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Sociopatas também foram crianças: relatos de uma mãe educadora
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Sociopatas também foram crianças: relatos de uma mãe educadora
E-book302 páginas3 horas

Sociopatas também foram crianças: relatos de uma mãe educadora

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Sobre este e-book

Autora traduzida para diversas línguas, a escritora Gisele Gama aceitou um novo desafio ao escrever o impactante livro "Sociopatas também foram crianças: Relatos de uma mãe educadora". Ao longo das páginas escritas por Gisele, conhecemos Dina, uma educadora que volta a São Paulo para fazer seu pós-doutorado. Divorciada e mãe de dois filhos biológicos, ela decide aumentar a família adotando a pequena Pietra, que, apesar da pouca idade, já havia sido vítima de diversas injustiças sociais. "Sociopatas também foram crianças" trata de temas pouco abordados na literatura ficcional, a exemplo dos transtornos de personalidade, racismo estrutural e os desafios da adoção. A trajetória de Dina com sua filha mais nova também alerta para a necessidade de se pensar novos modelos de educação, pautados pela empatia e inteligência emocional. A escritora Gisele Gama, que tem a defesa das causas sociais e educacionais como missões pessoais, detalha como o livro nasceu: "No momento em que muitos de nós temos nos perguntado 'onde vamos parar', eu decidi me perguntar 'o que nos trouxe até aqui'. Minhas experiências como mãe, educadora, mulher, militante me levaram a essa história e às reflexões contidas no livro. Nossa sociedade precisa se reconhecer, se queremos mudar nosso destino".
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de ago. de 2022
ISBN9786500474237
Sociopatas também foram crianças: relatos de uma mãe educadora

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    Sociopatas também foram crianças - Gisele Gama

    Antes de começar a história, parênteses!

    Nunca fui muito de pensar em sonhos. Depois de tudo o que vivi até aqui e que partiu de sonhos, eu venho filosofando sobre o assunto. Eu sei que podem revelar o inconsciente. Que deixam aflorar desejos e medos. Que requerem atenção. Mas, quem produz os sonhos? Quem cuida do enredo, da continuidade, do cenário? Quem escala e veste as personagens, produz os diálogos? "Claro que é você, sonhadora", você me diria. Mas como, se estamos dormindo? E como eles me revelam tanto, se nem sabíamos, conscientemente, que aqueles desejos estavam ali, ocultos? Não haveria uma força maior que nos une e com quem nossa mente dialoga exatamente quando estamos dormindo? Não seria possível que mais do que vemos esteja realmente ali, no exercício de sonhar?

    Não tenho as respostas, por certo, mas espero sonhar com elas. Enquanto isso, aposto nos sonhos. Nos que produzo conscientemente e que persigo e naqueles que moram no meu inconsciente e que descubro. Porque o mundo se faz de sonhos, daqueles que entendemos e dos que não entendemos, também.

    O sonho talvez seja uma das primeiras coisas que o mundo nos rouba, quando estamos acordados. Ficam intactos apenas quando dormimos, guardados no inconsciente, ricamente detalhados por roteiristas incríveis (sejam lá quem eles forem). Mas, confesso, passei muitos anos sem me lembrar deles, até ali, onde esta história começa.

    – CAPÍTULO 1 –

    O inconsciente

    Havia pouco tempo que tínhamos nos mudado para São Paulo, minha terra natal. Fui com a cara e a coragem fazer um pós-doutorado em educação. Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em greve, saí sem a menor certeza de que minha liberação seria confirmada. Mas eu sabia que era preciso ir. Alguma coisa me impulsionava para lá.

    Com dois filhos e dois cachorros na bagagem, divorciada, tratei de procurar um lugar que tivesse escola por perto, porque teria de dar certa autonomia aos meninos, mesmo pequenos, para irem e virem a pé. Não seriam tempos fáceis, eu sentia. Não haveria meus pais para ajudar. Teria de ser por minha conta.

    Alto dos Pinheiros foi o bairro escolhido. Simpático, aprazível, pertinho do colégio em que os meninos estudariam. Um problema a menos. E lá estávamos eu, João e Miguel, vivendo uma história nova, em um lugar que era meu e deles, onde havíamos nascido e construído uma vida, para onde agora voltávamos diferentes, sem eu saber ainda bem o porquê.

