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Fronteiras
Fronteiras
Fronteiras
E-book507 páginas6 horas

Fronteiras

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Sobre este e-book

E se por um capricho do tempo, um passado diferente gerasse um presente de fronteiras mais próximas? E se outras nações fossem criadas, como um desfecho alternativo da Revolução Farroupilha na sua intenção de separar a província do então império do Brasil? O universitário Pedro Figueiras está iniciando sua vida adulta na República RioGrandense, quando seu coração transpõe barreiras geográficas e culturais encontrando encantos nos olhos de Helga Blau na Hunsrück Republik e de Giovanna Mare na Republica del Veneto. E juntos com o juliano Miguel Madeira, se encontram cruzando fronteiras de nações prósperas e extremamente desenvolvidas, frutos deste desvio na linha do tempo. A caminhada desse quarteto amoroso, é intercalada com a narrativa da incrível saga de seus antepassados, na condição de imigrantes portugueses, alemães e italianos, iniciada quando da sua chegada da Europa nos séculos XVIII e XIX. E estes personagens do passado ajudam a conduzir suas nações rumo à independência, na mesma medida que os do presente vencem as barreiras da sua construção pessoal e de suas relações. Fronteiras é um mergulho na alma desta gente. Suas diferenças, sua cultura, sua história e seus valores. É também uma homenagem a sua riqueza interior e à região em que vivem.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento15 de dez. de 2015
Fronteiras

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    Pré-visualização do livro

    Fronteiras - João Antônio Queiroz De Carvalho

    FRONTEIRAS

    I – CONSTRUÇÃO

    Um desvio no passado...

    Um futuro alternativo...

    República

    Juliana

    Reppublica

    . Desterro

    del Veneto

    . Dante Alighieri

    Hunsrück . Neu Hamburg

    República

    . Porto Alegre

    Republik

    Riograndense

    João Antônio Queiroz de Carvalho

    1990 –Caras amarradas.

    Da janela se via uma intensa faixa laranja no

    horizonte, deixada pelo sol poente naquele fim de tarde

    de verão. As luzes que iluminavam as grandes esferas

    verde, amarela e vermelha, do Parque de Exposições de

    Esteio, se acendiam com o cair da noite oferecendo um

    espetáculo de cores e formas. Na tv, uma figura magra

    de terno e gravata com cabelo lambido, discursava

    prometendo jurar a constituição e libertar o país da

    miséria e da injustiça. Pedro tentou trocar de canal, mas

    o dito homem estava em todos. "O que é que eu tenho a

    ver, com o novo presidente do Brasil?", pensava.

    Voltou a olhar pela janela do amplo apartamento

    do décimo andar, onde morava com os pais. Estranho.

    As esferas do parque agora estavam escuras... A noite

    estava escura. Sombria... Com cerração... Já não estava

    mais na sala... Estava no meio da rua e o homem de

    cabelo lambido estava ao vivo na sua frente....

    Levantou-se, virou de costas e tentou sair, mas uma

    mão no seu ombro o fez girar a cabeça. O homem

    arregalou os olhos e bradou Minha gente! E a mão

    agora balançava o seu ombro de modo suave...

    - Acorda Pedrinho... Tu não tens faculdade,

    amanhã cedo?

    Era sua mãe acordando-o, sendo ao mesmo

    tempo delicada e disciplinadora. Abriu os olhos, olhou

    para a tevê e viu que já estava desligada.

    - Tava até sonhando.... É... Amanhã começa às

    sete e meia.

    - Eu também vou me recolher... Estou morrendo

    de sono.

    - Era um sonho muito louco – resmungou Pedro

    quase para si mesmo.

    ...

    Na mesa do café da manhã enquanto comia um

    pedaço de pão com manteiga, Pedro lia as manchetes do

    jornal que o pai tinha nas mãos. Os sociais-democratas

    estavam definindo o candidato para a eleição

    presidencial de novembro.

    - Vão ganhar mais uma vez? – perguntou a mãe

    já adivinhando a resposta

    - É o que dizem... – respondeu o pai

    Pedro terminou o café em silêncio e se levantou

    para sair. Por um instante lembrou de algumas palavras

    do tal presidente do Brasil que estava no seu sonho:

    Miséria Injustiça.

    Que estranho? se questionou.

    A manhã já estava quente àquela hora e os bares

    e cafés do centro estavam fechados com a ressaca da

    noite anterior. Se não estivesse tão cansado, teria dado

    uma volta rápida para ver o movimento. Quinta era dia

    de agito, e no Café Ponche Verde sempre encontrava

    um conhecido ou alguma guria que estava de olho.

    Em cinco minutos de caminhada já estava na

    estação para pegar o trem pra faculdade.

    Sentia orgulho da sua Universidade Nacional

    Riograndense. A mais conceituada entidade de ensino

    superior do país, e a com prédios antigos mais belos. E

    os da centenária sede de Canoas que podiam ser

    avistados por trás dos altos coqueiros da entrada, em

    nada deviam em imponência às principais unidades de

    Porto Alegre. O campus de menor tamanho grudado na

    praça central da cidade dava um ar de aconchego e

    convivência que estimulavam idéias e planos.

