Fronteiras
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Fronteiras - João Antônio Queiroz De Carvalho
FRONTEIRAS
I – CONSTRUÇÃO
Um desvio no passado...
Um futuro alternativo...
República
Juliana
Reppublica
. Desterro
del Veneto
. Dante Alighieri
Hunsrück . Neu Hamburg
República
. Porto Alegre
Republik
Riograndense
João Antônio Queiroz de Carvalho
1990 –Caras amarradas.
Da janela se via uma intensa faixa laranja no
horizonte, deixada pelo sol poente naquele fim de tarde
de verão. As luzes que iluminavam as grandes esferas
verde, amarela e vermelha, do Parque de Exposições de
Esteio, se acendiam com o cair da noite oferecendo um
espetáculo de cores e formas. Na tv, uma figura magra
de terno e gravata com cabelo lambido, discursava
prometendo jurar a constituição e libertar o país da
miséria e da injustiça. Pedro tentou trocar de canal, mas
o dito homem estava em todos. "O que é que eu tenho a
ver, com o novo presidente do Brasil?", pensava.
Voltou a olhar pela janela do amplo apartamento
do décimo andar, onde morava com os pais. Estranho.
As esferas do parque agora estavam escuras... A noite
estava escura. Sombria... Com cerração... Já não estava
mais na sala... Estava no meio da rua e o homem de
cabelo lambido estava ao vivo na sua frente....
Levantou-se, virou de costas e tentou sair, mas uma
mão no seu ombro o fez girar a cabeça. O homem
arregalou os olhos e bradou Minha gente!
E a mão
agora balançava o seu ombro de modo suave...
- Acorda Pedrinho... Tu não tens faculdade,
amanhã cedo?
Era sua mãe acordando-o, sendo ao mesmo
tempo delicada e disciplinadora. Abriu os olhos, olhou
para a tevê e viu que já estava desligada.
- Tava até sonhando.... É... Amanhã começa às
sete e meia.
- Eu também vou me recolher... Estou morrendo
de sono.
- Era um sonho muito louco – resmungou Pedro
quase para si mesmo.
...
Na mesa do café da manhã enquanto comia um
pedaço de pão com manteiga, Pedro lia as manchetes do
jornal que o pai tinha nas mãos. Os sociais-democratas
estavam definindo o candidato para a eleição
presidencial de novembro.
- Vão ganhar mais uma vez? – perguntou a mãe
já adivinhando a resposta
- É o que dizem... – respondeu o pai
Pedro terminou o café em silêncio e se levantou
para sair. Por um instante lembrou de algumas palavras
do tal presidente do Brasil que estava no seu sonho:
Miséria
Injustiça
.
Que estranho?
se questionou.
A manhã já estava quente àquela hora e os bares
e cafés do centro estavam fechados com a ressaca da
noite anterior. Se não estivesse tão cansado, teria dado
uma volta rápida para ver o movimento. Quinta era dia
de agito, e no Café Ponche Verde sempre encontrava
um conhecido ou alguma guria que estava de olho.
Em cinco minutos de caminhada já estava na
estação para pegar o trem pra faculdade.
Sentia orgulho da sua
Universidade Nacional
Riograndense. A mais conceituada entidade de ensino
superior do país, e a com prédios antigos mais belos. E
os da centenária sede de Canoas que podiam ser
avistados por trás dos altos coqueiros da entrada, em
nada deviam em imponência às principais unidades de
Porto Alegre. O campus de menor tamanho grudado na
praça central da cidade dava um ar de aconchego e
convivência que estimulavam idéias e planos.
E Pedro já começava a pensar nos seus.
A escolha pela energia eólica, começava a tomar
forma, e era cada vez mais presente. Sempre buscava se
informar mais a respeito, até mesmo para sair da
mesmice dos estudos. Afinal, em menos de dois anos
estaria formado em Engenharia Elétrica e estava na
hora de começar a buscar um rumo. O seu norte como
dizia o pai.
- Fala Pedro Figueiras.... Tudo em cima?
- E aí...
Maurício Flores era o colega mais entusiasmado
com o futuro, com a profissão, com o país... E com as
mulheres. Sempre tinha alguém... Ou pelo menos dizia
que tinha... Mas gostava de uma festa com os amigos.
Extrovertido como sempre, falava pelos cotovelos com a
inevitável empolgação naquele encontro na alameda
principal do campus.
- Vi uma reportagem ontem na tevê que falava
dos planos de algumas empresas de Pelotas para esta
década. Eles querem implantar mais de cem aero-
geradores nos próximos três anos. Disseram ainda que
no ano dois mil, a energia eólica já deverá representar
quase metade de tudo que o Rio Grande consome. Já
pensou?
