Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Bleeding Faith: Dois Mundos
Bleeding Faith: Dois Mundos
Bleeding Faith: Dois Mundos
E-book434 páginas6 horas

Bleeding Faith: Dois Mundos

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Um crime. Uma família quebrada ao meio. A dor da perda. A dor de não saber se o filho está vivo ou morto.
Alejandro cresceu nas ruas do Rio de Janeiro, vivendo da compaixão de estranhos. Stefano cresceu cercado de luxo, mas sem atenção e amor. Dois irmãos separados pela tragédia. Ambos seguiriam com suas vidas, sequer sabendo da existência um do outro, caso a música não tivesse entrado em seus caminhos. Laços familiares precisarão ser restaurados em um processo longo, doloroso e cheio de perguntas:
O que é necessário para ser feliz? Qual o sentido da vida? Qual o significado do amor? Como lidar com as perdas?
O primeiro volume de Bleeding Faith mostra as descobertas da adolescência de Alejandro e Stefano, dentre elas as drogas, o primeiro amor e a luta de cada um para superar seus traumas. É um livro regado a um bom Rock and Roll para se emocionar e lavar a alma.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento15 de jul. de 2022
ISBN9786500489439
Bleeding Faith: Dois Mundos

Leia mais títulos de Ester Roffê

Autores relacionados

Relacionado a Bleeding Faith

Títulos nesta série (2)

Visualizar mais

Ebooks relacionados

Ficção cristã para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Bleeding Faith

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Bleeding Faith - Ester Roffê

    Prólogo

    Dezembro de 1995…

    O trânsito no Rio de Janeiro estava cada vez pior. Já eram 8 horas da noite e o tráfego na Lagoa Rodrigo de Freitas ainda estava pesado, apesar de ser final de dezembro. Fred já deveria estar em casa. Clarice olhou para Alejandro, seu filho mais novo, pelo retrovisor, ainda preocupada. O menino de três anos tinha febre há dois dias e não estava comendo direito. O pediatra diagnosticou uma infecção no ouvido direito e receitou um antibiótico tópico, já administrado. Agora, o menino dormia agitado em sua cadeirinha.

    Finalmente o trânsito começou a fluir. Se continuasse desse jeito, estariam em casa em quinze minutos, ainda a tempo de colocar Stefano para dormir. Clarice parou em mais um sinal e suspirou. A semana tinha sido pesada. Entre o trabalho como assistente social e as atribuições de mãe de dois meninos pequenos, não tinha muito tempo para si. Engravidar enquanto amamentava não tinha sido planejado… A diferença de idade entre os meninos era de pouco mais de treze meses, graças ao nascimento prematuro de Alejandro, mas, no fim das contas, foi melhor assim. Ela era cinco anos mais nova que sua irmã Brigitta e as duas não se davam bem. E era prático fazer uma só festinha de aniversário todo ano.

    Os dois meninos eram bem diferentes, apesar da idade próxima. Stefano tinha vontade própria, era um molequinho, como o pai costumava dizer. Ligado no 220 V, extrovertido e sempre sorridente, fazia o necessário para conseguir o que queria, mesmo se isso envolvesse chantagem emocional, choro e malcriação. Eles tinham muito trabalho em dar limites para o pequeno, mas Clarice apreciava sua personalidade forte. Além do jeito de ser, Stefano também saíra ao pai na aparência: tinha cabelos encaracolados, olhos azuis e a típica altivez da família espanhola de Frederico. Contudo, como resultado de um par ou ímpar, foi Clarice quem escolheu o nome italiano do primeiro filho, em homenagem à própria ascendência. Em troca, Fred escolheu o nome do caçula.

    Já Alejandro era um menino doce e amigável, embora não sorrisse tanto. Estava sempre de boa e era calmo. Clarice achava graça em como ele olhava para o irmão mais velho e tentava imitá-lo, embora não pudesse ser mais diferente. Ela se reconhecia nele em vários aspectos: era muito tímido, tanto que demorou para falar e às vezes gaguejava. Preferia brincar sozinho e quieto. A despeito da introversão e necessidade de afirmação, Alejandro era fisicamente parecido com Stefano, ou seja, sua versão loira de olhos castanhos. Sua pele também era mais clara, como a de Clarice.

    De repente, seus pensamentos foram interrompidos por uma pancada na janela.

    — Perdeu, Madame! Abre aí, rápido! — Um homem enfiou o braço pelo pequeno espaço na janela e segurava um caco de vidro contra o seu pescoço. Havia um outro do outro lado.