    E Pedro já começava a pensar nos seus.

    A escolha pela energia eólica, começava a tomar

    forma, e era cada vez mais presente. Sempre buscava se

    informar mais a respeito, até mesmo para sair da

    mesmice dos estudos. Afinal, em menos de dois anos

    estaria formado em Engenharia Elétrica e estava na

    hora de começar a buscar um rumo. O seu norte como

    dizia o pai.

    - Fala Pedro Figueiras.... Tudo em cima?

    - E aí...

    Maurício Flores era o colega mais entusiasmado

    com o futuro, com a profissão, com o país... E com as

    mulheres. Sempre tinha alguém... Ou pelo menos dizia

    que tinha... Mas gostava de uma festa com os amigos.

    Extrovertido como sempre, falava pelos cotovelos com a

    inevitável empolgação naquele encontro na alameda

    principal do campus.

    - Vi uma reportagem ontem na tevê que falava

    dos planos de algumas empresas de Pelotas para esta

    década. Eles querem implantar mais de cem aero-

    geradores nos próximos três anos. Disseram ainda que

    no ano dois mil, a energia eólica já deverá representar

    quase metade de tudo que o Rio Grande consome. Já

    pensou?

    - Li a respeito disso alguns dias atrás. Os testes

    que fizeram em Osório estão dando bons resultados. E

    se juntarmos com o que já é produzido com a queima

    do carvão e as hidrelétricas, vai ter energia de sobra.

    - Vivente, escreve o que eu vou te dizer: nós

    ainda vamos assumir a liderança econômica da América

    do Sul. Vamos deixar a Bandeirante e o Brasil para trás.

    A República Bandeirante era a meca econômica

    do continente, embora não estivesse muito a frente do

    Brasil e seu imenso território, e da República

    Riograndense, ou simplesmente Rio Grande para os

    seus. Muitos falavam em emigrar para lá, fazer sucesso

    em São Paulo, Curitiba, Santos ou outro grande centro

    industrial. Mas Pedro e Maurício não pensavam assim,

    e por aqui queriam ficar.

    - É. Parece que a éolica é mesmo o meu caminho.

    Quero começar a me preparar desde já. Estou até

    pensando em fazer uns cursos extras sobre o assunto. –

    respondeu Pedro com ar mais decidido.

    No fim da escadaria de frente ao quadro de

    formandos de engenharia de 1905, se despediram:

    - Alguma combinação para hoje à noite? –

    iniciou Maurício.

    - Não sei, estou sem inspiração.

    - Bueno. Falo com o Beto e depois te ligo.

    - Feito.

    ...

    Noite quente. O interfone toca.

    - Seu Pedro? Os senhores Maurício e José

    Roberto se encontram aqui embaixo. Posso mandar

    subir?

    - Pode Seu Rodolfo.

    Seu Rodolfo, o porteiro do prédio, era engraçado.

    Gente finíssima. Estava há anos ali e tratava todos com

    uma formalidade rigorosa. Nascido em Bagé, se

    orgulhava de ter concluído a escola técnica na capital.

    Estava sempre lendo um livro, quando não havia muito

    movimento na portaria. O que juntamente com seus

    cabelos brancos e corpo magro, lhe dava um ar de

    filósofo. Com seriedade e mansidão na voz, muitas

    vezes costumava fazer breves comentários políticos com

    quem estava esperando o elevador. Mas sempre com

    educada cautela, evitando causar desconforto com suas

    opiniões.

    Pedro recebeu os amigos e foram logo para a

    sacada. Sentado no sofá da sala, seu pai assistia ao

    noticiário do Correspondente Nacional. Beto foi logo

    lançando o convite:

    - Tchê, vamos nos tocar para Neu Hamburg?

    - Neu Hamburg? Atravessar a fronteira? Sempre

    dá rolo. Os caras complicam por qualquer coisa! Ainda

    mais de noite – respondeu Pedro um tanto ressabiado.

    - Deixa comigo. Não dá nada.

    Zé Roberto era sempre otimista. Era sabido que a

    fronteira com a República do Hunsrique não era tão

    fácil de transpor. Apesar das promessas da integração

    sul americana, ainda havia algumas barreiras a serem

    derrubadas. Sempre era preciso ter uma justificativa

    plausível para cruzá-la, e muitas vezes simplesmente

    não permitiam a entrada no país, e o estrangeiro

    voltava sem receber maiores explicações. Ainda mais se

    fossem três Riograndenses com a cara de guri, em plena

    noite de sexta-feira.

    - Sei não. Fim do ano passado, nós ficamos uma

    hora tentando convencer o policial de fronteira que

    íamos fazer uma visita à Usina Nuclear de Kleine

    Kirche...

    - Mas acabaram conseguindo – interrompeu

    Beto

    - Depois de muita conversa, e por que tinha um

    colega que falava alemão fluente.

    - Também! Vocês queriam fazer uma visita de

    estudos em um sábado à tarde...

