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Remanescentes
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E-book288 páginas4 horas

Remanescentes

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Sobre este e-book

Repentinamente o mundo está vazio. Gabriela, uma adolescente de 14 anos, se encontra com Tiago, que tem 10 anos. Juntos eles têm que sobreviver sozinhos, estão sem seus pais, familiares ou amigos, todos morreram devido à uma terrível e devastadora doença. Em poucos dias encontram Débora, menina de 6 anos, sozinha e faminta. Aos poucos se agrupam com outros poucos imunes à doença, são os Remanescentes. Do outro lado do mundo, Carol trabalhava em um navio de cruzeiro que ficou a salvo e todos descerem em uma pequena ilha. Eles não podem ter contato com o vírus, são os Sobreviventes. A intrigante história destes jovens e seus amigos vai provocar sua mente a pensar: como viveríamos em um mundo vazio?
IdiomaPortuguês
Data de lançamento18 de jun. de 2015
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    Remanescentes - Sidnei R. Cunico

    REMANESCENTES

    A vida em um mundo vazio.

    Sidnei Cunico

    PRIMEIRA PARTE

    Capítulo 1

    Gabriela cochilava em seu quarto quando ouviu latidos insistentes do Xerife, seu cão pastor alemão. Ele tinha um latido forte e grave, compatível com o seu enorme tamanho, mesmo para a sua raça seu porte era respeitável. Ela ficou intrigada porque ele não costumava latir por qualquer motivo, era um cão discreto. Além disso, não parecia que ele estava zangado, seu latido era mais parecido com aqueles que ela ouvia quando brincava com ele.

    Ela levantou rapidamente e abriu uma fresta na cortina da janela. Observou a rua: havia alguém com ração na mão e oferecendo para o Xerife, que ainda hesitava em aceitá-la.

    Saiu correndo escada abaixo, para ver a grande novidade.  Era um menino! E muito bonito por sinal, possuía cabelos claros e olhos azuis claros. – Que olhos lindos! – pensou ela. E contemplados com um belo brilho, coisa que ela não via desde que iniciaram as mortes em grande escala. Ele tinha o rosto bem formado, bochechas redondinhas e bem definidas. Parecia não ter passado fome e estava bem vestido, apesar de sua roupa estar amarrotada.  - Bom, provavelmente não havia mais mãe para cuidar da roupa dele – refletiu.

    Quando se aproximou o Xerife já estava comendo a ração e o menino passava a mão na sua cabeça. Algo estranho para aquele cão, que normalmente era irrequieto. Mas, devia ser a fome mesmo, já que ela estava racionando a sua comida porque havia aberto o último pacote há dois dias. Neste ritmo, haveria ração para ele para apenas mais uns vinte dias. 

    Ela hesitou um pouco, porque se lembrou que ele poderia estar infectado, era a primeira pessoa que via próxima de si, desde umas três semanas. Alguns poucos carros haviam passado na sua rua nos últimos dias, mas ela não conseguia vê-los antes de dobrarem a esquina ou descerem o morro que iniciava logo após sua casa. Mas este menino parecia bem saudável. Definitivamente ele não estava infectado! Perdeu o medo e se aproximou dele.

    - Olá, você está bem? Está sozinho? Tem algum parente ou amigo vivo? Falou isto num misto de ansiedade e alegria.

    - Oi, eu estou bem, mas morreram todos da minha família. Eu moro logo aqui embaixo, no Bairro Cruzeiro, descendo o morro. Meu pai era o dono da loja de sementes na Rua Luiz Michelon, ali embaixo. – apontou para a direção da sua casa - Eu sabia que havia alguns cães bonitos aqui nessa rua e resolvi subir com ração para ajudá-los e para ver se encontrava alguém. Faz alguns dias que tento achar alguém da minha família, mas não consigo nada, nem por telefone. Aqui na cidade não tenho mais ninguém, só tinha ficado uma tia minha em Bento, a tia Ana. Ela prometeu vir me buscar se sobrevivesse, mas acho que não conseguiu porque não veio e não atende ao telefone.