    O coração de Clarice disparou. Ela não podia simplesmente acelerar e furar o sinal vermelho, pois vários carros passavam pela intercessão. Ela se perguntou se os motoristas ao redor estavam vendo aquilo.

    — Anda logo, madame! Quer morrer?! — O homem pressionou mais forte e ela sentiu um líquido quente escorrer pelo pescoço.

    E o sinal que não abria! Será que não tinha nenhum policial por ali? E os outros motoristas, não iam fazer nada?

    Sem opção, ela acabou destravando as portas. No mesmo instante, um homem e uma mulher entraram pela porta traseira, enquanto o criminoso com o caco entrava pelo carona. Alejandro acordou assustado e começou a chorar. Apavorada, Clarice olhou para fora e viu o motorista do carro do lado falando no celular. Estaria ele ligando para a polícia? Foi quando o sinal abriu e ela teve que acelerar.

    — A gente só quer uma carona. Se fizer tudo certinho, não vai sobrar pra tu.

    Tremendo, Clarice olhou pelo retrovisor e viu que o homem atrás tinha uma arma. Em seguida, fixou os olhos na mulher por um instante e a reconheceu.

    — Merda. — Disse Piedade, entre os dentes.

    — Cala a boca, mulher! Eu falei pra tu não abrir a boca. Essa porra de criança não vai parar de chorar, não? — Reclamou o sujeito ao seu lado, ainda segurando o caco de vidro, sujo com o sangue dela.

    — Meu filho está doente, com dor de ouvido. Ele está enjoado.

    Piedade a olhava, sentindo raiva e vergonha ao mesmo tempo. Clarice não demonstrou que a conhecia e, por um momento, se perguntou se poderia escapar daquela situação através dela.

    — Vai seguindo, perua.

    — Para onde?

    — Não interessa, eu vou falando. Dá pra fazer esse menino calar a boca?

    — Eu já disse, ele tá doente. Olha…, vocês ficam com o carro e deixam a gente em algum beco por aí. Ele só vai acalmar comigo.

    — Tu era a única otária com o vidro aberto nessa porra. — Paulinho Boi, o bandido ao seu lado, soltou um riso histérico e nervoso. — Eu nem sei dirigir esse carro de madame. Câmbio automático… Só coisa de bacana aqui, né? Aí, Fumaça, já tinha entrado num desse?

    Fumaça riu de uma forma sinistra.

    — Não, Boi, sou fudido como tu. Aí, Maninha, na boa, pega esse moleque e tenta acalmar. Tô ficando surdo e puto… — ele respondeu gesticulando com a arma.

    — Vira aí à esquerda, madame. Já falei que é só uma carona. É só não olhar muito pra fuça da gente e não tentar nenhuma gracinha. — Ameaçou Boi.

    Clarice suava frio. Piedade! Esse era o nome da assaltante. Seus instintos gritaram quando viu a mulher tirando Alejandro da cadeirinha e tentando acalmá-lo. Ainda tentou acompanha-la pelo retrovisor, mas Léo Fumaça encostou a arma na sua nuca.

    — Não entendeu qual parte, ô bacana? Olha pra frente, senão estouro teus miolos.

    — Eu estou preocupada com meu filho! Por favor, não faz nada com ele! — Clarice implorou. Ela estava cada vez mais nervosa, mas seu instinto materno lhe dava coragem.

    O som estridente da sirene chamou a atenção dos quatro para as luzes do giroscópio de um carro da polícia. Os policiais portavam armamento pesado, cena típica das ruas do Rio de Janeiro.

    — Merda, ó os cara ali. Madame, entra aí à direita. Fica pianinho. — disse Boi, recolhendo o caco de vidro.

    Alejandro estava mais calmo, mas ainda chorava.

    — Mã-mã… — Ele colocava a mãozinha no ouvido direito, o que partiu o coração de sua mãe.

    — Filho, mamãe já vai cuidar de você, viu? Fica com a moça um pouco.

    Piedade ainda a olhava com raiva, mas tentava genuinamente distrair Alejandro.

    Clarice seguiu pelo Leblon, evitando as ruas principais. Tentou rezar o Pai Nosso, mas estava tão nervosa que se esquecia de alguns trechos. Fumaça começou a vasculhar sua bolsa.

    — Olha aí, Boi. Clarice Guerrero. Moradora do Leblon. Assistente Social do CRAS Cantagalo. Aí, Maninha, conhece ela?