    - Que nada... Eles são dureza mesmo. Nem a

    queda do Muro de Berlim e a festa dos alemães com a

    unificação, fizeram eles mudarem. – se meteu Maurício.

    – Depois dizem que o que ocorre na Europa acaba

    respingando aqui.

    Com seu jeito nacionalista, torcia um pouco o

    nariz para estrangeiros, principalmente se falassem

    uma língua incompreensível para ele. Os vênetos ele

    ainda aturava, mas com os loiros não ia lá muito com

    a cara. Só ia para Novo Hamburgo, como gostava de

    traduzir o nome da capital do país, por que era parceiro

    e gostava de uma aventura. Principalmente se

    envolvesse uma bela morena.

    - Não se preocupem gurizada. Se a formos

    presos, é só ligar para o Doutor Figueiras, que ele livra a

    barra da gente. Hein Doutor? – ironizou Beto diante de

    um sorriso nada amistoso de Pedro

    Beto era desse jeito meio irônico e conversador.

    Porto Alegrense tradicional, era filho de um grande

    empresário da capital, e já andava envolvido com

    negócios, não necessariamente da família. Vivia

    pensando o que vender e para quem, com idéias

    mirabolantes. Mas gostava mesmo era de fazer câmbio

    com moedas da região. Certamente a ida à Neu

    Hamburg, devia ser por algum negócio vantajoso na

    troca de Escudos por Marcos, com algum conhecido seu

    ou um aluno-integração da UNR.

    Mas com a pergunta, Arnaldo Figueiras se

    levantou lentamente depois de largar o controle remoto,

    e se dirigiu à sacada onde eles estavam. Conhecido na

    região e em boa parte do país, como um excelente

    advogado especializado em comércio alfandegário,

    Arnaldo Figueiras não era exatamente a pessoa

    indicada para o assunto.

    - O Beto disse que o senhor vai nos livrar da

    cadeia se gente tomar todas e quebrar umas canecas de

    chopp em uma cervejaria de Hamburgo Velho – riu

    Maurício.

    Arnaldo sorriu discretamente e foi logo falando

    sem perder a polidez.

    - Nesse caso, nem o melhor escritório de Porto

    Alegre livra a cara de vocês.... Não brinquem muito com

    eles, hein! Vocês sempre serão estrangeiros. A

    legislação está mudando, e tem muita coisa nova que

    ainda não foi bem absorvida.

    Pedro ouvia em silêncio, pois conhecia as

    histórias do pai. Que continuava dando conselhos como

    gostava de fazer.

    - Sempre é bom ter um motivo razoável para

    atravessar a fronteira. E é claro, estar com a

    documentação em dia. Se eles perceberem que vão só

    fazer festa, podem dar um jeito de parar vocês na volta,

    para ver se estão dirigindo bêbados. Aí, a punição é

    pesada.... Ainda mais do lado de lá...

    - Fica tranqüilo Dr. Arnaldo, vou dizer que

    vamos visitar o meu amigo Kurt.

    Típico do Beto pensou Pedro "no mínimo vai

    dar um paradinha no caminho para fazer um pequeno

    negócio, ou então inventou esta história só para enrolar

    o velho". A figura não tinha jeito mesmo.

    ...

    A placa branca visível após uma pequena

    elevação da estrada, dava as boas vindas em largas

    letras pretas onde se lia "Wilkommen auf dem

    Hunsrück Republik". E antes de chegar já avistavam as

    luzes de Saint Leopold no lado de lá da fronteira entre a

    Republica do Hunsrique e a República Riograndense.

    A alfândega hunsrique era bem estruturada, com

    cabines bem pintadas e funcionários com uniformes

    impecáveis. Pararam o carro em uma delas, onde um

    sujeito magro e alto recebeu as identidades de Beto e

    olhou com ar desconfiado para a cara dos três.

    - O que vão fazer no Hunsrück? – perguntou em

    um português arranhado e vagaroso.

    - Besuch Herr Kurt – respondeu prontamente

    Beto tentando ser simpático com o hunsrique.

    "Não é que a figura aplicou a desculpa da visita

    ao amigo?" – pensou Pedro.

    O funcionário devolveu as identidades sem dizer

    mais nada e fez um gesto autorizando-os a irem em

    frente.

    E o tal de Kurt existia mesmo e acabou indo

    junto. Com a mesma idade deles, o hunsrique de Saint

    Leopold trabalhava em uma empresa de comércio

    exterior que tinha relação com as empresas da família

    do Beto. É claro que tinha algum negócio com moedas

    no meio, pois os dois só falavam em Marcos pra cá

    Escudos pra lá, em uma mistura, por vezes

    incompreensível, de alemão e português.

    A Hunsrück Republik era um belo país. Uma

    estreita faixa de terra que se estendia de leste a oeste

    por lindos vales e planícies, espremida entre a

    República Riograndense e a Repubblica del Veneto. Sua

    população tinha como principal origem, os

    descendentes dos imigrantes alemães que começaram a

    chegar na região em 1824, no então Império do Brasil.