- Li a respeito disso alguns dias atrás. Os testes
que fizeram em Osório estão dando bons resultados. E
se juntarmos com o que já é produzido com a queima
do carvão e as hidrelétricas, vai ter energia de sobra.
- Vivente, escreve o que eu vou te dizer: nós
ainda vamos assumir a liderança econômica da América
do Sul. Vamos deixar a Bandeirante e o Brasil para trás.
A República Bandeirante era a meca
econômica
do continente, embora não estivesse muito a frente do
Brasil e seu imenso território, e da República
Riograndense, ou simplesmente Rio Grande para os
seus. Muitos falavam em emigrar para lá, fazer sucesso
em São Paulo, Curitiba, Santos ou outro grande centro
industrial. Mas Pedro e Maurício não pensavam assim,
e por aqui queriam ficar.
- É. Parece que a éolica é mesmo o meu caminho.
Quero começar a me preparar desde já. Estou até
pensando em fazer uns cursos extras sobre o assunto. –
respondeu Pedro com ar mais decidido.
No fim da escadaria de frente ao quadro de
formandos de engenharia de 1905, se despediram:
- Alguma combinação para hoje à noite? –
iniciou Maurício.
- Não sei, estou sem inspiração.
- Bueno. Falo com o Beto e depois te ligo.
- Feito.
...
Noite quente. O interfone toca.
- Seu Pedro? Os senhores Maurício e José
Roberto se encontram aqui embaixo. Posso mandar
subir?
- Pode Seu Rodolfo.
Seu Rodolfo, o porteiro do prédio, era engraçado.
Gente finíssima. Estava há anos ali e tratava todos com
uma formalidade rigorosa. Nascido em Bagé, se
orgulhava de ter concluído a escola técnica na capital.
Estava sempre lendo um livro, quando não havia muito
movimento na portaria. O que juntamente com seus
cabelos brancos e corpo magro, lhe dava um ar de
filósofo. Com seriedade e mansidão na voz, muitas
vezes costumava fazer breves comentários políticos com
quem estava esperando o elevador. Mas sempre com
educada cautela, evitando causar desconforto com suas
opiniões.
Pedro recebeu os amigos e foram logo para a
sacada. Sentado no sofá da sala, seu pai assistia ao
noticiário do Correspondente Nacional. Beto foi logo
lançando o convite:
- Tchê, vamos nos tocar para Neu Hamburg?
- Neu Hamburg? Atravessar a fronteira? Sempre
dá rolo. Os caras complicam por qualquer coisa! Ainda
mais de noite – respondeu Pedro um tanto ressabiado.
- Deixa comigo. Não dá nada.
Zé Roberto era sempre otimista. Era sabido que a
fronteira com a República do Hunsrique não era tão
fácil de transpor. Apesar das promessas da integração
sul americana, ainda havia algumas barreiras a serem
derrubadas. Sempre era preciso ter uma justificativa
plausível para cruzá-la, e muitas vezes simplesmente
não permitiam a entrada no país, e o estrangeiro
voltava sem receber maiores explicações. Ainda mais se
fossem três Riograndenses com a cara de guri, em plena
noite de sexta-feira.
- Sei não. Fim do ano passado, nós ficamos uma
hora tentando convencer o policial de fronteira que
íamos fazer uma visita à Usina Nuclear de Kleine
Kirche...
- Mas acabaram conseguindo – interrompeu
Beto
- Depois de muita conversa, e por que tinha um
colega que falava alemão fluente.
- Também! Vocês queriam fazer uma visita de
estudos em um sábado à tarde...
- Que nada... Eles são dureza mesmo. Nem a
queda do Muro de Berlim e a festa dos alemães com a
unificação, fizeram eles mudarem. – se meteu Maurício.
– Depois dizem que o que ocorre na Europa acaba
respingando aqui.
Com seu jeito nacionalista, torcia um pouco o
nariz para estrangeiros, principalmente se falassem
uma língua incompreensível para ele. Os vênetos ele
ainda aturava, mas com os loiros
não ia lá muito com
a cara. Só ia para Novo Hamburgo
, como gostava de
traduzir o nome da capital do país, por que era parceiro
e gostava de uma aventura. Principalmente se
envolvesse uma bela morena.
- Não se preocupem gurizada. Se a formos
presos, é só ligar para o Doutor Figueiras, que ele livra a
barra da gente. Hein Doutor? – ironizou Beto diante de
um sorriso nada amistoso de Pedro
Beto era desse jeito meio irônico e conversador.