    Piedade não respondeu. Em sua cabeça ainda estava fresca a lembrança de outros tempos, do dia em que buscou auxílio no CRAS para esconder-se junto aos filhos num abrigo. Seu marido atual, Toninho do Cantagalo, um dos traficantes mais poderosos da região, ameaçava-a constantemente, até que, por uma questão de poder, matou seus dois filhos de um antigo relacionamento com Marco Bodão, traficante de uma facção rival. Pessoas da comunidade contaram que os dois meninos foram encontrados carbonizados, mas com etiquetas contendo seus nomes, num claro recado para Bodão. Piedade sumira desde então.

    — Tá ouvindo não, madame? Mandei entrar aqui! — Gritou Boi, após atingi-la com um tapa na cabeça.

    Era uma viela bem estreita, já no Vidigal. Alejandro tinha chorado tanto que já estava quase dormindo. Fumaça puxou a carteira de Clarice e a colocou no bolso.

    — Para aqui, ô dona.

    Avançar além dali seria difícil por causa das barricadas. A viela era guardada por dois homens segurando fuzis AR15 e com correntes douradas grossas no pescoço, que os reconheceram com um sinal de cabeça. Eles pararam mais adiante, num beco.

    — Merda. — disse Piedade, agitada.

    —Qual o problema, mulher? Tá esquisita desde que a gente entrou no carro. — Perguntou Fumaça.

    — Eu conheço a vaca.

    — Puta que pariu… Caralho! Por que tu não falou antes? – Gritou Boi. — E a madame só quietinha…

    — Ela trabalha no Cantagalo. A piranha não fez nada quando eu fui lá implorar ajuda pros meus filho. Ela sabe meu nome…. vai entregar nós. — Piedade exalava raiva por todos os poros.

    — Piedade, não… nós tentamos…, mas seu ex-marido já estava com os meninos…

    — Eu me arrisquei indo lá! Meu mais velho ia se formar segundo grau, sua piranha! E agora eu sou jurada de morte! — Piedade deu um tapa no rosto de Clarice que arrancou sangue. — Estão achando que eu dei minhas crianças!

    — Merda… Piedade, sai com a criança. — disse Boi, passando a mão no rosto.

    — Não! Por favor, meu filho, não! O que vocês vão fazer com ele?

    — Com ele nada, minha senhora. — Boi encostou a arma contra o rosto de Clarice, forçando-a a sair do carro.

    Clarice estremeceu dos pés à cabeça e começou a chorar descontroladamente. Fumaça saiu logo depois, puxando-a pelo braço até um muro todo pichado e fedendo a urina.

    — Tu conhece a Piedade… vai entregar a gente. Não podemo correr o risco.

    — Eu prometo que não falo nada… meu marido pode pagar vocês… Nós vamos embora do país, eu juro…

    — Foi mal, madame. Não vai rolar. — Boi não parecia com pena, só irritado. Ele apontou a arma para Clarice, que soluçava. Ela pareceu se resignar.

    — Piedade… — A voz de Clarice saiu embargada, quase inaudível. — Não faz nada com o meu filho, pelo amor de Deus… deixa ele em algum hospital… o pai dele vai buscar ele depois…

    — Você se esconde atrás dum monte de dinheiro fingindo que faz caridade, achando que isso tá bom, que é o bastante… Mas não é! Tu não sabe o que que é viver com medo! Uma pena que você nunca vai sofrer como eu sofri. — Piedade tinha revolta em seus olhos e também chorava. — Mas eu não sou tão ruim como você. Eu vou cuidar do seu filho.

    Alejandro agora dormia nos braços de Piedade. Apesar da raiva evidente, Clarice a viu acariciar os cabelos da criança e encontrou forças naquilo, sorrindo em meio às lágrimas. Por um momento, a expressão de Piedade mudou. No momento seguinte, Clarice caiu morta com um tiro na cabeça.

    Capítulo 1

    Março de 1998…

    Alejandro, 5 anos

    Como de costume, Piedade saiu pela manhã e foi trabalhar, deixando Alejandro em casa sozinho. Estava na Maré há alguns meses, sempre mudando de comunidade devido às inúmeras ameaças de Bodão. Se envolvera com Toninho do Cantagalo quando descobriu as diversas namoradas do ex. Era um amor genuíno que veio abaixo no momento em que Toninho, pressionado pela gerência, resolveu usar seus filhos como moeda de troca e os matou.