    Vindos em sua maioria, da região do Hunsrück

    europeu, ergueram com muito suor a partir da colônia

    de São Leopoldo, uma nação próspera e com elevada

    qualidade de vida que muito inspirou as repúblicas

    vizinhas. Neu Hamburg, onde agora chegavam, era sua

    capital com seus modernos prédios envidraçados no

    centro, onde apresados executivos se misturavam a uma

    população de pele clara, que respirava trabalho e

    organização. Nas arborizadas alamedas dos bairros

    residenciais, altos edifícios de apartamentos

    começavam a ocupar o lugar de antigas casas, muitas

    inspiradas no estilo enxaimel, que lembravam à vida

    simples do interior do país. Nestas, não faltavam

    janelas com floreiras bem cuidadas e cortinas de renda

    branca.

    Mas à noite, o destino era o histórico bairro Alte

    Hamburg. Com suas antigas residências tombadas pelo

    Governo da República, se transformou ao longo do

    tempo em um agitado centro cultural e gastronômico,

    onde museus, galerias de arte, sofisticados restaurantes,

    charmosos cafés, e claro, as famosas cervejarias

    artesanais, atraiam a essência da boemia do país, e das

    repúblicas vizinhas. E àquela hora de sexta-feira suas

    ruas estavam repletas de moradores e turistas, que

    aproveitavam o calor do fim do verão. Na Cervejaria

    SchwarzWald, as mesas do grande terraço eram um

    convite a sentar debaixo da copa de um frondoso

    Flamboyant, e apreciar sua saborosa cerveja.

    - Pelo jeito vamos ter que esperar um pouco aqui

    no balcão até liberar uma mesa – falou Maurício para

    Pedro, que não prestou a mínima atenção, distraído que

    estava com a beleza daquela gente. Enquanto Beto e o

    hunsrique continuavam na sua ladainha financeira.

    Mas o burburinho das mesas misturando-se ao

    tilintar dos copos que se enfileiravam no balcão

    próximo aos barris prateados, acabava por tomar conta

    do ambiente, tornando difícil escutar aquele assunto

    massante. Ágeis garçons e garçonetes com seus aventais

    verdes sobre camisas brancas, enchiam bandejas de

    copos de diversos tipos de cervejas com cores que iam

    do amarelo pálido ao preto, num mosaico de tons

    translúcidos.

    Mas as cores que agora chamava a atenção de

    Pedro, era o dourado dos cabelos e o azul dos olhos de

    muitas daquelas belas mulheres. Com idades variadas

    sentadas nas mesas ou mesmo encostadas no balcão,

    soltavam de vez em quando descompromissadas

    gargalhadas, em meio a conversas que pareciam sérias.

    Talvez fosse a cerveja, ou somente o espírito alegre e

    festeiro desse povo, ao contrário de muitos estereótipos

    antagônicos propagados em outras terras.

    - Tem umas figuras com cada cara amarrada –

    criticava Maurício – Parece que estão sempre

    desconfiados...

    - Pois é...

    Pedro respondeu sem polemizar e fez um esforço

    para procurar os amarrados do Maurício. E acabou

    achando um trio na beira da escada que fazia jus ao

    comentário dele. O sujeito alto com a cara meio

    sardenta e aparentando uns trinta anos estava com jeito

    de quem não gostou de encontrar o bar cheio. Ao seu

    lado, duas loiras traziam o semblante igualmente sério,

    sem esboçar qualquer reação. Pedro colou os olhos em

    uma delas. Seus cabelos eram impecavelmente lisos e

    claros, e seus olhos azuis brilhavam com mais

    intensidade quando os erguia em um olhar panorâmico

    sobre o lugar. Sua boca fina e suave mal se mexia ao

    falar qualquer coisa com a sua amiga. Ficou a imaginar

    o que ela fazia, e qual sua relação com aquele cara e a

    outra guria, que parecia um pouco antipática, mas não

    era feia.

    - Ela deve estar com o alemão.

    A voz de Maurício interrompeu seus devaneios.

    - Será? – respondeu Pedro.

    - Essa gente não se mistura...

    Maurício não era fácil. Às vezes radicalizava com

    suas impressões ao se referir a quem não fosse

    riograndense. Mas se ele tivesse razão? E se os dois

    tivessem alguma coisa? E se apesar das aparências os

    dois mantinham uma relação que não quisessem expor?

    Pedro muitas vezes viajava e começava a fantasiar

    demais. Sabia disso e procurava se corrigir.

    Conseguiram finalmente a mesa e Pedro acabou

    sentando de costas para o trio. Como faria a partir de

    então, para tentar se aproximar dela? Talvez, o melhor

    seria deixar assim. Provavelmente ela nem se

    interessasse nele. E ainda tinha a barreira da língua.

    Talvez Maurício tivesse razão, e ele não teria a mínima

    chance sendo um estrangeiro. Mas não conseguia para

    de pensar nela. Onde será que ela morava? Em Neu

    Hamburg? No interior? Sozinha? Com os pais? Tentou

    afogar os seus pensamentos em um gole de chopp.

    Podia se decepcionar.

    - Wie gehts?

    - Gut.