    O ano era 1999. O mês, dezembro. Passou depressa. Tratei de deixar a casa em ordem, comprar o que faltava, fazer matrícula na escola nova e adaptar os meninos ao novo ambiente. Fiquei ocupada com os afazeres e me esqueci completamente de tentar entender o que me motivava a estar ali. A vida distrai.

    Naquele mesmo mês, em algum lugar de São Paulo, morando nas ruas, uma adolescente bem jovem, vivendo em situação de alto risco, engravidava. Ela ainda não sabia, nem eu, mas Pietra já estava entre nós. Um processo divino fazia existir a estrada.

    Janeiro de 2000 veio com uma bomba: logo no primeiro dia útil, recebi uma ligação da minha universidade informando que meu pedido de licença para o pós-doutoramento, embora tivesse sido aprovado em reunião de colegiado, tinha sido negado em instâncias superiores. Era preciso voltar. O chão se abriu. Era uma sensação que eu já tinha experimentado outras vezes, em que se entende que é hora de usar o livre arbítrio. Isso significava ir ou ter de pedir demissão da universidade pública. Significava estar em uma cidade nova, em um apartamento alugado, com os filhos matriculados em uma escola particular, sem saber se conseguiria emprego. Significava ter de ter coragem para enfrentar o novo. Era mais fácil voltar, mas eu decidi ficar.

    Minha luta não foi muito diferente daquela travada pela adolescente grávida, moradora de rua, que soube, então, naquele mesmo mês, que trazia um ser em seu ventre. Ela não sabia o que viria pela frente, mas decidiu manter o bebê. Optamos por um caminho que só faria sentido muito mais tarde…

    Os meses seguintes foram recheados de alegrias e tristezas, seguranças e inseguranças, vitórias e derrotas, como é a vida de verdade. O fato é que ela foi passando, e conseguimos aguentar os trancos. No programa de pós-doutoramento, fui docente de uma turma de doutorado com alunos verdadeiramente geniais. Amigos que fiz para a vida toda. Eles me ajudaram a enfrentar os desafios que encarei.

    Setembro chegou como chegam todos os meses, não fosse por uma coisa bastante incomum: comecei a sonhar com a figura de uma mulher (que para mim era Nossa Senhora de Fátima) me dizendo que eu teria uma filha. Eu acordava desses sonhos intrigada, mas acabava rindo do impossível. Divorciada, sem estabilidade financeira, com dois filhos na bagagem, esterilizada, era mesmo difícil entender o sonho.

    Naquele mesmo mês, Pietra nascia em um hospital público em Capão Redondo. A jovem mãe adolescente, moradora de rua e usuária de drogas, precisou desistir do bebê. Depois de infrutíferas tentativas de integração à família materna, Pietra foi definitivamente encaminhada a uma instituição. Não sei exatamente quando.

    Os sonhos com Nossa Senhora ficavam mais constantes e instigantes. Já não era mais possível ignorá-los no decorrer do dia. Comecei a cogitar verdadeiramente o assunto, mesmo sabendo que não havia a menor lógica aparente nisso. Fiz uma pesquisa dos abrigos próximos e acabei sendo levada a conhecer um deles, localizado bem perto da minha casa. Isso ocorreu em outubro de 2000. Visitei o berçário e amoleci meu coração.

    Novembro e dezembro passaram depressa. A essa altura, ter uma filha já era uma ideia fixa. O berçário do abrigo que visitei não me saía da cabeça. Fiz pesquisas sem fim sobre como dar entrada em um processo de adoção. Li tudo sobre o assunto. Conversei com os meninos sobre a hipótese. Eles embarcaram comigo no projeto. Ficaram empolgados com a possibilidade de ganhar uma irmãzinha…

    Eu tinha certeza, não sei bem o porquê, de que a criança que seria minha filha já estava no mundo. Eu rezava para ela todas as noites e pedia que tivesse forças para aguentar firme, porque eu já estava chegando para protegê-la.