    Piedade encarava Alejandro como uma reparação pelo seu sofrimento. De alguma maneira, aquela criança compensava a sua carência maternal. No entanto, para continuar livre e o criando, precisava impedir qualquer contato do menino com o mundo exterior, já que era procurada pela polícia e por uma das facções mais perigosas do país. Além disso, a família bacana da criança também devia estar procurando por ele. Jamais poderia se arriscar deixando-o em creches ou com vizinhas, então o menino não saía de casa. Ele era muito especial e ela tinha se apegado, e ninguém ia tirá-lo dela. E ela não admitia para si mesma, mas se arrependeu um pouco de ter deixado Clarice morrer.

    Alejandro ficava o dia todo sem comer, brincando com os poucos brinquedos que ganhava das patroas de sua mãe. Quando tinha condições, Piedade deixava umas frutas, mas isso não era sempre. Todas as noites, contudo, cozinhava algo para a criança. Mas naquele dia choveu muito e a cidade ficou alagada. Já eram seis da noite e ela ainda estava ali, parada na Leopoldina. O trânsito não andava.

    Às oito da noite, Alejandro já estava morrendo de fome e resolveu tomar uma atitude. Já tinha visto a mãe acender o fogão várias vezes e tentou imitá-la. Primeiro colocou o leite na panela sem derramar, pegou o banquinho e alcançou o fósforo. Quando finalmente conseguiu, reuniu toda a coragem que tinha e riscou o palito, mas não funcionou. Arriscou de novo, com mais força, e deu certo. Orgulhoso de si, acendeu o fogão e sacudiu o fósforo, do jeito que a mãe fazia, mas antes de apagá-lo queimou o dedinho. O fósforo caiu no tapete de farrapo no chão, ainda aceso. Alejandro tentou jogar água, mas o fogo se alastrou rapidamente pelo barraco de madeira. O menino se desesperou. Correndo para o quarto, ele pegou Dudu, seu ursinho surrado e encardido, calçou o chinelo e correu para fora.

    Alejandro viu sua casa queimar escondido atrás de um poste, com medo de que a polícia o prendesse por ter feito o que não devia, enquanto uma multidão de curiosos se formava. De repente, viu a mãe correr para dentro da casa, desesperada e gritando seu nome. Ele tentou ir atrás, mas dois homens o seguraram.

    — Mã-mãe! Mi… mi… mi… minha mãe…. me s-s-s-ol… sol… solta. — Alejandro nunca conseguia falar direito, principalmente quando estava nervoso.

    — Garoto, fica longe! Tu vai morrer queimado! Ô Beth, pega essa criança aqui! Menino burro!

    Beth pegou o menino no colo.

    — Mã… mã… mãe…

    — Vai pra casa, garoto.

    — Ele é filho da Piedade? – Uma vizinha perguntou.

    — Não, ela era sozinha. Nunca vi com nenhuma criança. Ele deve ser lá de baixo, da casa da Tininha. Ela tem tanto filho que eu nem sei. Leva ele lá, Beto.

    Sem questionar as ordens da mãe, o menino de uns oito anos puxou o garoto pelo braço, com força, e indiferente a suas lágrimas o arrastou para longe dali.

    —Mi.. mi.. minha m… mãe… ela t..t… tá no ffff-fogo. — Alejandro tentou, sem sucesso.

    — Ih, não sabe falar não, garoto? Nessa idade…. fffffogo. — Rindo dele, Beto o imitou falando, enquanto Alejandro chorava.

    Na confusão, Beto foi empurrado e o soltou. Alejandro correu. Beto nem se importou, porque queria mesmo era ver o incêndio.

    Alejandro se escondeu de novo e terminou de ver a casa queimar. Segurando forte Dudu contra o peito, começou a chorar. Dudu era o único que o entendia, mais ninguém. Ele nunca mais ia tentar falar nada. Além disso, ele era culpado por tudo aquilo e sua mãe ainda tinha morrido tentando salvá-lo. Mais do que nunca precisava se esconder, senão ia morrer velhinho na prisão.

    Os bombeiros chegaram trinta minutos depois, mas não havia mais nada a fazer. As casas vizinhas tinham começado a queimar também, mas as chamas foram controladas. Quando tudo se acalmou e já era muito tarde, Alejandro acabou pegando no sono no seu esconderijo.

    Stefano, 6 anos

    Frederico chegou do trabalho depois das dez da noite. Como sempre, foi direto para o escritório, no amplo apartamento no Leblon.

    Judith, a babá, veio vê-lo.

    — Sr. Fred, o Stefano foi dormir agora há pouco. Ele deu trabalho de novo, queria esperar pelo senhor.

    Fred suspirou aliviado. O que ele menos queria era ter que colocar Stefano para dormir. Tinha acabado de sair de uma reunião com o investigador particular, que mais uma vez não trouxe informação alguma.