    Pedro levantou o olhar, e sentiu um frio na

    barriga quando viu Kurt cumprimentando o hunsrique,

    de cara amarrada, e convidando ele e as loiras para

    juntarem mais uma mesa a deles. E no fim do arrastar

    de cadeiras, ela agora estava quase a sua frente. Tinha

    até lhe dirigido um olhar rápido e um sorriso

    extremamente discreto, que ele respondeu com um

    outro quase imperceptível. Não podia acreditar. Ela

    estava ali na sua frente, na sua mesa. Não sabia o que

    dizer. Nem o que fazer. Estava paralisado. Pelo menos

    ia ter respondida a pergunta que lhe perturbava. Quem

    era ela?

    1824 – Colônia de São Leopoldo

    A luz dos lampiões do porto, iluminava

    fracamente o lago de águas escuras daquela terra

    distante. O barco que os levaria para a última etapa de

    sua aventura iniciada meses antes no porto de

    Hamburgo, aguardava a partida. Iam subir durante

    aquela madrugada de 25 de Julho de 1824, um sinuoso

    rio até o seu destino final. E o que tinham passado até

    então era digno de ser esquecido, e dificilmente seria

    superado. De dentro do barco olhava para o povo

    daquela cidade no sul do Império do Brasil, e tentava

    entender o porquê do seu nome: Porto Alegre. Ela

    ouvira falar que tinha sido fundado por casais de uma

    ilha de Portugal chamada Açores, a mais de cinquênta

    anos. E ela olhava para as gentes, tentando identificar

    alguém com traços europeus que lhe fosse familiar.

    Nada. Só via gente suja e maltrapilha. E negros, tão

    escuros que deles só se enxergavam os dentes, quando

    estes sorriam. Aliás eram os únicos que sorriam. Um

    sujeito branco de estatura mediana, com um espesso

    bigode negro, conversava com o capitão do barco. Pelo

    menos este, tinha um aspecto mais limpo e menos

    selvagem. Ficou a olhá-lo distraída, para esquecer o frio

    e a grossa neblina que tudo encobria. Foi então que o

    homem percebeu o olhar dela, e Elizabeth Blau

    rapidamente baixou os olhos para o chão do barco, num

    misto de vergonha e temor.

    - Finalmente vamos partir. Gott segen uns. –

    Resmungou seu marido pedindo a benção divina.

    Partiram. Mas ela ficou com o olhar do luso na

    sua imaginação. Provavelmente nunca mais ia vê-lo.

    Iam para uma colônia só com sua gente. Viver uma

    nova vida. Talvez tivesse contato com a gente desta

    terra, mas tentaria evitar. Melhor ficar no seu mundo.

    Eles falavam outra língua, conheciam o lugar, eram os

    donos daquelas terras, daquele império. E eles

    humildemente pegariam o seu quinhão e tentariam

    sobreviver.

    Com o barco já longe da cidade, e imerso na

    escuridão de uma noite sem lua, lembrou que sentia

    algo diferente nos últimos dias, e não parecia ser

    somente o ar daquele lugar. Desconfiava que estivesse

    grávida do primeiro filho, mas ainda não falara nada

    para o marido. Esperaria que vingasse. E que eles

    sobrevivessem. E pudessem vê-lo crescer, nesta nova

    terra, habitada por gente diferente. Como aquele

    homem, que de súbito ficara curiosa para saber quem

    era. Qual a sua história.

    Com a alvorecer, podia-se aos poucos perceber a

    vegetação da margem daquele rio. Era vistosa e variada,

    apesar do tom cinzento que aquela manhã de nevoeiro

    começava a derramar sobre ela. Helmuth Blau agora

    conversava com um sujeito magro de olhar triste que

    recém acordara. Havia lhe contado que sua mulher

    havia morrido no navio, mas que ele já havia aceitado

    os destinos de Gott, e tratava de pensar no seu futuro na

    colônia. Tinha sido um líder comunitário na sua aldeia

    no Hunsrück, mas uma invasão das tropas de Napoleão,

    o fizera mudar para o norte. Foi quando conheceu

    pessoalmente um dos principais agentes da imigração

    um grande sujeito disse.

    E seguiram falando do que haviam deixado para

    trás e os sonhos do futuro, com Elizabeth escutando-0s

    enquanto o barco vencia as curvas daquele sinuoso rio.

    Seu marido como sempre, tinha aspirações modestas.

    Sonhava com um lote em um lugar aprazível, onde

    pudesse começar sua horta e sua plantação. Ficava a

    imaginar como faria a sua casa e o dia que poderia

    sentar na cadeira que ele mesmo faria em frente daquilo

    que seria o seu castelo. E onde viveria em paz com sua

    Elizabeth e os filhos que Gott lhes desse. O outro ouvia

    quieto os seus desejos, mas o interrompia para delinear

    algo maior.

    - Será bom se os lotes forem perto uns dos

    outros, para ficar fácil nos encontrarmos. Esta é uma

    terra nova e não conhecemos nada. Não sei se os lusos

    vão nos ajudar muito. – disse com um olhar

    desconfiado - Também temos que erguer nossa igreja.

