Pirenópolis: paisagens sonoras
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Sobre este e-book
Sempre existiu uma curiosidade especial da musicologia luso-brasileira pela diversidade que este livro nos oferece. As paisagens sonoras são "acolhidas" pelo olhar de sua gente, de sua terra, nada mais primoroso e singular neste aspecto.
O pensamento organizado dos autores pirenopolinos, se apresentando durante os dez anos do Simpósio Internacional de Musicologia (várias edições sendo realizadas em Pirenópolis), fez com que surgissem oportunidades reais para a concepção destes estudos. Os séculos passados ainda têm muito a ser contado sobre as músicas, histórias e todas as formas de representações artísticas pertencentes à cidade, e este livro nos oferece a força latente que reluz nessa comunidade. Aline Lôbo, Caroline Lôbo e João Guilherme Curado, além dos outros autores, exemplificam de forma clara como é a essência de quem é, e de quem se percebe como pirenopolino. Da documentação que temos notícias, os pirenopolinos, mesmo sem saírem da cidade, faziam suas investigações com o que a cidade lhes oferecia, como por exemplo, Antônio da Costa Nascimento, pintor, marceneiro, músico, compositor, que anotava e desenhava em seus cadernos tudo o que via. São identificações sonoras vigorosas, que trazem e levam sentido aos que enaltecem essa arte do tempo. É a herança do conhecimento e da dimensão da dinâmica cultural nessa sociedade que os artigos deste livro nos trazem, dignificando e transportando sentido aos seus pensamentos.
Os autores abarcam no desafio de colocar esta obra como um doce sabor de diálogos que se entrelaçam nas perspectivas e vivências do que é memorável: a arte real que permanece em Pirenópolis. Os significados culturais vão dando sentido às diversas possibilidades através de seus olhares, trazendo para nós todo um contexto inédito: os espaços de festas, de tradições, a vida social de Pirenópolis, suas manifestações, as paisagens festivas, os olhares memoráveis das tradições, tudo permanecendo na essência do que é divino, do que é santificado e glorificado.
Fazendo um paralelo com o que disse Padre António Vieira em seu Sermão da Sexagésima (1655, S, I, p.7): "que coisa é a conversão de uma alma senão entrar em um homem dentro em si, e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz, e é necessário espelho." É desta forma que os autores se encontram, se inspiram, percebem suas raízes e constroem o diálogo poético do real, trazendo à tona o extraordinário afeto entre a comunidade e suas memórias. É a união da ciência consciente com os saberes. É o clamor de todas as possibilidades culturais sendo tomadas como únicas, existentes perenes da jornada que é conhecida a quem vive e re-vive em Pirenópolis.
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Pirenópolis - João Guilherme da Trindade Curado
PREFÁCIO
Foi com grande satisfação e uma mistura de realização e orgulho que recebi o convite para prefaciar este livro. Estou lisonjeada e comovida, não apenas pela leitura de uma obra que contribui sobremaneira para a História da Música e do patrimônio cultural goiano, mas pelo reconhecimento de que nosso trabalho frente ao Simpósio Internacional de Musicologia resultou em tão importantes pesquisas. As autoras e o autor nos oferecem, através de uma escrita agradável, embasada por fontes originais e diversificadas, teoricamente fundamentadas, uma paisagem sonora, histórica e cultural da cidade de Pirenópolis, de suas festas, músicas, bandas e práticas cênico-musicais.
Em Zabumba em Pirenópolis/Goiás, um som que perpetua
, Tereza Lôbo e Aline Lôbo, trazem para o leitor uma pesquisa original sobre a Banda de Couro
das festas pirenopolinas, principalmente as do Divino Espírito Santo, Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e de São Benedito, inclusive manuscritos musicais - sons que se distinguem por uma atmosfera musical singular e se perpetuam na atualidade
, como dizem as autoras.
Memórias recentes sobre sons em uma rua pirenopolina
— a Rua Direita especificamente —, de autoria de João Guilherme da Trindade Curado, nos traz sonoridades que tracejam identidades construídas e reconstruídas em ambientes acústicos aqui revisitados através de percepções e diálogos com aqueles que constituem os sons e ruídos" que se fizeram e se fazem presentes naquele lugar de encontros e, por que não, desencontros.