Porto Alegrense tradicional, era filho de um grande
empresário da capital, e já andava envolvido com
negócios, não necessariamente da família. Vivia
pensando o que vender e para quem, com idéias
mirabolantes. Mas gostava mesmo era de fazer câmbio
com moedas da região. Certamente a ida à Neu
Hamburg, devia ser por algum negócio vantajoso na
troca de Escudos por Marcos, com algum conhecido seu
ou um aluno-integração da UNR.
Mas com a pergunta, Arnaldo Figueiras se
levantou lentamente depois de largar o controle remoto,
e se dirigiu à sacada onde eles estavam. Conhecido na
região e em boa parte do país, como um excelente
advogado especializado em comércio alfandegário,
Arnaldo Figueiras não era exatamente a pessoa
indicada para o assunto.
- O Beto disse que o senhor vai nos livrar da
cadeia se gente tomar todas e quebrar umas canecas de
chopp em uma cervejaria de Hamburgo Velho – riu
Maurício.
Arnaldo sorriu discretamente e foi logo falando
sem perder a polidez.
- Nesse caso, nem o melhor escritório de Porto
Alegre livra a cara de vocês.... Não brinquem muito com
eles, hein! Vocês sempre serão estrangeiros. A
legislação está mudando, e tem muita coisa nova que
ainda não foi bem absorvida.
Pedro ouvia em silêncio, pois conhecia as
histórias do pai. Que continuava dando conselhos como
gostava de fazer.
- Sempre é bom ter um motivo razoável para
atravessar a fronteira. E é claro, estar com a
documentação em dia. Se eles perceberem que vão só
fazer festa, podem dar um jeito de parar vocês na volta,
para ver se estão dirigindo bêbados. Aí, a punição é
pesada.... Ainda mais do lado de lá...
- Fica tranqüilo Dr. Arnaldo, vou dizer que
vamos visitar o meu amigo Kurt.
Típico do Beto
pensou Pedro "no mínimo vai
dar um paradinha no caminho para fazer um pequeno
negócio, ou então inventou esta história só para enrolar
o velho". A figura não tinha jeito mesmo.
...
A placa branca visível após uma pequena
elevação da estrada, dava as boas vindas em largas
letras pretas onde se lia "Wilkommen auf dem
Hunsrück Republik". E antes de chegar já avistavam as
luzes de Saint Leopold no lado de lá da fronteira entre a
Republica do Hunsrique e a República Riograndense.
A alfândega hunsrique era bem estruturada, com
cabines bem pintadas e funcionários com uniformes
impecáveis. Pararam o carro em uma delas, onde um
sujeito magro e alto recebeu as identidades de Beto e
olhou com ar desconfiado para a cara dos três.
- O que vão fazer no Hunsrück? – perguntou em
um português arranhado e vagaroso.
- Besuch Herr Kurt – respondeu prontamente
Beto tentando ser simpático com o hunsrique.
"Não é que a figura aplicou a desculpa da visita
ao amigo?" – pensou Pedro.
O funcionário devolveu as identidades sem dizer
mais nada e fez um gesto autorizando-os a irem em
frente.
E o tal de Kurt existia mesmo e acabou indo
junto. Com a mesma idade deles, o hunsrique de Saint
Leopold trabalhava em uma empresa de comércio
exterior que tinha relação com as empresas da família
do Beto. É claro que tinha algum negócio com moedas
no meio, pois os dois só falavam em Marcos pra cá
Escudos pra lá, em uma mistura, por vezes
incompreensível, de alemão e português.
A Hunsrück Republik era um belo país. Uma
estreita faixa de terra que se estendia de leste a oeste
por lindos vales e planícies, espremida entre a
República Riograndense e a Repubblica del Veneto. Sua
população tinha como principal origem, os
descendentes dos imigrantes alemães que começaram a
chegar na região em 1824, no então Império do Brasil.
Vindos em sua maioria, da região do Hunsrück
europeu, ergueram com muito suor a partir da colônia
de São Leopoldo, uma nação próspera e com elevada
qualidade de vida que muito inspirou as repúblicas
vizinhas. Neu Hamburg, onde agora chegavam, era sua
capital com seus modernos prédios envidraçados no
centro, onde apresados executivos se misturavam a uma
população de pele clara, que respirava trabalho e
organização. Nas arborizadas alamedas dos bairros
residenciais, altos edifícios de apartamentos
começavam a ocupar o lugar de antigas casas, muitas
inspiradas no estilo enxaimel, que lembravam à vida
simples do interior do país. Nestas, não faltavam
janelas com floreiras bem cuidadas e cortinas de renda
branca.