    - E eu, – disse Gabriela – também perdi todos! Meu pai foi o primeiro, mamãe o levou para o hospital quando as autoridades ainda tentavam isolar Caxias. Ele durou apenas um dia, ficou todo seco no hospital, eu nem pude vê-lo, o desespero dos médicos e enfermeiras era visível. Eu dois ou três dias eu já estava sozinha em casa...

    Neste instante estavam ambos quase chorando, uma jovenzinha de quatorze anos e um menino de dez, ambos sozinhos no mundo, sem muitas perspectivas. Encontravam-se depois de vários dias de solidão, ansiedade e medo, ao menos agora estavam em dois. Ambos tentavam entender o que havia acontecido e porque estavam vivos se todos haviam morrido. Já haviam perdido a esperança de encontrar alguém próximo para cuidar deles.

    De repente, Gabriela lembrou que ele estava do lado de fora da cerca e convidou-o para entrar.

    - Como é teu nome?

    - Tiago e o teu?

    - Gabriela...  Entre! Fique um pouco aqui comigo, vamos ver o que podemos fazer.

    Gabriela abriu o portão e Tiago entrou sob o olhar complacente do Xerife. Era meio de tarde e ambos conversaram por um bom tempo, estavam ansiosos por contar tudo o que havia acontecido com eles e ao mesmo tempo saber de algo mais com o outro.

    Tiago perdera pai e mãe quase ao mesmo tempo, sentiram calafrios, seguidos de febre muito alta. Em poucas horas estavam inconscientes e morreram no dia seguinte. Ele tinha um irmão mais novo, de seis anos que se chamava Rafael, este morreu dois dias depois. Foi tudo muito rápido, seu pai planejava fechar a loja e fugir com eles para o interior, em Vila Seca, onde tinham uma chácara com uma casinha e um riacho. Seu pai imaginava poderem viver uns tempos por lá bem isolados e começou de manhã a separar comida, água e botijões de gás, e sua mãe separava roupas. Enquanto isso, Tiago assistia a TV apavorado, vendo notícias de cidades inteiras dizimadas nos EUA, Europa, China, em todo o lugar.  As rádios locais avisavam para ninguém sair de casa, porque a cidade já estava infectada.

    À tarde, após um almoço rápido eles foram, os dois juntos, abastecer no posto próximo de casa. Parece que já havia confusão, gente querendo abastecer e ninguém querendo atender. O dono queria fechar o posto, deu briga, gritos e até tiros. Seus pais resolveram voltar e arriscar sair com o que havia no tanque que deveria ser suficiente para chegar ao destino. Quando estavam carregando as últimas coisas, seu pai sentiu um calafrio muito forte e um tremor que o fez cair. Sua mãe ficou impaciente e nervosa, não sabia o que fazer! Depois de várias tentativas ela conseguiu falar com um médico conhecido. E ele disse que não havia o que fazer, que não era para tirá-lo de casa e que deveria sair com as crianças imediatamente porque todos seriam infectados. Mamãe começou a gritar e chorar. Mandou os pequenos ficarem no piso de baixo e não sair de lá. Levou o marido para a cama, arrastando-o. Quando conseguiu, acabou caindo também com os mesmos sintomas. Depois de alguns instantes Tiago e seu irmão menor subiram para ver, e viram sua mãe desesperada gritando que os amava e pediu para eles saírem e ficaram embaixo. O pai já estava um pouco grogue, como se estivesse bêbado, não falava direito, mas gesticulava ferozmente enquanto chorava.

    Já era noite, Tiago pegou alguns cobertores e ficaram na frente da TV, seu irmão pequeno queria entender o que estava acontecendo, tentou subir umas duas vezes. Tiago teve que ser firme com ele para convencê-lo a ficar. Ele atendeu algumas ligações neste tempo, na primeira era sua avó de Bento Gonçalves, cidade a cinquenta quilômetros de distância, ela estava desesperada falando confusamente que havia infectados na casa e entrou em pânico quando soube que a mãe e pai do Tiago estavam também. Depois ligou um amigo do papai, de Pelotas, quatrocentos quilômetros ao sul, já próximo da fronteira do Uruguai, era o Mário com quem Tiago tinha uma boa afinidade. Mário ficou muito triste quando soube da situação e disse para ele ser forte e não sair de casa, e também não deixar ninguém entrar. Pediu que cuidasse do seu irmãozinho porque era o único que restara. Ele falou que em Pelotas havia muitos infectados e que não se sabia com iria acabar essa doença, mas que poderiam morrer todos.  Tiago tentou fazer algumas ligações, mas as linhas davam sempre ocupadas. Conseguiu apenas falar com o vô Valdir que estava em Piratuba, lá também já havia infectados! Mesmo uma cidade pequena como aquela! Vovô estava muito preocupado, disse que era o Juízo Final, que Deus estava punindo o ser humano por tantos pecados. Ele já fazia catequese da Igreja Católica e ouvira falar do tal Juízo Final, mas a catequista havia garantido que nunca iria acontecer!