    Com janeiro de 2001 veio a certeza de que meu caminho definitivamente havia mudado. O pós-doutorado foi concluído com louvor. Seria tempo de voltar para o Rio de Janeiro, se tudo tivesse corrido como planejado. Mas voltar não era mais uma opção. Eu já estava me virando bem em São Paulo, prestando consultoria para um organismo internacional e assessorando uma faculdade particular, que tinha como reitor um de meus ex-alunos. A vida ia bem, obrigada. Não havia motivo para não encarar o desafio da adoção. Mas a Vara de Infância estava em recesso. No abrigo, Pietra aguardava…

    Precisei esperar março chegar para dar entrada na papelada que mudaria nossas vidas para sempre. A burocracia era desanimadora. Até nada-consta judicial e carta de idoneidade escrita por amigos foram exigidos. Apresentei. Certamente, eu seria mãe de novo. Mas eu me sentia como se já fosse.

    Fui chamada à Vara de Infância ainda em março de 2001, via telegrama, para ser informada de que eu estava habilitada a participar do processo de adoção. Intimamente, eu já estava comemorando, quando uma dose de realidade regada a extrema burocracia me desanimou. O processo poderia durar muito tempo. Eu deveria participar de oito reuniões, uma a cada mês, quando um grupo novo de adotantes se completasse. Isso só se daria no segundo semestre daquele ano, e eu ainda deveria passar por entrevistas psicossociais individuais e familiares. Haveria visitas à minha casa para que se confirmasse que era um ambiente propício à criança. Continuei rezando todas as noites pela filha que sentia que já tinha. O jeito era esperar. Enquanto isso, Pietra crescia no abrigo…

    Agosto chegou com as obrigações do segundo semestre letivo. Mas foi no fim do mês que recebi um presente: o telegrama convocatório para a primeira reunião do grupo de adotantes, que ocorreria uma semana depois, no fim de setembro.

    Os noticiários eram alarmantes. Nos Estados Unidos, grupos terroristas tomaram aviões que atiraram, com todos os reféns, contra edifícios emblemáticos, destruindo alguns, como as Torres Gêmeas, matando e fazendo sofrer muitos inocentes. O mundo parecia estar acabando, mas eu sentia como se o meu ainda nem tivesse começado, porque somos todos mundos particulares participando de um mundo comum.

    No dia 31 de setembro, Pietra completou um ano. Não houve comemoração no abrigo. Mas aquele telegrama também seria um presente para ela, como estava sendo para mim. Ela ainda não sabia disso…

    A primeira reunião na Vara de Infância ocorreu em outubro. Eu achei que seria enfadonha, tendo em vista que já era mãe de dois filhos, mas estava errada. Foi uma experiência bastante interessante. Em primeiro lugar, constatei que as reuniões, para a maioria dos candidatos à adoção, eram verdadeiramente necessárias. Os candidatos a futuros pais estavam ali como quem vai a uma loja escolher um produto, não como adultos preparados para receber qualquer ser que fosse a eles destinado. Em segundo lugar, era preciso compreender que a criança a ser adotada possuía uma história. As reuniões ajudariam o grupo a conhecer e confrontar essa realidade. Alguns desistiriam ao longo do caminho. Eu, não.

    Os meses passaram com entusiasmo. Participei bastante do processo. Minha experiência como mãe trabalhadora e divorciada foi relevante para o grupo, e aprendi muito com pais que já estavam na segunda ou terceira adoção. Fui convidada a fazer parte de muitas outras reuniões que não a do meu grupo, como palestrante.

    As visitas da assistente social à minha casa ajudaram os meninos a se sentirem parte do processo. Arrumamos o apartamento. Falamos de sentimentos. Demonstramos uma vontade coletiva de ampliar nossa família. Eu me sentia abençoada com tudo isso. Uma sensação parecida com a que experimentei quando engravidei de João e Miguel. Era um sábio tempo de gestação.

    Janeiro de 2002 trouxe uma novidade espetacular: teríamos vários encontros naquele e no mês seguinte, para que, ainda em fevereiro, pudesse ser formada uma nova turma de pais adotantes, depois de encerrada a nossa. Mas, àquela altura, eu já estava ciente de que, findo o tempo de preparação, deveríamos esperar até dois anos para sermos chamados a receber uma criança em nosso lar.

    Fevereiro chegou logo. Um carnaval em nossos corações. Com ele, um telegrama informando que eu deveria participar de uma cerimônia na Vara de Infância para receber meu certificado de adotante.

    Foi difícil segurar minha ansiedade nos dias que se seguiram. Racionalmente, eu sabia que aquela seria apenas uma data burocrática, de encerramento de um processo para que se iniciasse uma fase de espera. Mas, no íntimo, eu sentia que era o começo de uma nova história.