Dois capítulos tratam da centenária Banda Phoenix. O primeiro, A banda de música Phoenix é uma festa
, de autoria de Aline Santana Lôbo e Tereza Caroline Lôbo, explora, com muita felicidade, sons que ecoavam em festas pirenopolina, nas quais a banda foi um dos elementos essenciais da retórica festiva. Traz ao nosso conhecimento parte do acervo da Phoenix, com suas marchas e dobrados, músicas, sons e imagens, que renovam o sentimento de pertença dos moradores à sua cidade. Já o capítulo Banda Phoenix: patrimônio pirenopolino
, redigido por Melkia Samantha Lôbo Nascimento e João Guilherme da Trindade Curado, propõe uma análise da trajetória desta agremiação nos tempos atuais, seu importante papel no cenário cultural de Pirenópolis e a sua atuação no ensino de música através da manutenção de uma instituição musical, dando continuidade ao sonho de Joaquim Propício de Pina, o ‘Mestre Propício’ que fundou a referida corporação musical em julho de 1893
, como nos conta os autores. Nos brindam, inclusive, com o documento Primeiros rudimentos da música
da Banda Phoenix, de autoria de Joaquim Propício de Pina, em 23 de junho de 1940, especialmente importante para se escrever uma história da Educação Musical em Goiás.
Especificamente sobre festas, são os capítulos Músicas nas folias de Santos Reis em Pirenópolis – Goiás
, de autoria de Aline Santana Lôbo, As festas populares e a música em Pirenópolis/Goiás
, escrita por Tereza Caroline Lôbo, Cantar, comer e rezar: Folia do Divino Espírito Santo de Pirenópolis/GO
, da lavra de João Guilherme da Trindade Curado, Alexandre Francisco de Oliveira e Maria Idelma Vieira D’Abadia e Paisagens visuais e sonoras na procissão das Dores em Pirenópolis, Goiás
, creditado à Aline Santana Lôbo, João Guilherme da Trindade Curado, Marcos Vinícius Ribeiro dos Santos e Tereza Caroline Lôbo. São textos preciosos focados nas festividades nas complexidades e imbricações que fizeram Marcel Mauss definir esses fenômenos como fato social total
— expressão de fazeres e dizeres, de cantorias, de comilanças, de religiosidades, de memórias, identidades e sociabilidades. É importante aqui apontar a pesquisa sobre a Procissão da Dores. Trata-se de material original, pois que, nas minhas andanças
pelos caminhos da Paixão (a de Jesus Cristo) registrei até o momento escassas informações.
Também integra a retórica festiva das Festas do Divino em Pirenópolis as práticas cênico-musicais, chamadas de óperas - termo usado como um guarda-chuva conceitual usado indiscriminadamente para comédias, tragédias, dramas, melodramas etc. Trata-se, aliás, conforme registros, de uma prática que remonta pelo menos ao início do século XIX na antiga Meia Ponte. É do que trata o capítulo Teatro e música na festa do Divino Espírito Santo em Pirenópolis
, de autoria de João Guilherme da Trindade Curado. Uma pesquisa cuidadosa que resultou neste excelente texto. Relevante para as pesquisas sobre o patrimônio cultural goiano são os estudos sobre as Pastorinhas, tema muito citado em Pirenópolis, mas ainda pouco estudado e sistematizado.
Encerramos apontando a relevância dos estudos ligados ao ensino da música e a prática coral em Pirenópolis. Trata-se dos capítulos Projeto de musicalização nas escolas da rede municipal de ensino de Pirenópolis: uma experiência musical
da lavra de Aline Santana Lôbo, Rogério Menezes Gonçalves e Tereza Caroline Lôbo e do Coral Nossa Senhora do Rosário, Pirenópolis: breves relatos
, texto de João Guilherme da Trindade Curado, Marcos Vinícius Ribeiro dos Santos e Nikolli Assunção Pereira. A mim, como educadora, muito me emocionou conhecer o importante trabalho realizado em prol da Educação Musical no ensino público de Pirenópolis. A música na escola não é um simples adorno, mas disciplina fundamental para a formação do indivíduo. Já o capítulo sobre o Coral Nossa Senhora do Rosário, Pirenópolis: breves relatos
nos presenteia com um percurso e questões relacionadas à prática da música sacra desde o século XVIII, questões ligadas às normativas da Igreja sobre a música ritual católica. Traz, igualmente, informações sobre a Semana Santa e suas músicas (corais em essência), e nos propicia um vislumbre do rico material documental da Banda Phoenix.
