O Evangelho De Khanagem
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O Evangelho De Khanagem - Rodrigo Darini Valente
O Evangelho de Khanagem Rodrigo Darini Valente
O EVANGELHO DE
KHANAGEM
Rodrigo Darini Valente
Arte da capa: Adriana Ery
1
O Evangelho de Khanagem Rodrigo Darini Valente
2
O Evangelho de Khanagem Rodrigo Darini Valente
Sobre o autor
Rodrigo Darini Valente nasceu em São Paulo, no
longínquo ano de 1978. Formado em Letras, tem em seu
repertório:
Liber Mortis: Trata-se de 27 contos (o último,
propositalmente, encontra-se em branco) que fazem refletir
sobre os aspectos da morte e, consequentemente, sobre a
vida.
Miscelâneas Linguísticas: Esta é uma obra para quem gosta
de estudar a Língua, seus aspectos, mudanças e fenômenos.
Principais assuntos abordados: a) Morfemas (Raízes e
Afixos); b) O Português Arcaico, em que mostra as
principais mudanças da Língua Portuguesa desde o século XI
até hoje; c) O Latim; d) Análise da "Canção dos
Nibelungos", que foi o primeiro documento escrito em
Alemão; e) Demais análises Linguísticas, num vocabulário de
fácil entendimento e acessível a todos os públicos.
O Cavaleiro Razar e os Medalhões de Chamak: História
em que cavaleiro deve encontrar duas partes de um medalhão
para salvar o reino em que vive.
A Escolha de Gisele: Daniel, um adolescente, começou a se
viciar em drogas, causando grande sofrimento a seus pais e,
principalmente, a sua namorada, Gisele, pois esta deveria
escolher entre salvar a vida de seu amor ou arriscar-se num
outro relacionamento amoroso ainda mais incerto do que o
anterior. A decisão que ela tomar será fundamental para a
recuperação de Daniel e sua volta ao lar.
3
O Evangelho de Khanagem Rodrigo Darini Valente
As Aventuras de Cantão e Carminha: Variadas histórias de
Cantão e Carminha - O casal sem noção. São 13 episódios em
que eles vivem confusões nos mais variados lugares: seja no
restaurante, na farmácia ou no velório, até chegarem ao
extremo de viajarem para o futuro (sem antes dar uma
passada pela Divina Comédia de Dante).
Humor inocente e sem compromisso, acompanhado de
algumas pitadas de crítica.
Oniricíssimo: Assim como um sonho, Oniricíssimo é rápido,
curto e ilógico. É, como o próprio nome diz, onírico. É
penetrar no estranho mundo dos sonhos, deixando-se levar
pelas loucuras que a mente humana é capaz de criar. É viver
mentiras e fantasias que o subconsciente faz questão de
inventar para nos deixar insanos.
A Vela Sacra: Luca tinha tudo para ser uma criança feliz,
mas seus pais negaram-lhe esse direito, ao se separarem. Sua
mãe, Isabel, levou-o, juntamente com sua irmã, para uma
cidade do interior, onde se hospedaram na casa de Kerstin,
uma amiga da família.
Entretanto, isso não impediu que o garoto continuasse a fazer
o que mais gostava na vida: sonhar. Acreditando que todos os
seus desejos poderiam se tornar realidade, Luca recebe a
visita de Gimmos, um ser de outra dimensão que o levará
para um lugar totalmente diferente e mágico.
Assim, enquanto os adultos não resolvem sua situação
no mundo desta dimensão, Luca terá de ajudar Gimmos a
resolver a de um planeta ameaçado por uma guerra milenar.
O pequeno Luca, com esperteza, deverá mostrar que até
mesmo o maior dos problemas pode ser vencido, mesmo que,
para isso, a morte tenha de estar sempre ao seu lado.