    Na noite anterior, como em todas as noites, fiz minhas orações, mas incluí um pedido especial a Nossa Senhora de Fátima. Eu disse: Cheguei até aqui por sua causa. Amanhã começa uma nova fase em minha vida. Sou humana. Nem sempre compreendo os caminhos que Deus quer que eu trilhe. Por isso eu peço que me dê claros sinais sobre a criança que foi escolhida para compor nossa família. Não sei como a Senhora fará isso, mas confio que fará.

    Naquela noite, sonhei novamente com Nossa Senhora de Fátima. Ela estava de braços abertos no saguão interno daquele abrigo, o único que eu conhecia dos muitos espalhados por São Paulo. Foi um sonho forte, espiritual.

    Com o dia, vieram obrigações matinais de trabalho. Fui para a universidade onde prestava consultoria, mas minha cabeça estava no sonho que tive na noite anterior. Não conseguia me concentrar em nada mais. Abri meu computador e comecei a pesquisar, não sei bem o porquê, dados sobre o abrigo que visitei.

    Depois de ler bastante sobre o assunto, acabei chegando a uma carta de agradecimento. Ela descrevia a história de uma menina que havia passado por maus bocados até os nove anos de idade. Cega, era deixada sozinha em casa, amarrada ao pé de uma mesa. Depois de uma denúncia ao Conselho Tutelar, foi levada ao abrigo. Tratada com amor, ficou lá até os doze anos, quando foi adotada por um casal suíço. Já adulta, escrevia para agradecer à direção do abrigo tudo o que fez por ela. A carta era assinada por uma moça que se intitulava Ana Pietra, um nome do qual não me esqueci.

    Nem almocei naquele dia. Corri para a Vara de Infância, com o sonho e a carta de Ana Pietra na cabeça.

    Na cerimônia, ouvimos um apelo especial da assistente social responsável por nosso grupo: que jamais fôssemos aos abrigos procurar crianças. Isso geraria nelas forte ansiedade. Não era uma coisa boa a se fazer. Todos deveríamos aguardar um telefonema ou telegrama, o que, como já sabíamos, poderia demorar até dois anos. Finda a cerimônia, a psicóloga e a assistente social me pediram para aguardar. Elas queriam falar comigo a sós…

    Muita coisa passou pela minha cabeça naquela hora. Por que elas queriam falar comigo?

    Depois de um tempo que para mim pareceu uma eternidade, fui finalmente levada a uma sala. Lá, a assistente social e a psicóloga disseram que gostariam de me consultar sobre a possibilidade de adoção de uma criança. O coração foi na boca. Perguntei: Como é o nome dela? Elas disseram: Pietra. Tem um ano e sete meses. Meu estômago revirou. Perguntei então: Onde ela está? Elas responderam: Em um abrigo no Alto dos Pinheiros, perto de sua casa. Nessa hora, senti o abraço de Nossa Senhora de Fátima… Agradeci os claros sinais.

    Acertamos que eu iria no dia seguinte ao abrigo conhecer Pietra. Mas ainda não seria apresentada a ela, só a veria de longe. As visitas começariam oficialmente na segunda-feira. Saí dali e liguei para meus pais, informando que eles seriam avós de novo. Todos festejaram. Os meninos amaram saber da novidade. Estávamos todos apaixonados por uma criança que ainda não sabíamos como era…

    O abrigo em que Pietra se encontrava era um daqueles prédios imponentes e intimidatórios, que nos fazem sentir pequenos. Foi assim que cheguei lá, no primeiro dia de março, para ver de longe aquela que seria minha filha. Eu a vi por poucos minutos. Ela corria no pátio, equilibrando-se com as mãozinhas para trás. Parecia feliz. Fiquei completamente encantada com aquele serzinho. Quis pegá-la no colo e levá-la para casa, mas a psicóloga me explicou que as visitas seriam diárias, de segundas às sextas, à tarde. Eu poderia passar duas horas com ela, até que tivesse autorização para levá-la nos fins de semana. A guarda definitiva e o processo de adoção poderiam demorar até um ano. Pietra não me viu naquele dia…

    A segunda-feira veio com um lindo dia de sol. Passei a manhã trabalhando e me preparando para o tão esperado encontro, que ocorreria às 14 h. Combinei com os meninos que eles iriam na terça, mas aquele dia seria meu e de Pietra.