Mas à noite, o destino era o histórico bairro Alte
Hamburg. Com suas antigas residências tombadas pelo
Governo da República, se transformou ao longo do
tempo em um agitado centro cultural e gastronômico,
onde museus, galerias de arte, sofisticados restaurantes,
charmosos cafés, e claro, as famosas cervejarias
artesanais, atraiam a essência da boemia do país, e das
repúblicas vizinhas. E àquela hora de sexta-feira suas
ruas estavam repletas de moradores e turistas, que
aproveitavam o calor do fim do verão. Na Cervejaria
SchwarzWald, as mesas do grande terraço eram um
convite a sentar debaixo da copa de um frondoso
Flamboyant, e apreciar sua saborosa cerveja.
- Pelo jeito vamos ter que esperar um pouco aqui
no balcão até liberar uma mesa – falou Maurício para
Pedro, que não prestou a mínima atenção, distraído que
estava com a beleza daquela gente. Enquanto Beto e o
hunsrique continuavam na sua ladainha financeira.
Mas o burburinho das mesas misturando-se ao
tilintar dos copos que se enfileiravam no balcão
próximo aos barris prateados, acabava por tomar conta
do ambiente, tornando difícil escutar aquele assunto
massante. Ágeis garçons e garçonetes com seus aventais
verdes sobre camisas brancas, enchiam bandejas de
copos de diversos tipos de cervejas com cores que iam
do amarelo pálido ao preto, num mosaico de tons
translúcidos.
Mas as cores que agora chamava a atenção de
Pedro, era o dourado dos cabelos e o azul dos olhos de
muitas daquelas belas mulheres. Com idades variadas
sentadas nas mesas ou mesmo encostadas no balcão,
soltavam de vez em quando descompromissadas
gargalhadas, em meio a conversas que pareciam sérias.
Talvez fosse a cerveja, ou somente o espírito alegre e
festeiro desse povo, ao contrário de muitos estereótipos
antagônicos propagados em outras terras.
- Tem umas figuras com cada cara amarrada –
criticava Maurício – Parece que estão sempre
desconfiados...
- Pois é...
Pedro respondeu sem polemizar e fez um esforço
para procurar os amarrados do Maurício
. E acabou
achando um trio na beira da escada que fazia jus ao
comentário dele. O sujeito alto com a cara meio
sardenta e aparentando uns trinta anos estava com jeito
de quem não gostou de encontrar o bar cheio. Ao seu
lado, duas loiras traziam o semblante igualmente sério,
sem esboçar qualquer reação. Pedro colou os olhos em
uma delas. Seus cabelos eram impecavelmente lisos e
claros, e seus olhos azuis brilhavam com mais
intensidade quando os erguia em um olhar panorâmico
sobre o lugar. Sua boca fina e suave mal se mexia ao
falar qualquer coisa com a sua amiga. Ficou a imaginar
o que ela fazia, e qual sua relação com aquele cara e a
outra guria, que parecia um pouco antipática, mas não
era feia.
- Ela deve estar com o alemão.
A voz de Maurício interrompeu seus devaneios.
- Será? – respondeu Pedro.
- Essa gente não se mistura...
Maurício não era fácil. Às vezes radicalizava com
suas impressões ao se referir a quem não fosse
riograndense. Mas se ele tivesse razão? E se os dois
tivessem alguma coisa? E se apesar das aparências os
dois mantinham uma relação que não quisessem expor?
Pedro muitas vezes viajava e começava a fantasiar
demais. Sabia disso e procurava se corrigir.
Conseguiram finalmente a mesa e Pedro acabou
sentando de costas para o trio. Como faria a partir de
então, para tentar se aproximar dela? Talvez, o melhor
seria deixar assim. Provavelmente ela nem se
interessasse nele. E ainda tinha a barreira da língua.
Talvez Maurício tivesse razão, e ele não teria a mínima
chance sendo um estrangeiro. Mas não conseguia para
de pensar nela. Onde será que ela morava? Em Neu
Hamburg? No interior? Sozinha? Com os pais? Tentou
afogar os seus pensamentos em um gole de chopp.
Podia se decepcionar.
- Wie gehts?
- Gut.
Pedro levantou o olhar, e sentiu um frio na
barriga quando viu Kurt cumprimentando o hunsrique,
de cara amarrada, e convidando ele e as loiras para
juntarem mais uma mesa a deles. E no fim do arrastar
de cadeiras, ela agora estava quase a sua frente. Tinha
até lhe dirigido um olhar rápido e um sorriso
extremamente discreto, que ele respondeu com um
outro quase imperceptível. Não podia acreditar. Ela
estava ali na sua frente, na sua mesa. Não sabia o que
dizer. Nem o que fazer. Estava paralisado. Pelo menos
ia ter respondida a pergunta que lhe perturbava. Quem
era ela?