    Dormiram no sofá, na manhã seguinte seu irmão começou a sentir calafrio... Ambos entenderam rapidamente o que se passava e começaram a chorar. Tiago abraçou o menino e pensou que agora ele iria ficar sozinho. Tentou alguns telefonemas, mas era quase impossível conseguir uma ligação. Quando conseguia, o outro lado chamava, mas ninguém atendia. Tentou sair na rua, mas era perigoso, havia carros passando em alta velocidade, sirenes constantes, parecia que cada um tentava salvar sua vida. Conseguiu atravessar a rua e falar com a vizinha da frente, que estava chorando porque seu filho e marido não haviam voltado da  escola e do trabalho, sempre voltavam juntos.  Não tinha carro em casa, e não havia mais ônibus circulando. Pensou em ir a pé procurá-los, mas era muito longe. Ainda assim ela veio com ele para sua casa. Estava visivelmente abatida, soluçava enquanto falava. Não se atreveu a subir para ver os pais deles. O irmão de Tiago estava deitado no tapete novo que a mãe dele havia comprado em doze prestações na loja do bairro. Ele disse que sentia sede, muita sede, e que estava com muito frio. A vizinha ficou na porta, falou para Tiago dar água ao menino, sugeriu um chá qualquer. E não cansava de se lamentar, dizendo que era o fim do mundo, que todos iriam morrer. Depois de algum tempo, ela decidiu tentar ir encontrar seu filho no Colégio São José que ficava no centro da cidade, talvez alguém na escola pudesse dizer onde ele foi. E o dia passou assim, ficaram os dois no piso de baixo vendo TV e comendo o que encontravam nas prateleiras da mamãe. Volta-e-meia Tiago subia a escada e espiava seus pais, eles costumavam fazer algum resmungo incompreensível ou uma lamúria qualquer. No final da tarde não ouviam nada mais no piso de cima. Já era noite escura, quando o Tiago recebeu uma ligação da tia Aninha de Bento, berrando, que estavam todos doentes e que haviam morrido vários, inclusive sua priminha do coração, a Rafaela. Ela havia tentado ligar ali durante todo o dia. Quando Tiago falou da sua situação ela chorou muito e disse que todos estavam morrendo, que era para ele se cuidar, se ela sobrevivesse iria procurá-lo, disse para não sair de casa e ficar trancado.

    Ele não teve coragem de deixar seu irmãozinho sozinho. Estava certo que ele próprio iria acabar contaminado também, e achou melhor gastar suas últimas horas com o maninho querido. Ficaram apenas conversando, como nunca fizeram antes, falaram de coisas amenas, das brincadeiras de criança, da escola e até de Deus, que o pequeno não entendia direito o que era, só sabia que todos falavam nele agora. Assim os dois adormeceram no sofá, assistindo televisão. Os dois abraçados dividindo o mesmo cobertor. Dormiram bastante, pois estavam cansados. Quando Tiago acordou já era claro. Ao seu lado viu seu irmãozinho estático, o seu corpo estava totalmente seco. Devia estar morto – pensou ele. Era impressionante e assustador ao mesmo tempo. Seu rosto parecia estar com ar sereno, não parecia que tinha sofrido, havia descansado para sempre. Ele não se conteve e tocou-o com a mão, estava duro como um pão seco, quando ficava velho. Parecia mumificado, como aquelas múmias que vira em programas da TV. Não havia cheiro também.

