Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Crônicas Do Pra Quê
Crônicas Do Pra Quê
Crônicas Do Pra Quê
E-book139 páginas1 hora

Crônicas Do Pra Quê

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Essa é parte da história do Ernesto. São estórias do Ernesto. Ernesto Eustáquio Senna de Oliveira. Pessoa comum como você e eu. Sem adjetivos ou substantivos que o qualifiquem para o pódio da sociedade. Sua história, por isso, não haveria de despertar nenhum interesse. Paradoxalmente, exatamente por isso desperta interesse: por ser exclusivamente comum! Com um raciocínio mais abstrato, a história do Ernesto, antes de ser uma história de vida, pode ser uma vida de pequenas e saborosas estórias! O autor também aproveitou as estórias do Ernesto para, em um contexto de tempo mais ou menos definido – do início da década de setenta ao final da década de noventa – contar um pouco dos costumes, do dia a dia e do viver em Belo Horizonte. Situou um personagem no seu tempo e na sua sociogeografia. Também aproveitou o espaço para – sempre que possível – introduzir uma ou outra crônicas próprias (quer dizer, o seu modo de ver coisas atuais). Afinal, Ernesto não exigiu “reserva de mercado” sobre o trabalho “encomendado”.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de ago. de 2015
Crônicas Do Pra Quê

Relacionado a Crônicas Do Pra Quê

Ebooks relacionados

Religião e Espiritualidade para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Crônicas Do Pra Quê

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Crônicas Do Pra Quê - Alexandre Prado

    I - ERNESTO EUSTÁQUIO SENNA DE OLIVEIRA

    Ernesto Eustáquio Senna de Oliveira. Era este o seu nome. Gostava dele. Contrastava muito bem com o seu pouco mais de metro e sessenta e cinco de altura. 

    — Pera aí! Pouco mais, não. Um metro e sessenta e sete centímetros. Altura média do brasileiro fique sabendo.

    Era assim. O nome, extenso, lhe dava também extensão física, sensação de grandeza. Gostava também, particularmente, do sobrenome: Senna de Oliveira. Remetia a certa nobreza e imponência: Senna de Oliveira

    — Ernesto Eustáquio Senna de Oliveira! Sabe de onde vem esse nome? Sabe?

    Nunca respondia. Nem ele mesmo sabia. O pai, Manoel Augusto de Oliveira, português, ora pois. Padeiro por ofício. A mãe, Idelzina Cambraia de Sena (com um ene só). Sangue índio, com certeza. Morena do cabelo liso e bunda grande. Seu Manoel ficou doido e deu nisso: Ernesto Eustáquio Senna de Oliveira (Senna com dois enes, porque alguma coisa tinha que ser chique nisso tudo...). Linhagem nobre, importância. Isso porque Ernesto queria, evidentemente...

    — O sujeito fica grande com um nome desses, sabe como é. Todo mundo respeita...

    Tinha a pele mulata, puxada à mãe, com os cabelos lisos do pai. Os olhos castanhos, profundos e vivos e a mente perspicaz, lhe davam, às vezes, um aspecto agressivo. Era rápido no raciocínio. Não deixava pergunta sem resposta. Ainda que a resposta nada tivesse a ver com a pergunta.

    Ernesto se pautava sempre pela cordialidade e pelo respeito. Aprendera desde cedo as lições de educação cimentadas por Seu Manoel e Dona Idelzina em seu inconsciente. 

    — Filho, a única coisa que pobre tem pra dar é o respeito. E a única coisa que filho de pobre tem a exigir é o respeito. Se perder o respeito, perde tudo. Dê-se ao respeito e aí você pode exigir o mesmo.

    Isso Ernesto aprendeu desde sempre. Educação vem de berço. A escola só lhe acrescentou cultura. Pois não é que o danado também era inteligente?

    Ernesto Eustáquio Senna de Oliveira. Apenas mais um brasileiro. Um brasileiro na média. Na média até que nem tanto. Pensando bem, Ernesto talvez estivesse um pouco acima da média.

    O mais velho dentre quatro filhos, tinha já, aos vinte e poucos anos, um emprego público estável, estava por terminar um curso superior, após deixar outros dois pelo caminho da sua formação estudantil, fruto das inseguranças da pós-adolescência. Dirigia seu próprio carro (usado na verdade, mas era seu, estava comprado e pago). E era solteiro! Definitivamente, Ernesto Eustáquio Senna de Oliveira podia se orgulhar do seu nome, do passado de respeito e da educação que herdara, do seu presente e até podia antever um futuro promissor, considerando a classe social de onde vinha. Era por isto que lutava.

    Ernesto vivia a plena efervescência do final dos anos setenta. Efervescência política, social, cultural, econômica. Mas Ernesto, mesmo que inteligente era, às vezes, convenientemente alienado. Acho que fazia de bobo para viver. Não que fosse um sonhador completo, um irresponsável. Não, isso não. Sabia cuidar bem das suas responsabilidades. Mas ficava nisso. Ernesto era avesso a responsabilidades maiores. Preferia viver um dia por vez. Às vezes essa segurança – ou insegurança – cobrava-lhe um preço alto.

    Não faltavam mulheres a Ernesto. Amores lhe sobravam. Tentações às vezes lhe corroíam e assombravam o corpo e a mente jovem. Coitado do Ernesto! Não queria saber de nada que durasse mais que o hoje. E por não querer o amanhã, não lhe sustentava o hoje, e o ontem já não lhe bastava. Era assim.