    Nós luteranos, somos maioria, e a imperatriz do Brasil

    nos garantiu liberdade de culto. Tem muito trabalho

    pela frente e bom seria se viesse mais de nós. O senhor

    sabe. A união faz a força.

    Helmuth concordava amigavelmente com o

    estranho. Pois mesmo não pensando do mesmo jeito e

    achando-o ansioso demais, não queria arrumar

    inimizades logo no começo.

    Lentamente, o barco começou a se aproximar de

    um descampado na margem direita. Um leve murmúrio

    começava a se ouvir entre os trinta e nove passageiros, e

    a emoção começava a tomar conta do coração de

    Elizabeth.

    A gravidez a deixara sensível. Olhava para a

    margem onde uma frondosa árvore um pouco acima no

    descampado, parecia aguardá-los para ser seu primeiro

    abrigo no meio daquela névoa fechada. O solavanco do

    barco encalhando na margem lhe deu um pequeno

    susto. Não podia acreditar. Chegaram. Não conteve as

    lágrimas, e desandou em um choro infantil. Helmuth ao

    seu lado, lhe abraçou de forma suave afagando seus

    longos cabelos claros, sem conseguir dizer nada. Seu

    olhar era fixo naquela terra. Sua nova terra. Haviam

    chegado a Colônia de São Leopoldo.

    1990 – Fronteiras fechadas

    O lilás das lavandas, da plantação que se estendia

    por um punhado de hectares daquelas terras íngremes,

    começava a mudar de tom ao cair do dia. A sombra que

    começava a cobrir o vale, escurecia as imensas fileiras

    de flores púrpuras. Apenas mais uma amostra e a

    colheita que Helga Blau fazia semanalmente na

    propriedade dos pais em Ruetersberg, estava completa.

    Olhou no relógio e viu que estava na hora de pegar a

    estrada para Neu Hamburg, onde ainda passaria na

    universidade para deixar as amostras no laboratório.

    O familiar ruído de um motor ao longe, a fez

    levantar os olhos e visualizar seu pai sentando ao lado

    de um funcionário em cima do trator, voltando da lide

    do dia. Mesmo de longe, podia perceber seu olhar

    distante, apreciando a paisagem como se a visse pela

    primeira vez, apesar de morar ali desde a infância.

    - Helga! Deine Kuchen!

    A voz que lhe chamava a atenção agora, era de

    sua mãe, que já conhecendo sua rotina das quintas-

    feiras, a chamava da varanda da casa esfregando as

    mãos no avental. Já havia dito a ela que sua Kuchen era

    maravilhosa e que ela devia vender aos turistas nas

    envidraçadas confeitarias da cidade. Mas ela preferia

    ficar com a produção caseira. Dizia que muita

    quantidade faria cair sua qualidade. Além do mais,

    ganhava mais se ajudasse o marido no gerenciamento

    da plantação de lavandas, e na comercialização delas

    para as empresas de perfumes.

    - Seu pai está muito preocupado com os boatos

    que a maior fábrica de perfumes de Kaffeschneiss, vai

    ser vendida para um grupo de cosméticos de

    Montenegro. Eles estão comprando várias fábricas

    pequenas com dinheiro de um banco alemão.

    Helga sabia que a concentração deste tipo

    indústria de cosméticos nas mãos de poucos

    fabricantes, poderia ser prejudicial para plantadores

    como eles. A preocupação do pai era com o crescente

    poder de barganha das grandes empresas, na definição

    do preço de compra da matéria-prima de perfumes e

    óleos aromáticos. Do lugar que ocupava na mesa da sala

    podia vê-lo na frente do novo computador, a analisar os

    números da produção da primeira quinzena do mês.

    Sabia que o seu real sonho era ter sua própria fábrica de

    perfumes de lavanda, e sempre torcia para que ele

    pudesse realizá-lo.

    Olhou no grande relógio da sala que marcava seis

    e meia, e tratou de terminou seu café com Kuchen, pois

    era hora de ir para a capital. Não gostava de descer a

    serra de noite.

    - Tchus mama. Tchus papa.

    - Auf Wiedersehen –respondeu a mãe da

    cozinha.

    Seu pai apenas acenou do escritório.

    ...

    Já passava das nove quando Helga chegou ao

    apartamento que dividia com o irmão na parte alta de

    Neu Hamburg, em uma larga avenida repleta de

    boutiques de marcas famosas, e sofisticados prédios

    com vista para o centro da cidade. Abria algumas

    correspondências que pegara na portaria, quando o

    telefone tocou.

    - Hallo!

    - Helga? Ist mich, Karla.

    Karla Käse era uma de suas melhores amigas.

    Gostava dela, apesar de suas seguidas crises existenciais

    e pessimismo crônico.

    - Nem sabe da maior! – seguiu Karla sem deixar

    Helga falar – A Wanda vai noivar.

    - Mein Gott! Mas ela ta namorando há pouco

    mais de um ano.