1824 – Colônia de São Leopoldo
A luz dos lampiões do porto, iluminava
fracamente o lago de águas escuras daquela terra
distante. O barco que os levaria para a última etapa de
sua aventura iniciada meses antes no porto de
Hamburgo, aguardava a partida. Iam subir durante
aquela madrugada de 25 de Julho de 1824, um sinuoso
rio até o seu destino final. E o que tinham passado até
então era digno de ser esquecido, e dificilmente seria
superado. De dentro do barco olhava para o povo
daquela cidade no sul do Império do Brasil, e tentava
entender o porquê do seu nome: Porto Alegre. Ela
ouvira falar que tinha sido fundado por casais de uma
ilha de Portugal chamada Açores, a mais de cinquênta
anos. E ela olhava para as gentes, tentando identificar
alguém com traços europeus que lhe fosse familiar.
Nada. Só via gente suja e maltrapilha. E negros, tão
escuros que deles só se enxergavam os dentes, quando
estes sorriam. Aliás eram os únicos que sorriam. Um
sujeito branco de estatura mediana, com um espesso
bigode negro, conversava com o capitão do barco. Pelo
menos este, tinha um aspecto mais limpo e menos
selvagem. Ficou a olhá-lo distraída, para esquecer o frio
e a grossa neblina que tudo encobria. Foi então que o
homem percebeu o olhar dela, e Elizabeth Blau
rapidamente baixou os olhos para o chão do barco, num
misto de vergonha e temor.
- Finalmente vamos partir. Gott segen uns. –
Resmungou seu marido pedindo a benção divina.
Partiram. Mas ela ficou com o olhar do luso na
sua imaginação. Provavelmente nunca mais ia vê-lo.
Iam para uma colônia só com sua gente. Viver uma
nova vida. Talvez tivesse contato com a gente desta
terra, mas tentaria evitar. Melhor ficar no seu mundo.
Eles falavam outra língua, conheciam o lugar, eram os
donos daquelas terras, daquele império. E eles
humildemente pegariam o seu quinhão e tentariam
sobreviver.
Com o barco já longe da cidade, e imerso na
escuridão de uma noite sem lua, lembrou que sentia
algo diferente nos últimos dias, e não parecia ser
somente o ar daquele lugar. Desconfiava que estivesse
grávida do primeiro filho, mas ainda não falara nada
para o marido. Esperaria que vingasse. E que eles
sobrevivessem. E pudessem vê-lo crescer, nesta nova
terra, habitada por gente diferente. Como aquele
homem, que de súbito ficara curiosa para saber quem
era. Qual a sua história.
Com a alvorecer, podia-se aos poucos perceber a
vegetação da margem daquele rio. Era vistosa e variada,
apesar do tom cinzento que aquela manhã de nevoeiro
começava a derramar sobre ela. Helmuth Blau agora
conversava com um sujeito magro de olhar triste que
recém acordara. Havia lhe contado que sua mulher
havia morrido no navio, mas que ele já havia aceitado
os destinos de Gott, e tratava de pensar no seu futuro na
colônia. Tinha sido um líder comunitário na sua aldeia
no Hunsrück, mas uma invasão das tropas de Napoleão,
o fizera mudar para o norte. Foi quando conheceu
pessoalmente um dos principais agentes da imigração
um grande sujeito
disse.
E seguiram falando do que haviam deixado para
trás e os sonhos do futuro, com Elizabeth escutando-0s
enquanto o barco vencia as curvas daquele sinuoso rio.
Seu marido como sempre, tinha aspirações modestas.
Sonhava com um lote em um lugar aprazível, onde
pudesse começar sua horta e sua plantação. Ficava a
imaginar como faria a sua casa e o dia que poderia
sentar na cadeira que ele mesmo faria em frente daquilo
que seria o seu castelo. E onde viveria em paz com sua
Elizabeth e os filhos que Gott lhes desse. O outro ouvia
quieto os seus desejos, mas o interrompia para delinear
algo maior.
- Será bom se os lotes forem perto uns dos
outros, para ficar fácil nos encontrarmos. Esta é uma
terra nova e não conhecemos nada. Não sei se os lusos
vão nos ajudar muito. – disse com um olhar
desconfiado - Também temos que erguer nossa igreja.
Nós luteranos, somos maioria, e a imperatriz do Brasil
nos garantiu liberdade de culto. Tem muito trabalho
pela frente e bom seria se viesse mais de nós. O senhor
sabe. A união faz a força.
Helmuth concordava amigavelmente com o
estranho. Pois mesmo não pensando do mesmo jeito e
achando-o ansioso demais, não queria arrumar
inimizades logo no começo.