    Quando cheguei ao abrigo, fui conduzida a um espaço novo, ao qual nunca tinha tido acesso antes. Era um pátio interno destinado à adaptação de pais e filhos. Tratava-se de um local reservado, com um belo jardim. Meu coração vibrou. No centro, a imagem de Nossa Senhora reinava, de braços abertos, exatamente como nos meus sonhos. Chorei.

    Pietra veio no colo da atendente. Estava insegura. Foi posta em meu colo e deixada a sós comigo. Ela cheirava a talco. Caminhei com ela nos braços e disse, sussurrando em seu ouvido: Desculpe a demora, filha. Sou a mamãe. Nunca mais você estará sozinha nesta vida. Eu vim para ficar.

    Ela pareceu entender. Apertou as mãozinhas em minha nuca. Deitou a cabeça em meu peito e dormiu. Estávamos mesmo cansadas da espera…

    Nossa conexão foi tão forte que, na sexta-feira daquela mesma semana, em caso inédito na Vara de Infância, Pietra foi autorizada a viver conosco. Uma família que, abençoada por Nossa Senhora de Fátima, demorou quase dois anos para se completar.

    – CAPÍTULO 2 –

    E viveram felizes para sempre…

    Seria bom se toda esta história terminasse no primeiro capítulo. Mas ali ela começou. Foi romântica e bonita de contar. Era como eu queria que tivesse sido. E foi assim que eu quis escrever o primeiro capítulo, porque foi um momento de grande felicidade para todos nós. Era como eu via as coisas, mas nosso caminho ainda teria de ser trilhado. Éramos uma família maior, agora. Eu não conhecia aquela criança. Ela não me conhecia. Nossas vidas, entretanto, estavam entrelaçadas. Eu imaginei que para sempre. Que nos ajeitaríamos. Comprei roupas lindas para ela e laços de fita para seus cabelos. Eu tinha uma filha, afinal. Fui ao shopping com ela e comprei sorvete, e aí ela vomitou. Eu percebi, então: não sabia nada sobre ela. Não sabia do que ela gostava. Do que não gostava. Do que fazia bem ou mal a ela. Nada. Eu não conhecia minha filha…

    Demorei para me acalmar e entender a novidade. Tinha muita imaturidade naquela relação. Eu estava animada como se tivesse ganhado uma boneca nova, a quem podia vestir e alimentar. Diferentemente de como foi com os meninos, eu achava que a ensinaria a ser como eu. Que ela se espelharia em mim e que seria feliz com a criação que eu daria a ela. Que loucura isso, pensando agora. Como eu precisei aprender com essa experiência! Logo eu saberia: Pietra seria a grande oportunidade de entender muitas coisas sobre quem eu era…

    Minha filha era encantadora. Estava muito feliz, aparentemente, com a família nova. Me chamava de mãe o tempo todo. O tem-po to-do. Mãe, mãe, mãe! Demandava minha atenção sem parar. Era divertido, não fosse o fato de que ela não dormia. Não parava quieta. Comecei a me preocupar, embora criasse todas as explicações na minha cabeça: "Ela é só uma criança assustada. Está com medo de que a levem de nós. Está insegura. Não nos conhece bem." Eu tinha muitas teorias. Mas ela não dormia, esse era um fato, e eu passei a ficar muito cansada.

    Eu a levei ao médico e ao dentista. E acabei por levá-la a uma neurologista, que pediu uma série de exames. Não creio que tenha sido a melhor forma de recebê-la em nossas vidas, mas eu precisava de informações, e ela, até ali, não tinha nem caderneta de vacinação. Precisávamos providenciar tudo. Ela era um bebê assustado, embora disfarçasse muito bem, era o que eu achava. Não pedia colo. Não chorava. Tomava banho sozinha, com menos de dois anos. Não parecia se interessar por quase nada. E eu não sabia o que fazer para distrai-la, para realmente entrar no mundo dela.

    Pietra tomou as vacinas atrasadas. Fez os exames que diagnosticaram anemia e falta de vitaminas. Reforcei a alimentação. Os dentes começaram a brotar todos ao mesmo tempo, então.

    A neurologista que a atendeu

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