    Helga definitivamente estava surpresa. O

    casamento era algo ainda distante para ela. Só o que lhe

    interessava no momento era sua pesquisa. Tinha planos

    de continuá-la no mestrado a partir de 1991, depois da

    formatura em Farmácia. Estava até pensando em sair

    de Hunsrück, atravessar a fronteira, discutir e mostrar

    seus conhecimentos em outros países. Havia se

    empolgado com a participação em um simpósio sul-

    americano em Dante Alighieri, ficando surpresa como

    em plena Capital da vizinha Reppublica del Veneto,

    alguns colegas pouco sabiam da pesquisa que se fazia

    em Neu Hamburg. Era preciso mais proximidade,

    pensava. O conhecimento não podia ter fronteiras.

    Mas Karla estava mesmo preocupada era com

    Wanda.

    - Pois é.... Parece que é sério mesmo. Vai ter até

    um jantar na casa dela, para selar o compromisso. Ela

    deve ligar para você para contar pessoalmente a

    novidade. Eu é que não me contive e resolvi falar.

    - Ele é médico, não é?

    - É. Ele é de Saint Leopold, e com trinta anos já

    um dos mais requisitados cirurgiões do país. Inclusive

    teria sido convidado por um grupo de riograndenses

    para participar de cirurgias em um tradicional hospital

    de Porto Alegre. Até passaporte especial ele ia

    conseguir.

    Helga ficou a imaginar a amiga vestida de noiva

    entrando na Drei Könige Magie Kirche, com o relógio

    iluminado da torre marcando oito horas. Também viu a

    si mesma vestida discretamente segurando uma bolsa,

    sozinha e com o mesmo olhar distante que vira em seu

    pai naquela tarde. Mas ficava feliz por ela. Wanda era

    alegre, tranqüila e sempre passava uma energia

    positiva. Ultimamente, com os compromissos da

    faculdade, estavam se vendo pouco. O noivo, Helga

    tinha visto apenas uma vez.

    - É. Parece que estamos entrando em outra fase

    da vida. Será que ela vai ser a primeira de nós a casar? –

    perguntou Helga.

    - Pelo jeito.... Mas não sei não. Eles têm muita

    diferença de idade. São sete anos e ela ainda nem se

    formou. Se eu bem a conheço, vai querer seguir a

    mesma especialidade dele.

    - Mas nada impede que seja um noivado longo,

    com o casamento ficando para depois.

    - Pelo menos ela tá melhor encaminhada.... Já

    eu! Não sei nem quando vou ter um salário decente,

    imagina um marido.

    - Karla!

    Não adiantava. Karla era uma desiludida por

    natureza. Recém tinha se formado em administração, e

    já estava trabalhando no maior banco privado do país.

    Helga acreditava que ela tinha boas possibilidades de

    crescimento na empresa, pois era organizada e

    disciplinada desde os tempos que estudavam juntas na

    escola secundária. Mas sempre achava alguma coisa

    para reclamar.

    - Ainda se tivessem caras interessantes no meu

    setor. Mas só tem uns metidos a besta que acham que

    tem solução para tudo. Olha... Não é fácil..... Mas me

    conta... E as suas pesquisas? Como vão?

    - Indo... Quero ver se até o fim do ano publico

    meu artigo científico. Tenho que começar a decidir onde

    vou fazer o mestrado.

    A voz familiar no corredor e o barulho da chave

    na porta chamaram a atenção de Helga. Era seu irmão

    Ludwig que chagava atendendo o celular.

    - Ja... Gut. Neu Hamburg Frankfurt, direto. Dez

    da noite de segunda... Chega lá na terça de manhã... Ok.

    Amanhã passo aí para pegar as passagens. Gute Nacht.

    Deu um rápido aceno para a irmã, que seguiu no

    telefone.

    - É o Lud. Acho vai para a Alemanha de novo.

    - Esse seu irmão não para, hein? Daqui a pouco

    ele vai se tornar piloto de avião, de tanto que viaja. É

    outro que só pensa em trabalho.

    Helga sabia que era uma indireta para ela. Mas

    não se importava. Conhecia Karla, e entendia o seu

    jeito. Eram amigas de longa data, e este tipo de

    comentário não a abalava.

    - E amanhã? – continuou Karla - vamos sair?

    Não me diz que você tem que ir para o laboratório no

    sábado de manhã.

    - Nem me fala. Tenho que preparar umas

    amostras para semana que vem.

    - Não tem desculpa. Vamos sair. Estamos

    precisando. Passo aí para irmos na SchwarzWald.

    Vamos tomar umas cervejas, e brindar o noivado da

    Wanda.

    ...

    Com a água do chuveiro a lhe massagear as

    costas, Helga ainda pensava na sua pesquisa, quando

    Ludwig bateu na porta.

    - Tua amiga chegou. Já mandei subir.

    - Danke! – agradeceu falando alto para que o

    irmão a escutasse.

    Karla tocou a campainha do apartamento e

    Ludwig a recebeu com um aperto de mão, convidando-a

    para sentar.

    - A Helga ta no banho e já vem. Bebes alguma

    coisa?

    - Nein. Danke. – respondeu Karla negando a

    oferta.