    Ficou ali por algumas horas sem saber ao certo o que fazer. Resolveu comer algo, já que estava com muita fome. Cozinhou uma pizza no forno a gás e colocou suco concentrado em um copo d’água. Comeu sozinho na mesa de jantar. Escutava ainda barulhos de carros. Havia gente tentando pegar algo na loja do seu pai, que ficava ao lado. Batiam na porta, pareciam ansiosos, mas ele ficou quieto, estava com medo. Lembrou-se dos pais, subiu para dar mais uma olhada. Era muito dolorido vê-los daquele jeito. Estavam como o irmão, apenas mais secos e escuros. Mas o olhar... A expressão dos rostos... Eram bem diferentes, eram um misto de tristeza, desolação, impotência... Sentimentos que Tiago não costumava ver nos seus pais. Escorreu uma lágrima e engoli em seco. Fechou a porta vagarosamente e desceu a escada.

    Após alguns dias em casa o barulho havia reduzido quase ao silêncio. Ele estava angustiado de não fazer nada. Apesar do medo, resolveu sair no bairro e ver como as coisas estavam. O dia estava frio e muito úmido, havia um pouco de neblina na cidade, o que era comum nesta época do ano. Ele vestiu uma blusa, colocou um boné e saiu lentamente olhando bem ao redor. Estava tudo fechado, casas, lojas, o banco em frente, o posto de combustíveis da esquina, tudo fechado. O que antes era uma região comercial agitada, agora estava muito quieto para uma quinta-feira. Ouviu um murmúrio ao longe, incrível como conseguia ouvir aquilo, o silêncio propiciava isto agora... Vinha da casa da Dona Elizabete, que era conhecida de sua mãe, hesitou um pouco e resolveu verificar. Subiu a escada nervosamente, bateu na porta... O murmúrio aumentou, agora estava mais para uma lamúria. Ele tentou abrir, mas estava trancada.  A lamúria aumentava, parecia uma voz de idosa ou de alguém bem fraco. Provavelmente também estava infectado, tentou forçar um pouco mais, não iria conseguir abrir. Ficou nervoso, não sabia o que fazer. Pensou no que ocorrera com seus pais e irmão e resolveu voltar para a rua, sentia um misto de frustração e medo.

    Seguiu por duas quadras até a sua escola, que ficava a quatro ou cinco quadras, chegando lá, percebeu que estava tudo fechado. Viu uma senhora na janela, que berrou:

    - Você está bem? Está sozinho?

    Ele se assustou, deu um passo para trás e fez sinal positivo com a cabeça e com o polegar da mão direita.

    - Querido pequeno, eu não posso te ajudar porque meu marido tá doente, provavelmente já me infectei também. Volte para casa e fique por lá até isto tudo acabar. Que Deus te ajude meu anjo!

    Ele voltou pela rua de trás, para chegar a sua casa pelo outro lado. Nisso, ouviu um ruído de automóvel, uma freada brusca e um forte impacto. Olhou ao longe, uma camionete acabava de derrubar um poste. Saiu uma mulher pela porta do caroneiro, berrando e fugindo, nem o percebeu. Ele sentiu medo e voltou rapidamente para casa.

    Lá ficou por mais alguns dias, apenas vendo TV e acessando a internet. Comia pizza, biscoitos com café e salgadinhos. Volta e meio, lembrava-se da sua mãe e ia tomar um banho, todos os dias ela o lembrava disto. Em algum momento percebeu que não havia mais movimento humano, era muito raro ouvir algum automóvel. Era comum haver cortes na energia, o que o deixava mais ansioso ainda, felizmente eram curtos e a luz voltava logo. Na TV poucos canais estavam no ar e funcionavam precariamente, e cada dia parecia piorar. Havia poucos programas ao vivo. Tentou a internet, alguns sites que seu pai usava para se informar, as notícias eram sempre sobre a gripe inglesa, havia iniciado lá, alguma coisa relativa a um laboratório farmacêutico.