4
O Evangelho de Khanagem Rodrigo Darini Valente
Também tem os blogues:
http://darini.blogspot.com
http://khanagem.blogspot.com
http://cantaoecarminha.blogspot.com
Contatos: rdarini@gmail.com
5
O Evangelho de Khanagem Rodrigo Darini Valente
6
O Evangelho de Khanagem Rodrigo Darini Valente
ÍNDICE
PREFÁCIO
CAPÍTULO 1 – GÊNESIS
CAPÍTULO 2 – A BUROCRACIA CELESTIAL
CAPÍTULO 3 – AULA PRÁTICA: A DIVERTIDA ARTE
DE JULGAR HUMANOS
CAPÍTULO 4 – FILOSOFIA PROFUNDA E DEFINITIVA
CAPÍTULO 5 – A CRIAÇÃO DOS IDIOMAS E
SISTEMAS DE COMUNICAÇÃO
CAPÍTULO 6 – PASSANDO PELO REDONDINHO
CAPÍTULO 7 – COMO SER ONIPRESENTE,
ONIPOTENTE E ONISCIENTE
CAPÍTULO 8 - SOBRE A INTERVENÇÃO CELESTIAL
EM ASSUNTOS HUMANOS
CAPÍTULO 9 – INSERÇÃO DE CONSCIÊNCIA, CULPA
E CATARSE NAS CRIATURAS HUMANAS
CAPÍTULO 10 – COMO CONVENCER
OUTRAS
ESPÉCIES A CONVIVER COM HUMANOS
CAPÍTULO 11 – O SISTEMA DE INFORMAÇÃO
CELESTIAL
CAPÍTULO 12 – O KLUSBERINTIANO (OU "SOBRE AS
ESPÉCIES MAIS AVANÇADAS DO UNIVERSO")
CAPÍTULO 13 – O ELFO
CAPÍTULO 14 – A CRIAÇÃO DE SERES
MICROSCOPICAMENTE MICROSCÓPICOS
7
O Evangelho de Khanagem Rodrigo Darini Valente
CAPÍTULO 15 – A CRIAÇÃO DE SENTIMENTOS
CAPÍTULO 16 – CURSOS OFERECIDOS PELA ESCOLA
CELESTIAL
CAPÍTULO 17 – O TEMPO
CAPÍTULO 18 - O NASCIMENTO DE TANÁS
CAPÍTULO 19 - A FORMATURA
EPÍLOGO – HÁ POUCA LIPSE!
PÓS-EPÍLOGO – APRESENTAÇÃO HUMORÍSTICA
COM O G.E.D.U. E SUA CONSEQUENTE CRIAÇÃO DE
UM NOVO MULTIVERSO
PARTE 2 - AS MELHORES HISTÓRIAS DO
ARCANJO KHANAGEM
HISTÓRIA 1 – OS ANJOS DA GUARDA
HISTÓRIA 2 - A VISITA DE GUERMINOLÁVSIO
HISTÓRIA 3 - O REPRESENTANTE DA
FARMACÊUTICA
HISTÓRIA 4 - O FUNKEIRO IGNORANTE
HISTÓRIA 5 - A MARRETA SACROSSANTA
HIPERCELOIDAL CELESTIAL
HISTÓRIA 6 - O PLANETA KEPLER-452B
HISTÓRIA 7 - AMIGOS DE LONGA DATA
HISTÓRIA 8 – O ANIVERSÁRIO DE TANÁS
8
O Evangelho de Khanagem Rodrigo Darini Valente
HISTÓRIA 9 - O PARAÍSO GAY
HISTÓRIA 10 - A FEMINISTA
HISTÓRIA 11 - O FIM DO PLANETA TERRA
HISTÓRIA 12 – A BANCADA EVANGÉLICA
HISTÓRIA 13 - KHANAGEM RECEBE ARIEL SHARON
HISTÓRIA 14 - FOFOQUEIROS CELESTIAIS
HISTÓRIA 15 - O BABACA E A BISCATE
HISTÓRIA 16 - O PRESIDENTE DO STJ
HISTÓRIA 17 - CONFLITOS INTERSETORIAIS
HISTÓRIA 18 - O JOVEM DINÂMICO COM ESPÍRITO
DE LIDERANÇA
HISTÓRIA 19 - O PILOTO SUICIDA
HISTÓRIA 20 - O BABACA MACHISTA
HISTÓRIA 21 - O BABACA DO NEXTEL
HISTÓRIA 22 - KHANAGEM E A FARRA
PRESIDENCIAL
HISTÓRIA 23 - O ATEU
HISTÓRIA 24 - O CONTRATO DE COMPRA
HISTÓRIA 25 - O AUDITOR FISCAL
HISTÓRIA 26 – A REUNIÃO DE METAS
GLOSSÁRIO
9
O Evangelho de Khanagem Rodrigo Darini Valente
10
O Evangelho de Khanagem Rodrigo Darini Valente
Licença da Santa & Geral Inquisição
Vi por mandado da santa & geral inquisição estes
vinte & um capítulos do Evangelho de Khanagem de Rodrigo
Darini Valente, dos valerosos feitos que os seres celestiais
fizerão no paraíso, e não achey nelles cousa algűa
escandalosa nem contrária â fe & bõs custumes, somente me
pareceo que era necessario aduertir os Lectores que o Autor
pera encarecer a difficuldade da entrada dos humanos no
paraíso, usa de hűa fição dos Deoses dos Gentios. E ainda
que sancto Augustinho nas sas Retractações se retracte de ter