Lentamente, o barco começou a se aproximar de
um descampado na margem direita. Um leve murmúrio
começava a se ouvir entre os trinta e nove passageiros, e
a emoção começava a tomar conta do coração de
Elizabeth.
A gravidez a deixara sensível. Olhava para a
margem onde uma frondosa árvore um pouco acima no
descampado, parecia aguardá-los para ser seu primeiro
abrigo no meio daquela névoa fechada. O solavanco do
barco encalhando na margem lhe deu um pequeno
susto. Não podia acreditar. Chegaram. Não conteve as
lágrimas, e desandou em um choro infantil. Helmuth ao
seu lado, lhe abraçou de forma suave afagando seus
longos cabelos claros, sem conseguir dizer nada. Seu
olhar era fixo naquela terra. Sua nova terra. Haviam
chegado a Colônia de São Leopoldo.
1990 – Fronteiras fechadas
O lilás das lavandas, da plantação que se estendia
por um punhado de hectares daquelas terras íngremes,
começava a mudar de tom ao cair do dia. A sombra que
começava a cobrir o vale, escurecia as imensas fileiras
de flores púrpuras. Apenas mais uma amostra e a
colheita que Helga Blau fazia semanalmente na
propriedade dos pais em Ruetersberg, estava completa.
Olhou no relógio e viu que estava na hora de pegar a
estrada para Neu Hamburg, onde ainda passaria na
universidade para deixar as amostras no laboratório.
O familiar ruído de um motor ao longe, a fez
levantar os olhos e visualizar seu pai sentando ao lado
de um funcionário em cima do trator, voltando da lide
do dia. Mesmo de longe, podia perceber seu olhar
distante, apreciando a paisagem como se a visse pela
primeira vez, apesar de morar ali desde a infância.
- Helga! Deine Kuchen!
A voz que lhe chamava a atenção agora, era de
sua mãe, que já conhecendo sua rotina das quintas-
feiras, a chamava da varanda da casa esfregando as
mãos no avental. Já havia dito a ela que sua Kuchen era
maravilhosa e que ela devia vender aos turistas nas
envidraçadas confeitarias da cidade. Mas ela preferia
ficar com a produção caseira. Dizia que muita
quantidade faria cair sua qualidade. Além do mais,
ganhava mais se ajudasse o marido no gerenciamento
da plantação de lavandas, e na comercialização delas
para as empresas de perfumes.
- Seu pai está muito preocupado com os boatos
que a maior fábrica de perfumes de Kaffeschneiss, vai
ser vendida para um grupo de cosméticos de
Montenegro. Eles estão comprando várias fábricas
pequenas com dinheiro de um banco alemão.
Helga sabia que a concentração deste tipo
indústria de cosméticos nas mãos de poucos
fabricantes, poderia ser prejudicial para plantadores
como eles. A preocupação do pai era com o crescente
poder de barganha das grandes empresas, na definição
do preço de compra da matéria-prima de perfumes e
óleos aromáticos. Do lugar que ocupava na mesa da sala
podia vê-lo na frente do novo computador, a analisar os
números da produção da primeira quinzena do mês.
Sabia que o seu real sonho era ter sua própria fábrica de
perfumes de lavanda, e sempre torcia para que ele
pudesse realizá-lo.
Olhou no grande relógio da sala que marcava seis
e meia, e tratou de terminou seu café com Kuchen, pois
era hora de ir para a capital. Não gostava de descer a
serra de noite.
- Tchus mama. Tchus papa.
- Auf Wiedersehen –respondeu a mãe da
cozinha.
Seu pai apenas acenou do escritório.
...
Já passava das nove quando Helga chegou ao
apartamento que dividia com o irmão na parte alta de
Neu Hamburg, em uma larga avenida repleta de
boutiques de marcas famosas, e sofisticados prédios
com vista para o centro da cidade. Abria algumas
correspondências que pegara na portaria, quando o
telefone tocou.
- Hallo!
- Helga? Ist mich, Karla.
Karla Käse era uma de suas melhores amigas.
Gostava dela, apesar de suas seguidas crises existenciais
e pessimismo crônico.
- Nem sabe da maior! – seguiu Karla sem deixar
Helga falar – A Wanda vai noivar.
- Mein Gott! Mas ela ta namorando há pouco
mais de um ano.
Helga definitivamente estava surpresa. O
casamento era algo ainda distante para ela. Só o que lhe
interessava no momento era sua pesquisa. Tinha planos
de continuá-la no mestrado a partir de 1991, depois da
formatura em Farmácia. Estava até pensando em sair
de Hunsrück, atravessar a fronteira, discutir e mostrar
seus conhecimentos em outros países. Havia se
empolgado com a participação em um simpósio sul-
americano em Dante Alighieri, ficando surpresa como
em plena Capital da vizinha Reppublica del Veneto,
alguns colegas pouco sabiam da pesquisa que se fazia
em Neu Hamburg. Era preciso mais proximidade,
pensava. O conhecimento não podia ter fronteiras.