    Ernesto talvez fosse um retrato plasmado daqueles tempos. Dias de insegurança, de medo, de dúvidas. Ernesto não sabia, decerto, mas precisava dar um rumo à sua vida. O país procurava um rumo. O Ernesto não. Ernesto precisava assumir que era mais que a média dos brasileiros e marcar sua posição. Mas Ernesto Eustáquio Senna de Oliveira estava satisfeito em viver um dia de cada vez. E não marcava posição.

    — Só vou morrer uma vez mesmo. O dia em que isso acontecer, vai ser o dia que isso aconteceu. O futuro a Deus pertence. Pra que se preocupar com isso agora? Tá bom assim...

    O País, aos solavancos, caminhava. Ernesto, empacado, sentia-se feliz. Pode isso?

    VOLTAR AO SUMÁRIO

    II - RITO DE PASSAGEM

    Ernesto tinha dezesseis anos. Trabalhava no departamento de pessoal de uma pequena construtora. Com essa pouca idade já tinha grandes responsabilidades. Com Ernesto sempre foi assim. Ele mesmo me disse. Adultizou muito cedo. Filho mais velho, tinha que dar exemplo pros irmãos mais novos. Começou a trabalhar com carteira assinada aos quatorze anos no escritório de uma metalúrgica. Emprego arrumado pelo pai que não queria vê-lo jogando bola na rua o dia inteiro e nem podia bancar seus estudos depois do quarto ano primário.

    Noutros sentidos até que Ernesto não adultizou cedo. Só conheceu o amor aos dezesseis anos. Não que não tivesse trocado uns beijinhos furtivos com as coleguinhas de colégio e de rua. Mas eram só beijinhos. Conhecer o amor só conheceu aos dezesseis anos. Vamos clarear as coisas: a expressão entre aspas é por conta do Ernesto. Estou só reconstituindo. Até porque a expressão é... ótima! Amor...

    Voltemos ao tema. Ernesto só conheceu o amor aos dezesseis anos. Segundo ele, aconteceu mais ou menos assim:

    — Poxa vida, já tava passando da hora. Nessa época, nem dava pra pensar em fazer amor com as meninas certinhas. Isso dava neném, dava em casamento ou dava em morte. E casamento, nem pensar.

    — Ué Ernesto, neném e morte podiam?

    — Bom...

    — E então, Ernesto? Fazia como? Cinco contra um todo dia?

    — Tia Zezé já tava acabando. E eu nem tinha dinheiro pra ir parar na Francisco Sales e pagar pelos anjinhos que ainda voavam por lá. Ademais, os senhores que marcavam ponto por ali iam rir se vissem um frangote ali. Mas eu fui lá uma vez. Só consegui ver um monte de caquinhos de espelho nas paredes da entrada. E que mulheres! No centro da cidade o ambiente era meio tenebroso e o esquema não era muito aconselhável para gente de família, que nem eu o Ernesto e suas idiossincrasias.

    — Sobravam a rua dos Pampas e a avenida Pedro II. O problema é que eu era de menor e "os home" marcavam em cima. Se a gente fosse pego, de cara era vadiagem. Tinha cabeça raspada a zero na hora. Chamavam os pais. Naquela época, setenta e dois, setenta e três, dá pra imaginar o resto, né? Não dava pra correr risco. Era abusar das revistinhas de sacanagem (lembra dos jornaizinhos sem capa?) e estrangular o coitadinho...

    — E?...

    — Como eu disse lá no início, aos dezesseis anos, em 1973, trabalhava no departamento de pessoal de uma construtora que tinha uma obra grande em Ipatinga, no interior de Minas. Estava construindo as casas de um bairro inteiro. A gente tinha uns cinquenta peões por lá. Todos eles eram contratados aqui em Belo Horizonte e mandados para trabalhar lá. A gente pagava o pessoal semanalmente, em dinheiro, parte para a família, que ficava em Belo Horizonte, e parte diretamente para o pessoal nos alojamentos de Ipatinga. O dono da construtora levava o dinheiro no aviãzinho da construtora, e o mestre de obra fazia os pagamentos no sábado.

    — Ernesto, não íamos falar do seu desmame? Até agora, nada.

    — Então. Toda semana o chefe ia pra Ipatinga pra pagar os peões.

    — Você já falou isso.

    — Mas é que as coisas têm que ficar bem esclarecidas e...

    — O tema te incomoda Ernesto? Falar do seu desmame te desconforta?

    — Um pouco. É um tema delicado e causa constrangimento, sem dúvida. Falar das minhas intimidades. Eu nunca tinha contado isso pra ninguém. Mas como você me convenceu achei que falar seria uma espécie de catarse. Estou eu aqui me abrindo todo... Fazendo papel de bobo pra você... Mas vai ter troco.

    — Vamos retomar a estória. O dono da empresa pagava o pessoal no sábado. Eu não acho que você transava com o dono da empresa, nem com o malote de dinheiro, nem com os recibos de pagamento. Portanto, desembucha.

    — Bom, acho que você não quer saber o que um auxiliar de departamento de pessoal deve fazer com os holerites assinados, não é?

    — Não mesmo.

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1