    Ele passou tudo o que sabia mentalmente pela centésima vez. Uma testemunha tinha avistado o veículo de Clarice ser abordado por três assaltantes na Lagoa. Mais tarde, a polícia tomou conhecimento de que um carro similar tinha sido incinerado perto do morro do Cantagalo, e um corpo foi encontrado no porta-malas. A análise do chassi batia com o veículo de sua esposa. Dias depois, o exame da arcada dentária identificou Clarice. Contudo, não haviam vestígios de outro corpo… Fred ficou arrasado, mas a possibilidade de Alejandro estar vivo o sustentou. A polícia fez várias buscas no complexo Cantagalo-Pavão-Pavãozinho, mas não havia sinal de Alejandro. O pior de tudo era não saber se o filho estava vivo ou morto. Agora, mais de dois anos tinham se passado e nem a polícia e nem os investigadores contratados tinham pistas.

    Depois de muito relutar, Fred finalmente tinha aceitado a transferência para São Paulo. Ele não suportava mais viver naquela casa onde tinha sido tão feliz com sua família, que agora estava pela metade. Queria distância do Rio de Janeiro e sua crescente violência, mas continuaria a busca pelo filho, mesmo morando longe. Além disso, a transferência para São Paulo viria com um aumento de salário generoso, de forma que poderia vir ao Rio de tempos em tempos para acompanhar a investigação.

    Enquanto Fred terminava de pesar as consequências de sua decisão, Stefano entrou correndo no escritório.

    — Papai, ainda bem que eu não dormi!

    — Filho. O que você está fazendo acordado?

    — Eu tava com saudade. Não te vi ontem, nem hoje.

    Stefano subiu no colo de Fred, que segurava o choro. Não queria que o filho o visse assim, já era duro demais para ele. Então, enxugou as lágrimas e aninhou a cabeça no peito do menino.

    — Pai, você tá chorando?

    — Já passou.

    — Você tá triste por que eu não dormi?

    — Não, filho. Mas é melhor você ir.

    — Então é por causa da mamãe? — Stefano correu a mãozinha pelo rosto do pai.

    Fred tirou a mão de Stefano do seu rosto e tentou sorrir: — Já passou.

    — Conta uma história?

    — Judith vai contar.

    — Mas eu quero você. Você! — O filho gritou.

    — Stefano, eu já disse que não! Papai tem muita coisa a resolver, você precisa ser obediente.

    Stefano começou a chorar e gritar. Judith veio correndo e o levou ainda se contorcendo. Embora sentisse pena do filho, Fred não tinha estrutura psicológica naquele momento. Desde que Clarice se foi, se sentia pela metade. Mesmo assim, deveria ser o porto seguro de Stefano e, com isso em mente, tomou uma atitude extrema: acreditando que o menino não se lembrava mais do irmão, proibiu qualquer menção ao nome de Alejandro naquela casa. Quanto menos Stefano soubesse, menos eles sofreriam.

    Pelo menos era o que ele pensava.

    Judith beijou Stefano e o colocou na cama, falando palavras carinhosas para acalmá-lo. Como sempre, o menino virou para o lado e fingiu dormir. Judith saiu depois de um tempo, deixando só a luzinha da parede acesa.

    Assim que se viu sozinho, o menino começou a chorar de novo. Já que o pai não gostava dele, prometeu a si mesmo que não gostaria mais do pai também. Gostaria só de Judith, que cuidava dele seis dos sete dias da semana. E ele tinha seu amigo invisível, Alejandro. O amigo parecia um anjo e tinha morado com eles por um tempo. Uma vez perguntou ao pai pelo amigo, e ficou chocado quando o pai respondeu que ele não existia. Talvez Fred não pudesse enxergá-lo, já que era adulto. Ele mesmo se perguntava se não podia mais ver Alejandro porque já era um homenzinho… De qualquer forma, por via das dúvidas, Stefano sempre conversava com o amigo invisível. Seus dois desejos eram: que o pai gostasse dele e Alejandro aparecesse de novo. Da mãe, mal se lembrava. O pai não tinha nenhuma foto e ele simplesmente esqueceu. Tinha raiva de ter esquecido como ela era, mas agora estava crescido e não precisava mais de nenhum dos dois.

    Stefano enxugou o choro, virou para o lado e ligou a luz do abajur. O pai não gostava que ele dormisse de luz acesa, mas agora faria tudo para irritá-lo. No dia seguinte, quebraria as plantas do escritório e o violão.