    Ao acordar no dia seguinte, ouviu latidos de cães ao longe. Lembrou-se que eles deviam estar com muita fome, sem ninguém para alimentá-los. Resolveu sair para ajudá-los, abriu a porta de trás da loja do pai, e pegou alguns pacotes de ração para cães e gatos. O tempo estava bom, e ele saiu pela vizinhança, quando ouvia um cachorro latindo, se aproximava e jogava a ração. Em geral era grande o desespero, estavam famintos. Mas, ele percebeu que também tinham sede, muita sede. Sorte que havia chovido no dia anterior, e eles se viravam como podiam, lambendo o chão em alguns casos. Ele pensou em soltá-los para que pudessem se virar em busca de comida e bebida, mas teve medo, porque poderiam atacá-lo.

    Na volta vinha refletindo: não poderia alimentar todos os cães por muito tempo. Iria fazer apenas mais um giro, mas desta vez iria um pouco mais longe, queria ver a cidade, e resolveu subir o morro que estava há uns duzentos metros. Na rua que usava para ir à escola, lá em cima havia uma esquina onde ele costumava parar para ver os prédios do centro e o seu bairro que ficava logo abaixo. Ao subir encontrou o Xerife, que não estava desesperado, o que o intrigou um pouco. Percebeu que estava sendo alimentado então deveria haver alguém vivo naquela casa ou vizinhança. Foi quando Gabriela abriu a porta e veio falar com ele.

    *    *    *

    Gabriela ouviu com atenção, e depois também contou a sua história. Havia perdido o pai, a mãe e sua irmã mais velha que estudava em Porto Alegre.

    Ela também soube que tudo havia iniciado na Inglaterra. Espalhou-se tão rapidamente que as autoridades nem puderam agir. Aviões caíram, carros bateram, trens descarrilaram. Foi muito rápido. Os agentes de saúde da Inglaterra perceberam que era uma epidemia perigosa um dia após a primeira morte, neste tempo, muitos infectados já estavam em outros países. A Europa foi atingida no mesmo dia e se espalhou velozmente para a Ásia e a África. As Américas poderiam ficar livres, mas vários voos tiveram tempo de chegar antes das autoridades impedirem os aviões de abrir suas portas. São Paulo, Fortaleza e Rio de Janeiro foram as primeiras no Brasil. Não havia cura, se propagava pelo ar e atingia os líquidos do corpo humano. Desidratava-o totalmente e deixava-o extremamente seco. O primeiro sintoma costumava demorar dois dias para aparecer, depois disso o doente durava um ou dois dias, no máximo.

    No caso da sua família, haviam tentado se isolar em casa, eles três e mais a irmã mais velha que saiu às pressas de Porto Alegre quando a notícia se espalhou. Ela pegou um dos últimos ônibus que saiu da rodoviária local, logo a polícia chegou e as estradas foram bloqueadas, o desespero já havia tomado conta das autoridades. Quando chegou a Caxias quase ficaram retidos dentro do ônibus, havia muita confusão gente gritando, alguns pularam a janela. No meio do tumulto ela acabou sendo liberada. Papai a aguardava de carro, mas eles tiveram dificuldade para voltar para casa porque o trânsito estava uma confusão. As pessoas tinham medo de se aproximar, fechavam os vidros e ficavam buzinando quando não podiam passar. A estas alturas, vários acidentes já haviam ocorrido, os serviços de emergência estavam totalmente tomados de chamados. Os enfermeiros e médicos não sabiam se atendiam os doentes ou fugiam para suas casas também. No rádio do carro, só se falava na infecção que havia assolado o mundo todo. Informavam que Inglaterra, França e a Europa toda já estavam devastadas, havia notícias de alguns poucos remanescentes, e isto tudo em apenas um dia. O Japão estava até derrubando aviões que chegavam na tentativa de se isolar nas suas ilhas. Chegaram em casa a tardinha,  mamãe estava absolutamente desesperada, havia ligado várias vezes no celular do pai e da irmã, mas não conseguia completar.

    - Choramos todos ao ver que estávamos juntos, e também por perceber que a situação era muito grave - disse ela. Tínhamos conseguido falar com a vó que vivia em Farroupilha pela manhã, ela vivia sozinha. Falamos em ir buscá-la, mas ela se negou. Preferia ficar sozinha, e pediu para nós ficarmos juntos, porque estava perigoso ir para lá. Também falamos com meu tio João que nos ligou cedinho e que estava apavorado vendo as notícias da TV, ele vive, se estiver vivo, em uma fazenda no interior de Cambará. Disse que iria ficar sozinho em casa e que manteria contato. Convidou-nos para ir para lá para ficarmos isolados também. E foi só o que conseguimos por telefone neste dia.