Me dirijo agora a você, leitor (a), para que faça uma imersão neste livro, nos esquecimentos e memoricídios
que acompanham a história da música e do patrimônio cultural do estado de Goiás, para que este material possa, enfim, integrar as Histórias da Música e da Cultura no Brasil.
Dra. Ana Guiomar Rêgo Souza
Universidade Federal de Goiás (UFG)
Sumário
APRESENTAÇÃO - Pirenópolis: Paisagens Sonoras
ZABUMBA EM PIRENÓPOLIS/GOIÁS, UM SOM QUE PERPETUA
Tereza Caroline Lôbo
MEMÓRIAS RECENTES SOBRE SONS EM UMA RUA PIRENOPOLINA
A BANDA DE MÚSICA PHOENIX É UMA FESTA
Aline Santana Lôbo
BANDA PHOENIX: PATRIMÔNIO PIRENOPOLINO
Melkia Samantha Lôbo Nascimento
MÚSICAS NAS FOLIAS DE SANTOS REIS EM PIRENÓPOLIS — GOIÁS
TEATRO E MÚSICA NA FESTA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO EM PIRENÓPOLIS
AS FESTAS POPULARES E A MÚSICA EM PIRENÓPOLIS/GOIÁS
PAISAGENS VISUAIS E SONORAS NA PROCISSÃO DAS DORES EM
PIRENÓPOLIS, GOIÁS
Aline Santana Lôbo
João Guilherme da Trindade Curado
Marcos Vinicius Ribeiro dos Santos
CANTAR, COMER E REZAR: FOLIA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO DE PIRENÓPOLIS/GO
João Guilherme da Trindade Curado
Alexandre Francisco de Oliveira
MUSICALIZAÇÃO NAS ESCOLAS DA REDE MUNICIPAL DE ENSINO DE PIRENÓPOLIS: UMA EXPERIÊNCIA MUSICAL
Aline Santana Lôbo
Rogério Menezes Gonçalves
CORAL NOSSA SENHORA DO
ROSÁRIO, PIRENÓPOLIS/GO: BREVES APONTAMENTOS HISTÓRICOS
João Guilherme da Trindade Curado
Marcos Vinícius Ribeiro dos Santos
Sobre os autores
Sobre os autores convidados
GALERIA
APRESENTAÇÃO - Pirenópolis: Paisagens Sonoras
Por que o título Pirenópolis: Paisagens Sonoras ? Quem é de Goiás entende que o som perfaz tudo que rodeia esta cidade. Os olhares mais atentos reconhecem nela também sua diversidade, e consequentemente, suas paisagens sonoras. Tantos espaços que oferecem e definem para a sociedade pirenopolina seus lugares cativos na memória dos frequentes momentos da vida social e cultural dessa cidade, desde o século XVIII.
Sempre existiu uma curiosidade especial da musicologia luso-brasileira pela diversidade que este livro nos oferece. As paisagens sonoras são acolhidas
pelo olhar de sua gente, de sua terra, nada mais primoroso e singular neste aspecto.
O pensamento organizado dos autores pirenopolinos, se apresentando durante os dez anos do Simpósio Internacional de Musicologia (várias edições sendo realizadas em Pirenópolis), fez com que surgissem oportunidades reais para a concepção destes estudos. Os séculos passados ainda têm muito a ser contado sobre as músicas, histórias e todas as formas de representações artísticas pertencentes à cidade, e este livro nos oferece a força latente que reluz nessa comunidade. Aline Lôbo, Caroline Lôbo e João Guilherme Curado, além dos outros autores, exemplificam de forma clara como é a essência de quem é, e de quem se percebe como pirenopolino. Da documentação que temos notícias, os pirenopolinos, mesmo sem saírem da cidade, faziam suas investigações com o que a cidade lhes oferecia, como por exemplo, Antônio da Costa Nascimento, pintor, marceneiro, músico, compositor, que anotava e desenhava em seus cadernos tudo o que via. São identificações sonoras vigorosas, que trazem e levam sentido aos que enaltecem essa arte do tempo. É a herança do conhecimento e da dimensão da dinâmica cultural nessa sociedade que os artigos deste livro nos trazem, dignificando e transportando sentido aos seus pensamentos.
Os autores abarcam no desafio de colocar esta obra como um doce sabor de diálogos que se entrelaçam nas perspectivas e vivências do que é memorável: a arte real que permanece em Pirenópolis. Os significados culturais vão dando sentido às diversas possibilidades através de seus olhares, trazendo para nós todo um contexto inédito: os espaços de festas, de tradições, a vida social de Pirenópolis, suas manifestações, as paisagens festivas, os olhares memoráveis das tradições, tudo permanecendo na essência do que é divino, do que é santificado e glorificado.