    Apesar da raiva, depois de algum tempo, o menino pegou no sono.

    Alejandro

    Alejandro acordou com os primeiros raios de sol. Logo se lembrou do fogo e de que sua mãe estava morta, e chorou. Com o estômago roncando de fome, se levantou e começou a andar sem rumo. Às vezes olhava para o alto, pensando se a mãe poderia vê-lo das nuvens. Queria vê-la também, mas não enxergava assim tão longe.

    Passou por uma padaria e sentiu um cheiro bom vindo de lá. Ficou parado na vitrine, tentando escolher o que comer, mas ia ter que pedir. Só que essa não era uma opção. Sentia vergonha de falar, e jamais tentaria novamente. Acabou entrando e viu vários pacotes de biscoitos no corredor. Sem pensar muito, pegou um deles e saiu. Ninguém o viu, provavelmente porque era pequeno demais para ser notado. Ele voltou ao seu esconderijo e comeu o pacote todo. Depois, se aliviou em um muro. Alejandro parecia invisível aos olhos de todos.

    O dia foi passando e o menino explorava a vizinhança. Nas suas andanças, reparou que várias crianças brincavam nas ruas da comunidade. Ele ficou olhando, curioso, até que uns meninos que jogavam bola o colocaram no gol. Percebendo que ele não falava, começaram a chamá-lo de mudinho. Na hora do almoço, os meninos foram sumindo um a um, exceto Magrelo, que o convidou para almoçar em casa.

    — Mãe… o que tem pra comer? — Magrelo gritou, ainda na porta.

    — Macarrão. Vai lavar a mão!

    Magrelo tinha três irmãos mais novos. A mãe terminava de dar comida ao mais novo, que ainda era bebê, e ficou surpresa ao ver Alejandro.

    — Quem é esse menino, Vitor?

    Alejandro gostou da ideia de as pessoas terem mais de um nome, afinal Magrelo também se chamava Vitor. Ele pensou em escolher outro nome para si mesmo: Dinamite, talvez. Apesar de não saber o que era, tinha ouvido no rádio. O pior de tudo é que nunca conseguiria falar Dinamite direito. Mesmo assim, gostou do nome.

    — É o mudinho, mãe. Ele não fala.

    Vitor Magrelo tinha sete anos e conversava bastante. Ele sabia várias palavras e ria muito.

    — Menino, onde você mora? Quem é sua mãe?

    Alejandro não respondeu. Como sua mãe, tinha medo da polícia, e ninguém poderia saber que ela tinha morrido por sua causa.

    — Tá com fome?

    Alejandro fez que sim com a cabeça.

    A mãe de Magrelo colocou um prato de macarrão para cada um e Alejandro tratou de devorar o seu em segundos. Impressionada, ela ofereceu mais um para a criança, que aceitou na hora.

    — Um absurdo, um menino dessa idade sozinho na rua sem comer… Essas mulheres largam os filhos por aí e eles vêm filar boia na casa da gente. Sabe ir pra casa, garoto?

    Alejandro fez que sim com a cabeça e a mãe de Magrelo se deu por satisfeita.

    — Ô mudinho, agora você tem que ir embora, eu tenho que ir pra escola. – Magrelo falou. – Aparece lá pra jogar bola com a gente amanhã.

    Com a barriga cheia, Alejandro voltou para o esconderijo e acabou dormindo de novo.

    Nos outros dias, seguiu a mesma rotina: jogava futebol com os meninos e almoçava na casa de algum deles, geralmente na casa de Magrelo. À tarde voltava a jogar bola, mas com outros meninos, e à noite, cansado, dormia no seu esconderijo. Sentia falta da mãe, claro. Por outro lado, agora tinha amigos legais, comia biscoitos diferentes e não precisava mais tomar banho.

    Stefano

    Assim que chegou da escola, Stefano entrou no escritório do pai. Gostava de ir lá, apesar de saber que era proibido. Adorava ver aquele monte de livros, de várias cores, grossuras e tamanhos na imensa estante atrás da mesa de trabalho. Ele também gostava de girar na cadeira do pai, brincando de mandar nos outros.

    — Adalberto, eu preciso urgente do relatório das vendas do primeiro bemestre. É pra ontem. Se você não me entregar, está despedido. — Tinha ouvido o pai falar várias coisas do trabalho no telefone em diferentes ocasiões. — Fátima, pega o meu laldo no banco. Judith, traz um café sem açúcar. E me traz também aqueles biscoitos amantagados que o Stefano gosta. Ele sim, sabe o que é bom.