Mas Karla estava mesmo preocupada era com
Wanda.
- Pois é.... Parece que é sério mesmo. Vai ter até
um jantar na casa dela, para selar o compromisso. Ela
deve ligar para você para contar pessoalmente a
novidade. Eu é que não me contive e resolvi falar.
- Ele é médico, não é?
- É. Ele é de Saint Leopold, e com trinta anos já
um dos mais requisitados cirurgiões do país. Inclusive
teria sido convidado por um grupo de riograndenses
para participar de cirurgias em um tradicional hospital
de Porto Alegre. Até passaporte especial ele ia
conseguir.
Helga ficou a imaginar a amiga vestida de noiva
entrando na Drei Könige Magie Kirche, com o relógio
iluminado da torre marcando oito horas. Também viu a
si mesma vestida discretamente segurando uma bolsa,
sozinha e com o mesmo olhar distante que vira em seu
pai naquela tarde. Mas ficava feliz por ela. Wanda era
alegre, tranqüila e sempre passava uma energia
positiva. Ultimamente, com os compromissos da
faculdade, estavam se vendo pouco. O noivo, Helga
tinha visto apenas uma vez.
- É. Parece que estamos entrando em outra fase
da vida. Será que ela vai ser a primeira de nós a casar? –
perguntou Helga.
- Pelo jeito.... Mas não sei não. Eles têm muita
diferença de idade. São sete anos e ela ainda nem se
formou. Se eu bem a conheço, vai querer seguir a
mesma especialidade dele.
- Mas nada impede que seja um noivado longo,
com o casamento ficando para depois.
- Pelo menos ela tá melhor encaminhada.... Já
eu! Não sei nem quando vou ter um salário decente,
imagina um marido.
- Karla!
Não adiantava. Karla era uma desiludida por
natureza. Recém tinha se formado em administração, e
já estava trabalhando no maior banco privado do país.
Helga acreditava que ela tinha boas possibilidades de
crescimento na empresa, pois era organizada e
disciplinada desde os tempos que estudavam juntas na
escola secundária. Mas sempre achava alguma coisa
para reclamar.
- Ainda se tivessem caras interessantes no meu
setor. Mas só tem uns metidos a besta que acham que
tem solução para tudo. Olha... Não é fácil..... Mas me
conta... E as suas pesquisas? Como vão?
- Indo... Quero ver se até o fim do ano publico
meu artigo científico. Tenho que começar a decidir onde
vou fazer o mestrado.
A voz familiar no corredor e o barulho da chave
na porta chamaram a atenção de Helga. Era seu irmão
Ludwig que chagava atendendo o celular.
- Ja... Gut. Neu Hamburg Frankfurt, direto. Dez
da noite de segunda... Chega lá na terça de manhã... Ok.
Amanhã passo aí para pegar as passagens. Gute Nacht.
Deu um rápido aceno para a irmã, que seguiu no
telefone.
- É o Lud. Acho vai para a Alemanha de novo.
- Esse seu irmão não para, hein? Daqui a pouco
ele vai se tornar piloto de avião, de tanto que viaja. É
outro que só pensa em trabalho.
Helga sabia que era uma indireta para ela. Mas
não se importava. Conhecia Karla, e entendia o seu
jeito. Eram amigas de longa data, e este tipo de
comentário não a abalava.
- E amanhã? – continuou Karla - vamos sair?
Não me diz que você tem que ir para o laboratório no
sábado de manhã.
- Nem me fala. Tenho que preparar umas
amostras para semana que vem.
- Não tem desculpa. Vamos sair. Estamos
precisando. Passo aí para irmos na SchwarzWald.
Vamos tomar umas cervejas, e brindar o noivado da
Wanda.
...
Com a água do chuveiro a lhe massagear as
costas, Helga ainda pensava na sua pesquisa, quando
Ludwig bateu na porta.
- Tua amiga chegou. Já mandei subir.
- Danke! – agradeceu falando alto para que o
irmão a escutasse.
Karla tocou a campainha do apartamento e
Ludwig a recebeu com um aperto de mão, convidando-a
para sentar.
- A Helga ta no banho e já vem. Bebes alguma
coisa?
- Nein. Danke. – respondeu Karla negando a
oferta.
Da janela da sala, se via o movimento da noite
que àquela hora começava a aumentar. Um mar de
carros se formava na avenida em direção aos bares de
Alte Hamburg. Sexta-feira. Noite de tomar cerveja.