    Da janela da sala, se via o movimento da noite

    que àquela hora começava a aumentar. Um mar de

    carros se formava na avenida em direção aos bares de

    Alte Hamburg. Sexta-feira. Noite de tomar cerveja.

    Ainda mais com aquele calor de fim de verão.

    - Vão aonde?

    - SchwarzWald. Quer ir junto?

    - Quem sabe...

    Ludwig era meio caseiro, mas se convidavam

    para sair, ele ia. Era como a irmã. Precisava de um

    incentivo. Sempre ficava na dúvida, mas acabava

    topando. Como irmão mais velho, se sentia responsável

    por Helga e procurava sempre protegê-la. Chegava a

    ficar preocupado com ela, quando viajava a trabalho

    pela empresa de exportação onde recém tinha sido

    promovido.

    Helga apareceu pronta na sala e reforçou o

    convite ao irmão, que decidiu acompanhá-las. E os três

    saíram a pé pela avenida a olhar as vitrines e o vaivém

    dos carros. E a cruzar com famílias, sentadas em bancos

    de madeira ao lado de floreiras, apreciando o

    tradicional sorvete do bairro. O melhor da cidade é o

    que se dizia.

    - E o teu pai como anda?

    Helga quebrou o silêncio de uma forma sutil que

    a abordagem do assunto merecia. A situação do velho

    Käse inspirava cuidados depois do último enfarte.

    - Nada boa. E o pior é que ele não quer obedecer

    nem os médicos, e muito menos a mãe. Sabe como é.

    Passou a vida inteira mandando, desconfiando de tudo

    e de todos...

    - É. Não deve ser nada fácil pra ele.

    Helga conhecia a sua história. Havia chegado a

    general do Exército de Hunsrück e servido a vida inteira

    na divisão de fronteira de Montenegro. Diziam até que

    ele teria pertencido a um serviço secreto do governo,

    que investigava a vida principalmente dos que viviam

    do lado riograndense da cidade binacional. Estava

    sempre achando que um dia os gaúchos invadiriam seu

    país, e seria pelas ruas da cidade. Karla havia sido

    criada nesse meio, misto de medo e senso de dever. Seu

    pai sempre dizia que a situação podia mudar a qualquer

    hora, mas não dizia nem por que e o que aconteceria.

    Sua mãe tentava minimizar toda esta desconfiança,

    mantendo o ambiente familiar equilibrado. Fazia de

    tudo para levar uma vida normal e dar uma boa

    educação a filha única do casal. Com o passar do tempo

    e com muito jeito convenceu o marido a permitir que

    Karla estudasse na capital. Agora, sentia sua falta e

    achava que estava longe, apesar de em menos de uma

    hora se ir de carro de uma cidade a outra.

    - Neste fim de semana, preciso ir lá pra ver como

    ele está. Vou comer um Spätzlle que só minha mãe sabe

    fazer, e tentar acalmar os dois.

    Depois de quinze minutos de caminhada lenta,

    chegaram a cervejaria SchwarzWald que estava em uma

    de suas noites perfeitas. Repleta de gente bonita e bem

    alinhada, em um amplo leque de gerações. Na porta do

    banheiro, duas adolescentes cochichavam e riam,

    enquanto em uma mesa próxima, três senhores de

    cabelos brancos discutiam as mudanças no parlamento

    com as eleições de Setembro, e a provável mudança do

    primeiro-ministro. "Escreve o que eu digo, vai ter

    mudança na primavera, e não será somente uma florada

    nova" falava com um ar irônico, o mais magro deles. O

    que estava a sua frente corou e falou mais alto depois de

    bater a caneca com força na mesa. "Pois ninguém pode

    com os liberais, vai ser outra vitória esmagadora. O

    comunismo acabou e vai enfraquecer a social

    democracia na Europa. Por isso aqui não vai mudar

    nada. Die Mauer fiel." Bradou em referência ao muro de

    Berlim que já estava virando pó, e influenciando aquele

    pedaço germânico da América do Sul. Também havia

    casais jovens jantando pratos típicos ou mesmo da

    cozinha internacional, e os homens solteiros na faixa

    dos vinte e poucos anos com seus cabelos penteados

    com gel, o que não era muito do agrado de Helga. A

    versão feminina destes ficava por conta das sempre

    muito arrumadas representantes das ricas famílias

    tradicionais de Neu Hamburg, vivendo em seu mundo

    particular que não ia além dos bairros nobres da capital

    do país.

    Subiram para o terraço, pois a parte de baixo

    estava lotada, com um ambiente cheirando a fumaça de

    cigarros, misturada ao aroma da cerveja saindo das

    torneiras do balcão principal. Lá em cima o ambiente

    era mais arejado. Ideal para aquela noite, mas

    igualmente repleto.

    - Se tivéssemos vindo mais cedo...

    O comentário de Ludwig parecia fora do lugar,

    para quem foi no embalo do convite de Karla, sem nem

    sequer se arrumar direito. Mas Helga sabia que ele

    gostava de estar no controle

    Está gostando da amostra?
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