    Ele deu asas à imaginação.

    — E de agora em diante, nós só vamos almoçar chocolate e sorvete. Ahhhh, e o Stefano vai dormir a hora que quiser. E vai ver desenho o dia todo! Menos quando a gente for ao cinema, que vai ser todo dia. E ele vai dormir comigo no meu quarto.

    De repente, Stefano parou de girar e lembrou que tinha prometido não gostar mais do pai. Mas se lembrava bem das poucas vezes que saiu com ele. Seu pai era tão legal… da última vez foram ao cinema e tomaram sorvete.

    Mas isso tinha sido há muito tempo. Agora, o pai não gostava mais dele.

    Focado em sua missão secreta, o menino foi até o canto das plantas e pensou no que ia aprontar. Claro que iria apanhar… mas pelo menos, o pai ia falar com ele. Então, sem pensar duas vezes, arrebentou as plantas, virou a terra no chão, quebrou os vasos e saiu do escritório sem ser visto.

    À noite, mal podia esperar a chegada do pai. Jantou com Judith de novo, ainda com raiva por causa da demora. Como não era dia de limpeza da Lucileide, ninguém tinha descoberto as plantas.

    Pouco depois, Judith o colocou para tomar banho. Stefano não gostava que tirassem sua roupa, pois já estava crescido e sabia tomar banho sozinho. Ele fechava a porta e ficava um pouco embaixo do chuveiro. Às vezes, Judith cheirava seu cabelo, e quando não ficava contente, dava-lhe um banho demorado no dia seguinte. Com o tempo, Stefano foi aprendendo como enganá-la: usava mais shampoo e sabonete e até cantava no chuveiro. Gostava das músicas que o pai ouvia, como Led Zeppelin, Beatles e Pink Floyd. Se bem que seu pai quase não ouvia mais música.

    Enquanto cantava Stairway to Heaven no seu próprio inglês, o pai entrou furioso no banheiro.

    — Stefano! Você que fez aquela bagunça no meu escritório?

    — Oi Pai. Chegou cedo hoje.

    — Termina esse banho que você vai apanhar.

    Stefano ficou com medo. Por outro lado, tinha conseguido o que queria: o pai finalmente falava com ele. Enrolou um pouco embaixo d’água, mas eventualmente teve que sair. Em seguida, foi para o quarto e vestiu o pijama que Judith tinha deixado estendido em cima da cama. Sem ter como escapar e obrigado por Judith, se dirigiu para o escritório, onde viu o pai parado, olhando a bagunça.

    — Está vendo isso? É você que vai limpar. E depois você vai apanhar. – Fred entregou a ele uma vassoura, a pá, um saco preto grande e um pano molhado.

    — Mas como que eu faço isso?

    — Se vira! Você bagunçou, você vai arrumar. E faz direito, senão vai apanhar o dobro.

    Stefano demorou um tempão, mas estava feliz por estar perto do pai. Às vezes, Fred o olhava. Quando acabou, foi jogar o saco no lixo e Judith o ajudou.

    — Muito bem, Stefano, você limpou tudo direitinho. – Judith sempre tinha coisas boas para falar. – Agora vai conversar com seu pai.

    Stefano engoliu em seco, pensando na surra, e voltou para o escritório bem devagar. Fred suspirou e, por um momento, não soube o que fazer. No final, se ajoelhou para ficar na mesma altura do menino.

    — Meu filho, por que você fez isso? Você não sabe que as plantas têm vida? Você as matou.

    Stefano se assustou ao se lembrar que a mãe também estava morta. Ele se perguntou se as plantas agora fariam companhia a ela nas estrelas. Mas algo estava errado… As plantas eram vivas?? Já tinha visto plantas se mexerem e até comerem pessoas nos desenhos animados, mas achou que era coisa de desenho, afinal nenhuma planta havia se mexido na sua frente antes.

    — Mas pai, elas não falam e nem se mexem…

    — Elas têm uma vida diferente da nossa, mas são vivas, sim. Elas se alimentam da água que a gente coloca nelas e do sol. E você vê que elas crescem, não vê? Além do mais, sabia que elas são muito importantes? São elas que produzem ar pra gente respirar. — Fred suspirou. — Por que você fez isso, filho?

    A forma carinhosa como o pai pronunciou a palavra fez com que Stefano se arrependesse. O menino sabia que morrer era ruim, pois seu pai tinha chorado muito quando sua mãe morreu. Embora não soubesse bem o que era isso na época, também fez força e chorou. Foi quando a tia Brigitta, tentando consolá-lo, contou que sua mãe agora morava com as estrelas e lá era um lugar bom. Mas como seria bom se todos estavam chorando? Assim, percebendo que tinha feito o mesmo com as plantas, se sentiu culpado e começou a chorar.

