamentos interpessoais e afetivos e e) individuais. Com notoriedade epidemiológica e clínica, destacam-se experiências de guerras, migração, traumas, abuso sexual, racismo, homofobia, desemprego, condições clínicas incapacitantes como dor crônica, ausência de apoio social, história familiar de suicídio, transtornos mentais (ênfase na depressão, esquizofrenia e alcoolismo), descrédito frente ao comportamento de busca de ajuda e principalmente tentativa de suicídio anterior. Há ainda fatores de risco associados aos sistemas de saúde, tais como barreiras no acesso que pode ser retroalimentado pelo estigma, evidenciando entraves tanto éticos quanto técnicos das instituições de saúde.

    Como aludido, entre os fatores de vulnerabilidade estão os transtornos mentais, fortemente associados ao suicídio (BERTOLOTE, 2012; BOTEGA et al., 2005; OMS, 2014; SEMINOTTI, PARANHOS & THIERS, 2006). Apesar do sofrimento psíquico, a maior parte das pessoas mesmo em países desenvolvidos, não procura um serviço ou profissional de saúde mental. Segundo Botega et al. (2006), um em cada três pacientes que tenta suicídio acessa serviços de pronto socorro até 30 dias antes da ocorrência. O Ministério da Saúde (BRASIL, 2006) por sua vez, indica que aproximadamente 40% das pessoas que consumaram o suicídio buscaram serviços de saúde de 2 a 7 dias antes do ato. Apesar da diferença quantitativa e temporal, a OMS (2000a) reforça o argumento da busca por serviços de saúde não especializados, assinalando que entre 40 e 60% das pessoas que consumaram o ato consultaram um médico no mês anterior ao ocorrido; destes, a maioria consultou um clínico geral e não a um psiquiatra. Torna-se relevante assinalar ainda, que em muitos países em desenvolvimento onde os serviços de saúde mental não estão bem estruturados, o profissional da atenção primária é frequentemente o primeiro recurso de suporte à saúde, sendo a porta de entrada dos serviços (OMS, 2000c).

    Botega et al. (2006) sustentam que ao longo da vida de cada 100 pessoas, 17 chegam a pensar em suicídio, 5 planejam, e entre elas apenas uma chega a ser atendida em algum pronto-socorro. Entre 15 e 25% dos pacientes realizam uma nova tentativa no ano seguinte e 10% consumam o ato nos 10 anos seguintes. Deste grupo, apenas uma pessoa em cada três chega aos serviços de pronto-socorro, mas nem sempre é encaminhada para serviços especializados.

    A relevância da tentativa anterior como fator de risco primordial ao suicídio é corroborada por outros trabalhos (BOTEGA et al., 2005; SEMINOTTI, PARANHOS & THIERS, 2006). Um estudo que envolveu mais de 40 mil participantes (2614 atendidos por tentativa de suicídio) entre 1995 e 2001, concluiu que a probabilidade de morrer por esta causa em 5 anos foi 60 vezes maior entre os que tentaram suicídio, do que entre aqueles sem histórico anterior (VIDAL, GONTIJO & LIMA, 2013). Daí a justificativa de recorrer aos dados de internações por lesões autoprovocadas, referência que pode indicar e identificar pessoas com potencial risco de suicídio, como também a importância da condução dos profissionais que assistem os pacientes que efetivaram essas tentativas – investigação afirmada no presente trabalho.

    Esses dados de pesquisas apontam para o importante papel do médico clínico geral, das equipes de atenção primária à saúde e dos estabelecimentos de pronto atendimento na abordagem desses pacientes, bem como no reconhecimento dos sinais subjacentes de sofrimento e/ou quadro psicopatológico para seu encaminhamento à atenção especializada.


    1 Essa obra é fruto da dissertação de Mestrado defendida em fevereiro de 2018 no Programa de Pós-Graduação Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília (UnB), sob orientação do Professor Doutor Wanderson Flor do Nascimento. Os dados da pesquisa Moralidades correntes sobre suicídio em unidades de saúde e seu impacto na assistência: uma análise na perspectiva da bioética de proteção foram parcialmente atualizados para publicação do livro.

    Suicídio, estigma e ambiente hospitalar

    O homem se impregnou de religiosidade e se tornou um deus para os homens. É por isso que qualquer atentado contra ele nos parece um sacrilégio, e o suicídio é um desses atentados. O suicídio, portanto, é reprovado porque viola esse culto da personalidade humana sobre o qual se assenta toda a nossa moral.

    Marzio Barbagli

    Partindo da ideia que as equipes de pronto-atendimento/emergência têm suma importância na abordagem aos pacientes que tentaram suicídio, torna-se necessário caracterizar a relação do fenômeno com a dinâmica dos profissionais e serviços de alta complexidade.

    Estima-se que o risco de suicídio entre pacientes internados em hospitais gerais seja de três a cinco vezes maior do que o observado na população geral (BOTEGA, 2015; SCAVASCINI, 2020). Segundo Botega (2015), três grupos têm maior risco de suicídio: os que se recuperam de uma tentativa e que conservam a intenção de pôr fim à vida; os que estão sob a pressão de um novo diagnóstico ou com uma doença crônica reagudizada; os pacientes em delirium que apresentam agitação psicomotora. Esse autor aponta também para situações de risco vinculadas à própria doença metabólica clínica ou ao seu tratamento, como dor de difícil controle, condições que afetam o sistema nervoso central, estados de abstinência, interações e efeitos adversos de fármacos. Em contrapartida, Bertolote, Mello-Santos e Botega (2010) detectam que algumas tentativas de suicídio são impulsivas, ocorrendo em pessoas que não apresentavam sintomas psicóticos ou turvação da consciência, não se encontravam deprimidas, nem expressavam ideações (BERTOLOTE, MELLO-SANTOS & BOTEGA, 2010). Como interpretar este

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