Fazendo um paralelo com o que disse Padre António Vieira em seu Sermão da Sexagésima (1655, S, I, p.7): "que coisa é a conversão de uma alma senão entrar em um homem dentro em si, e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz, e é necessário espelho." É desta forma que os autores se encontram, se inspiram, percebem suas raízes e constroem o diálogo poético do real, trazendo à tona o extraordinário afeto entre a comunidade e suas memórias. É a união da ciência consciente com os saberes. É o clamor de todas as possibilidades culturais sendo tomadas como únicas, existentes perenes da jornada que é conhecida a quem vive e re-vive em Pirenópolis.
Andréa Luísa Teixeira
Doutoranda em Ciências Musicais pela Universidade Nova de
Lisboa - Portugal
ZABUMBA EM PIRENÓPOLIS/GOIÁS, UM SOM QUE PERPETUA¹
Tereza Caroline Lôbo
Aline Santana Lôbo
Objetivamos aqui discutir como os sons produzidos pela Banda de Couro se fazem presentes nas festas de Pirenópolis, Estado de Goiás — principalmente nos festejos que homenageiam o Divino Espírito Santo, Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e São Benedito — se distinguem com uma atmosfera musical singular e se perpetuam na atualidade. Sua execução enche a cultura de canções e melodias, e seu ritmo desperta nas memórias as lembranças de um passado ligado à mineração e à presença negra no lugar, ao mesmo tempo em que produz a euforia e a efervescência
de um povo que tem nas suas festividades uma forma de compreensão da vida.
O trajeto da Banda de Couro
Ao caminhar pelas ruas da antiga Meia Ponte, a Zabumba, ou Banda de Couro, produz seu som singular quebrando o silêncio da madrugada e convocando a população para festejar o Divino Espírito Santo. A Banda de Couro pertence à cultura local desde o século XVIII, quando os negros forros e escravos envolvidos com a mineração do ouro no Rio das Almas construíram a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e ali criaram e executaram suas práticas religiosas, festivas e musicais numa conjugação de manifestações da cultura africana com as liturgias e as crenças do catolicismo.
Os sons executados pela Banda de Couro de Pirenópolis, no período dos festejos do Divino, numa visão ampliada, não só dão forma ao lugar, mas de maneira combinada e associada constroem um conteúdo identitário e histórico ligados aos tempos idos. Esculpem na cidade um sentimento de pertencimento em que os ancestrais, seus feitos e suas festas tornaram-se os emblemas da sociedade.
As atividades engendradas pelas igrejas, locus das festividades que envolviam a Banda de Couro, ficavam a cargo das irmandades e confrarias. Como assevera Jayme (1971, p. 554), existiram em Pirenópolis diversas confrarias religiosas, dentre elas a de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e a de São Benedito, pertencentes aos negros escravos e forros. É essencial ressaltar que apesar de os negros terem suas irmandades, nelas existiam também os brancos. Mas os negros dessas organizações gozavam de privilégios, como o direito de serem enterrados na capela-mor da igreja, com todo requinte de um funeral de branco, ou de serem coroados reis ou juízes no Reinado de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos ou no Juizado de São Benedito.
Pautado em uma ampla pesquisa histórica sobre como a cultura africana influenciou e foi influenciada pela lusitana, José Ramos Tinhorão, demonstra como a convivência entre os diferentes resultou na formação de novas identidades. No relato, o autor afirma que desde o século XVI já era permitido aos negros associados a confrarias lembrar sua terra de origem em cerimônias festivas de eleição de reis do Congo
(2012, p. 54); quanto aos negros músicos escreve que era a quase garantia de que, de posse do tambor, o negro podia contar com um lugar na procissão do Corpo de Deus não apenas para sapatear e bailar, mas para cantar ao som daquele instrumento
(2012, p. 57); segue ainda destacando o papel diferencial da música na relação entre negro e brancos em Portugal:
Essa vocação dos negros para a música — documentada iconograficamente desde o século XVI, como prova a tábua do retábulo de Santa Auta, que no Museu de Arte Antiga de Lisboa mostra seis negrinhos a soprar charamelas e sacabuxas — levaria, desde logo, não apenas ao seu aproveitamento como instrumentista pelos brancos em Portugal, mas à sua transformação em objeto de espetáculo ou atração exótica. E isso — tal como a própria pintura quinhentista do Museu de Arte Antiga também revela — por meio de sua apresentação avivada pelo uso de coloridas librés (TINHORÃO, 2012, p. 57).
