Marcas de uma guerra
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Marcas de uma guerra - Sandra Pina
SANDRA PINA
ILUSTRAÇÕES DE
MAURÍCIO PLANEL
MARCAS DE UMA
GUERRA
Sumário
1. Querido diário
2. No bonde, na rua, na vila...
3. Querendo mais
4. Humberto vai à guerra
5. Maldita fila
6. A partida
7. Uma nova amiga
8. A carta
9. Algo totalmente inesperado
10. E agora?
11. Volta por cima
12. Enquanto isso...
13. Finalmente notícias!
14. E mais notícias...
15. Será que a guerra é só lá longe?
16. Mas o tempo passa...
17. O retorno
18. Quem é Lili?
19. E o povo nas ruas outra vez...
20. Mais surpresas
21. Depois de tantas emoções...
Notas
Biografias
Créditos
Para minha mãe, Eunice Pina, por todas as suas deliciosas histórias de infância, contadas ao redor da mesa, após os almoços de domingo.
Para primos distantes que eu nem conheci, mas que viveram e lutaram essa batalha.
1
Querido diário
Praticamente todas as noites, antes de deitar, Hilda pegava o caderno de capa dura que mantinha bem escondido e conversava com suas folhas. Algumas vezes não tinha muito o que dizer, então se limitava a escrever:
Foi um dia como outro qualquer. Vim só dizer boa noite.
Em outras, contava detalhadamente o que havia feito, o que sentia, o que queria sentir, o que estava pensando, o que não a deixavam falar.
Nesse dia em especial sentia-se um pouco confusa.
Querido diário,
Ainda estou tentando entender o que está se passando por aqui. Depois do jantar, todos se reuniram em torno do rádio, como sempre, para ouvir sobre a guerra que está acontecendo na Europa. Mas hoje em especial uma notícia deixou meu pai enfurecido, minha mãe estática e meus avós completamente sem rumo. A voz do locutor caiu feito uma bomba na nossa casa. Meus avós, que, como você sabe, moram na última casa da vila, saíram correndo, como se estivessem fugindo de alguma coisa. E meu pai nos mandou para a cama mais cedo do que de costume.
Sabe, diário, antes de dormir, meus irmãos e eu ficamos nos perguntando o porquê daquela reação toda. Era como se eles tivessem medo de que a qualquer momento um avião fosse passar por cima da vila e jogar uma bomba, acabando com as nossas casas. Com a nossa vida.
Aí, eu que estou sem sono, pergunto a você: se a guerra está acontecendo lá longe, na Europa, o que nós, aqui no Brasil, temos a ver com isso?
Era agosto de 1942. A notícia: foi confirmado que, em cinco dias, seis navios brasileiros haviam sido afundados pelo submarino alemão U-507. Os navios estavam ao largo da costa brasileira. Mais de seiscentos mortos entre passageiros e tripulantes. A população estava revoltada. Alemães vivendo no Brasil e seus familiares passaram a ser hostilizados, e suas propriedades, atacadas. A tradicional Casa Alemã, que vendia cristais finos no centro da cidade do Rio de Janeiro, havia sido apedrejada pela multidão enfurecida.
A família de Hilda nada tinha a ver com os alemães. Seu avô era português, e a avó era italiana. O pouco que ela sabia escrever era em italiano. O muito que cozinhava era massa. Diga-se de passagem, foi fazendo massa fresca para o marido vender na mercearia que a Nona, como era chamada por quase todos, criou os cinco filhos. Todos foram à scuola, dizia, orgulhosa, com um sotaque impossível de disfarçar, misturando palavras em português e na sua língua natal. As filhas, Cacilda e Ofélia, cozinhavam como ninguém, sabiam bordar, costurar, tricotar e fazer crochê. Os homens, Arnaldo e Edmundo, tinham feito o colegial e começaram trabalhando com o pai até seguirem, cada um, seu próprio caminho. E ainda havia Geraldo, o mais novo, que tinha cursado faculdade de direito. Orgulho da família toda.
No dia seguinte, o irmão mais velho de Hilda, Humberto, descobriu pelo jornal o que tinha mexido tanto com a família. Afinal, se os alemães começavam a ser perseguidos em território nacional, o passo seguinte seria acontecer o mesmo com os italianos. Mamma mia!
2
No bonde, na rua, na vila...
Até então a situação da Europa não tinha causado grandes mudanças no cotidiano das pessoas.
Como todos os dias depois das aulas, Hilda tomou o bonde com suas colegas do Instituto de Educação. E, também como todos os dias, o grupo andou lentamente em direção ao ponto para dar tempo de tomar o mesmo bonde que os meninos do Colégio Militar. As escolas eram próximas: o Instituto de Educação ficava na Rua Mariz e Barros, e o Colégio Militar ali, na Rua São Francisco Xavier. Sendo assim, o bonde que vinha do Largo de São Francisco em direção ao Engenho Novo, o número 74, passava primeiro pelo ponto em frente ao Instituto de Educação e, em seguida, perto de onde os meninos esperavam, para então seguir para Vila Isabel em direção ao seu destino final. Segundo as histórias contadas pelos mais velhos, essa estratégia