    Tocado, Fred o abraçou e o pegou no colo. Há muito tempo Stefano não sentia o calor do pai e o melhor de tudo, ele não apanhou. Apesar de seu crime ter resultado na morte das plantas, o pai finalmente prestou atenção nele.

    E ele faria de tudo para ter aquilo de novo.

    Alejandro

    Alejandro não tinha noção da gravidade do seu abandono. Apesar de dormir ao relento, não sentia frio, pois era muito quente nessa época do ano. Por sorte, comia coisas gostosas mais de uma vez por dia e agora tinha amigos. Também não se sentia em risco, a não ser quando ouvia os disparos no morro. Assim, parecia estar vivendo uma aventura.

    No entanto, tudo começou a desandar quando Beto chegou na pelada.

    — Ei, eu conheço esse menino!

    — É o mudinho, ele não fala. — Respondeu Magrelo.

    — Fala sim! Mas ele não sabe falar… sai tudo errado! Fala aí pra gente ouvir, garoto!

    — Fala aí, mudinho! – Os meninos pararam de jogar e o rodearam. Alejandro ficou nervoso e tentou sair, mas o empurraram de volta para o meio da roda. Um deles, o maior, insistiu.

    — Como assim? Ele fala como?

    — Fffffffo-fogo. Mã-mã-mmmmãe.

    — Ah, então ele é gago! Gaguinho! — Outro menino comentou. — Ou ele é fanho? Meu pai falou que tem gente que fala assim, ó. — E imitou um fanho falando. Todos riram, menos Alejandro. Até Magrelo riu um pouco.

    — Fala aí, gaguinho! Só um pouco!

    Alejandro sentiu vontade de chorar. Incentivados por Beto, os meninos começaram a empurrá-lo e até a bater nele. Foi nesse exato momento que Magrelo interveio.

    — Ô! Deixa ele!

    — E, qual é, Magrelo? É engraçado!

    — Ele é menor, deixa o garoto. Ele tá quase chorando. — Magrelo o defendeu. Ele já tinha sido alvo de piadas assim por ser mais magro e retinto que os outros e não gostava dessas brincadeiras.

    — Olha ele defendendo o namorado fanho! Chora, pirralho! Quem sabe assim ele fala! – Provocou Beto.

    — Será que ele gagueja pra chorar também? Vamo apostar? — O menino maior completou.

    Magrelo saiu batendo nos meninos. Alejandro aproveitou a confusão que se formou e saiu correndo. Quando chegou no seu esconderijo, esbaforido, abraçou Dudu e chorou. De repente, olhou para a casa queimada, sentindo falta da mãe e da cama que dividia com ela.

    Alejandro ficou lá até anoitecer, quando sua barriga começou a roncar. Então, resolveu ir à padaria, que já estava fechando.

    — Oi, menino. Tudo bem? Cadê sua mãe? — A moça olhou para ele com pena.

    Triste e assustado, Alejandro não respondeu. Ele olhava o tempo todo para os lados, ainda com medo de ver um daqueles meninos.

    — Tá com fome?

    Alejandro fez que sim com a cabeça.

    — Vem cá. Eu tenho uns pães que sobraram de hoje. Vamos fazer um sanduíche pra você? Você gosta de mortadela?

    Ele concordou, apesar de não saber o que era aquilo.

    — E queijo?

    Queijo ele conhecia. Ele fez que sim.

    A moça se abaixou para ficar da altura dele: — Qual é seu nome?

    Alejandro não respondeu.

    — Eu sou a Gabriela, Gabi pros amigos. Muito prazer. — Ela disse, estendendo a mão. Alejandro retribuiu o gesto.

    Gabi terminou de fazer o sanduíche e o menino o devorou em menos de dois minutos.

    — Nossa, desde que horas você não come?

    Alejandro continuava olhando fixo para os pães. Gabi fez mais um sanduíche e dessa vez lhe deu um suco de caixinha. Alejandro comeu tudo e depois bebeu o suco de uma golada só.

    — Acho que agora você tá cheio, né? Então vamos. Eu te deixo na sua casa, está muito tarde para você ficar de bobeira por aqui. — Gabi falava ao descer a grade da padaria.

    Antes que ela completasse a frase, Alejandro correu. Como ele poderia levá-la

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1