Souza, ao pesquisar sobre as festas de negros e suas irmandades religiosas, mostrou os detalhes da composição, da administração e organização das festas que seguiam um modelo lusitano, mas estavam também ligadas ao universo sociocultural banto, assim menciona:
[...] as coletas de esmolas por membros das irmandades, especialmente encarregados disso, era cena comum nas ruas das cidades coloniais, onde muitas vezes danças e tambores africanos conviviam com as folias, de origem portuguesa, que percorriam as ruas ao som de música e carregando estandartes, recolhendo dinheiro para a realização de festas de santos padroeiros (SOUZA, 2002, p. 209).
Nos documentos referentes às irmandades não há indícios de que a Banda de Couro atuava na busca de donativos, mas é certo que compunha as coroações e os cortejos do Reinado de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e do Juizado de São Benedito, suas maiores festividades, animando a festa de distribuição de doces realizada nas residências do rei, rainha, juiz e juíza.
Nas pesquisas sobre os escravos e libertos na Capitania de Goiás, Loiola escreve sobre a conotação pejorativa das festas dos pretos, poucas vezes entendidas como manifestação de louvor por envolver batuques, saraus e aglutinar muita gente. Estes acontecimentos profanos eram atrelados a uma ideia de gentilidade, ou seja, de ‘paganismo’ africano ou ameríndio
(LOIOLA, 2009, p. 65).
Reduzidos os trabalhos da mineração, a abolição, a miséria e o pouco número de negros na cidade fizeram com que as irmandades dos pretos perdessem sua vitalidade, o que se agravou ainda mais com os reflexos da implantação da romanização da Igreja Católica em Pirenópolis, a partir da década de 1920 (SILVA, 2001). Isso culminou num maior controle da Igreja sobre as formas de exercício da fé e as festas de negros ficaram restritas a alguns grupos que as mantinham dentro de padrões tradicionais de sociabilidade e religiosidade.
A incorporação das festas de negros por mestiços, após o fim do regime de escravidão, deu-se por eles se identificarem como pertencentes a um mesmo segmento social: pobres, desprovidos de bens e à margem da participação social e política, conforme concluiu Brandão (2004). Não se identificavam como negros ou qualquer categoria étnica. Não resta dúvida de que o Reinado é, hoje, uma festa de pobres. No entanto, até hoje, é voz corrente em Pirenópolis que o Reinado é uma ‘festa de pretos’
(BRANDÃO, 2004, p. 69).
Os festejos do Reinado, como eram nominados pela população, perderam ainda mais o seu vigor na década de 1940, com a demolição da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, transferindo seu palco para a Matriz de Nossa Senhora do Rosário, a igreja dos brancos. Edificada entre os anos de 1743 e 1757, conforme atestam os únicos documentos que obtivemos, a Capela de N. S. do Rosário dos Pretos foi demolida no ano de 1944, por ordem da autoridade diocesana
(JAYME, JAIME, 2002, p. 46).
Apesar das transformações experimentadas pelas festas de pretos e consequentemente suas manifestações musicais com a redução do seu espaço de realização e representatividade, estas nunca deixaram de acontecer, estiveram sempre presentes integrando o imaginário e a cultura do lugar. Constituiu-se, assim, um meio permeado pela tradição, onde novas identidades e representações foram recriadas, congregando símbolos diferentes e decodificados pelos diversos grupos sociais envolvidos.
Pautados na subjetividade da cultura desenvolvida por um povo, objetivamos aqui discutir como os sons festivos produzidos pela Banda de Couro de Pirenópolis se fazem presentes na atualidade. No trajeto de seus tempos e contratempos, expomos suas performances pelas ruas de pedra da cidade e, arriscando algumas conclusões, esboçamos a representatividade que esta Banda tem no imaginário, sendo um marco reconhecido pela tradição cultural do lugar.
Banda de Couro: tempo e contratempo
A festa do Divino de Pirenópolis e suas várias festividades — folias, congos, pastorinhas, cavalhadas, reinado, juizado — são palcos de mediação de diversas culturas que conviveram na localidade desde a mineração do ouro, no século XVIII. Desse modo, como assevera Silva:
[...] a Festa do Divino, em Pirenópolis, estruturou-se