Ainda mais com aquele calor de fim de verão.
- Vão aonde?
- SchwarzWald. Quer ir junto?
- Quem sabe...
Ludwig era meio caseiro, mas se convidavam
para sair, ele ia. Era como a irmã. Precisava de um
incentivo. Sempre ficava na dúvida, mas acabava
topando. Como irmão mais velho, se sentia responsável
por Helga e procurava sempre protegê-la. Chegava a
ficar preocupado com ela, quando viajava a trabalho
pela empresa de exportação onde recém tinha sido
promovido.
Helga apareceu pronta na sala e reforçou o
convite ao irmão, que decidiu acompanhá-las. E os três
saíram a pé pela avenida a olhar as vitrines e o vaivém
dos carros. E a cruzar com famílias, sentadas em bancos
de madeira ao lado de floreiras, apreciando o
tradicional sorvete do bairro. O melhor da cidade é o
que se dizia.
- E o teu pai como anda?
Helga quebrou o silêncio de uma forma sutil que
a abordagem do assunto merecia. A situação do velho
Käse inspirava cuidados depois do último enfarte.
- Nada boa. E o pior é que ele não quer obedecer
nem os médicos, e muito menos a mãe. Sabe como é.
Passou a vida inteira mandando, desconfiando de tudo
e de todos...
- É. Não deve ser nada fácil pra ele.
Helga conhecia a sua história. Havia chegado a
general do Exército de Hunsrück e servido a vida inteira
na divisão de fronteira de Montenegro. Diziam até que
ele teria pertencido a um serviço secreto do governo,
que investigava a vida principalmente dos que viviam
do lado riograndense da cidade binacional. Estava
sempre achando que um dia os gaúchos invadiriam seu
país, e seria pelas ruas da cidade. Karla havia sido
criada nesse meio, misto de medo e senso de dever. Seu
pai sempre dizia que a situação podia mudar a qualquer
hora, mas não dizia nem por que e o que aconteceria.
Sua mãe tentava minimizar toda esta desconfiança,
mantendo o ambiente familiar equilibrado. Fazia de
tudo para levar uma vida normal e dar uma boa
educação a filha única do casal. Com o passar do tempo
e com muito jeito convenceu o marido a permitir que
Karla estudasse na capital. Agora, sentia sua falta e
achava que estava longe, apesar de em menos de uma
hora se ir de carro de uma cidade a outra.
- Neste fim de semana, preciso ir lá pra ver como
ele está. Vou comer um Spätzlle que só minha mãe sabe
fazer, e tentar acalmar os dois.
Depois de quinze minutos de caminhada lenta,
chegaram a cervejaria SchwarzWald que estava em uma
de suas noites perfeitas. Repleta de gente bonita e bem
alinhada, em um amplo leque de gerações. Na porta do
banheiro, duas adolescentes cochichavam e riam,
enquanto em uma mesa próxima, três senhores de
cabelos brancos discutiam as mudanças no parlamento
com as eleições de Setembro, e a provável mudança do
primeiro-ministro. "Escreve o que eu digo, vai ter
mudança na primavera, e não será somente uma florada
nova" falava com um ar irônico, o mais magro deles. O
que estava a sua frente corou e falou mais alto depois de
bater a caneca com força na mesa. "Pois ninguém pode
com os liberais, vai ser outra vitória esmagadora. O
comunismo acabou e vai enfraquecer a social
democracia na Europa. Por isso aqui não vai mudar
nada. Die Mauer fiel." Bradou em referência ao muro de
Berlim que já estava virando pó, e influenciando aquele
pedaço germânico da América do Sul. Também havia
casais jovens jantando pratos típicos ou mesmo da
cozinha internacional, e os homens solteiros na faixa
dos vinte e poucos anos com seus cabelos penteados
com gel, o que não era muito do agrado de Helga. A
versão feminina destes ficava por conta das sempre
muito arrumadas representantes das ricas famílias
tradicionais de Neu Hamburg, vivendo em seu mundo
particular que não ia além dos bairros nobres da capital
do país.
Subiram para o terraço, pois a parte de baixo
estava lotada, com um ambiente cheirando a fumaça de
cigarros, misturada ao aroma da cerveja saindo das
torneiras do balcão principal. Lá em cima o ambiente
era mais arejado. Ideal para aquela noite, mas
igualmente repleto.
- Se tivéssemos vindo mais cedo...
O comentário de Ludwig parecia fora do lugar,
para quem foi no embalo do convite de Karla, sem nem
sequer se arrumar direito. Mas Helga sabia que ele
gostava de estar no controle