    Ela continuou falando e gesticulando, com desenvoltura, contou que na tarde do dia seguinte aconteceu o pior... Leila sentiu um forte calafrio e desmaiou. Ficaram muito assustados, era o sintoma que caracterizava a doença. Mamãe mandou-a ficar longe enquanto ela e papai a carregavam para o quarto. Gabriela não sabia o que fazer, ligou para um hospital, mas dava ocupado, ligou para outro e nem completou a chamada. Papai e mamãe estavam soluçando e falando baixo. Leila havia acordado, mas não conseguia se expressar. Estava visivelmente abatida, como estudante de medicina da UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sua irmã deveria entender o que se passava com ela própria. Ela falava com dificuldade e pediu insistentemente para todos se afastarem dela, disse que amava todos eles, mas que provavelmente ela iria morrer e que não tinha nada que pudessem fazer. Disse também que tinham que tentar se salvar, ficando longe dela. Quando viu que não adiantava muito, ela apontou para Gabriela e disse:

    - Pensem na Gabi!! Ela precisa que vocês cuidem dela, saiam, saiam!

    Gabriela lacrimejou ao imitar a voz de Leila.

    - Papai adoeceu na manhã seguinte e mamãe à noite. Entrei em pânico, não sabia o que fazer.

    Gabriela tentou os vizinhos, mas já estavam chorando as suas mortes e também estavam com medo. Quem estava bem se isolava. Perto de sua casa havia um prédio de apartamentos com muitos estudantes da Universidade de Caxias do Sul – UCS. De lá ela ouvia de tudo: alguns berros de pura raiva, lamúrias contra Deus, rezas implorando a Deus e choros em geral. Todo este barulho foi diminuindo ao longo dos dias seguintes.

    - Nestes dias todos eu consegui acessar a internet com dificuldade, o sinal caía toda a hora. Recebi e-mails de algumas amigas e primas, todas apavoradas. No Skype eu conversei com os meus contatos por um tempo, mas aos poucos foram sumindo. Tenho apenas um amigo de Curitiba que está vivo e mantém contato comigo ainda. Ele também ficou sozinho, tem apenas alguns contatos de pessoas que permaneceram vivas, parece que alguns são imunes. Nós deveríamos estar mortos e se estamos vivos é porque temos alguma proteção em nós. – Disse ela.

    Quando perceberam já estava escurecendo, era início do mês de setembro, o inverno finalizava e era época de temperaturas mais amenas.

    - Quem sabe você fica aqui comigo hoje à noite? Amanhã vamos dar uma volta na tua casa juntos? Faz tempo que eu não saio de casa, estou curiosa para ver como está à cidade. – disse Gabriela.

    - Tá bom, eu fico sim, porque não estou muito a fim de sair no escuro. Tem lugar para mim?

    - Claro, tem o escritório com sofá-cama, eu o arrumo para ti.

    Gabriela ainda não sabia o que fazer com os corpos da mãe e da irmã. Eles estavam secos e não cheiravam. Mas ela não tinha coragem de mexer com eles ainda. Raramente entrava nos quartos deles, apenas quando precisava de alguma roupa ou objeto que estava lá. Mas para pegar lençóis para o Tiago ela tinha que entrar no quarto de papai e mamãe. Ele acompanhou-a. Entraram, apanharam o que precisavam e saíram rapidamente, evitaram olhar os corpos que jaziam na cama.

    O escritório era no segundo andar, ao terminarem a preparação do sofá-cama Gabriela o convidou para prepararem algo para comer.

    - Eu ainda tenho um pouco de carne no freezer, quem sabe tu me ajuda e nós fazemos uma massa com carne picada?

    - Tá bom, eu não sou muito bom na cozinha, mas posso te ajudar. E com uma fome... – Falou isso sorrindo e passando a mão na barriga.

    Jantaram e conversaram um

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