chamado nos liuros que compos de Ordine, aas Musas
Deosas. Toda via como isto he Poesia & fingimento, & o
Autor como poeta, não pretende mais que ornar o estilo
Poetico não tiuemos por inconueniente yr esta fabula dos
Deoses na obra, conhecendoa por tal, & ficando sempre salua
a verdade de nossa sancta fe, que todos os Deoses dos
Gentios sam Demonios. E por isso me pareceo o liuro digno
de se imprimir, & o Autor mostra nelle muito engenho &
muita erudição nas sciencias humanas. Em fe do qual assiney
aqui.
- Frei Bertholameu Ferreira
11
O Evangelho de Khanagem Rodrigo Darini Valente
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O Evangelho de Khanagem Rodrigo Darini Valente
Aviso Legal (ou chato. Depende do ponto de vista)
Caso você não tenha percebido, esta é uma obra de
ficção. Todos os locais, nomes, personagens, histórias e
milagres que aqui aparecem foram ditados a mim pelo
Arcanjo Khanagem, que, fatidicamente, é fruto da
imaginação humana.
Mais ou menos como a sua bíblia.
13
O Evangelho de Khanagem Rodrigo Darini Valente
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O Evangelho de Khanagem Rodrigo Darini Valente
PREFÁCIO
(não, não pule esta parte!! É legalzinha; juro!)
Parte 1 – Para Entender Bem o Inferno
Já disse aqui que eu sou viciado em videogames? Juro
que sou, desde moleque. Lembro-me do primeiro que ganhei,
em meados dos anos 80, quando tinha mais ou menos uns
cinco ou seis anos de idade, e não tinha ideia do que era um
game. Foi um Odyssey, que, aqui no Brasil, era concorrente
direto do Atari, o então adotado (e adorado) pela maioria da
molecada. Aqueles bons tempos eram uma época em que
adultos usavam tais aparelhos bem casuisticamente, quando
nem sequer se imaginavam coisas como "Nossa, quanta
violência nesse jogo! Depois de jogar isso, meu filho vai sair
atirando na rua! ".
Viajando algumas décadas no futuro, chegamos a
2013. Um dos jogos por que mais esperei naquele ano foi um
de Playstation 3, chamado "The Last of Us". Não sei se por
causa da propaganda exacerbada da empresa japonesa (que o
jargão chama pelo anglicismo "hype") ou pela real qualidade
do jogo, lembro que eu fiquei, por semanas, pensando em
adquiri-lo. Acabei comprando, principalmente depois de ler a
palavra "EPIC" (épico), na análise da EGM, uma das maiores
publicações do mundo sobre games.
Enfim... já disse aqui que eu sou viciado em
videogames? De criança, no meu Odyssey, eu jogava muito
um tal de Cryptologic
, que misturava e brincava com as
palavras. Naquele tempo, mal sabia eu que {cript} vinha do
grego {krypt}, significando oculto, e que essa se tornaria uma
15
O Evangelho de Khanagem Rodrigo Darini Valente
de minhas raízes linguísticas preferidas. Nos dias de hoje,
qualquer jogo com essa raiz no título teria a ver com TUDO,
menos com misturar palavras. Imagina que os nerds machões
fariam fila pra jogar algo assim, tão bobinho, sendo que o
novo Call of Duty espirra sangue no tapete da sala. Acho que
"Cryptological Death" daria um bom título. Ou não. Bom,
vai saber... não nasci mesmo para ser marqueteiro.
Falando em criança, veja você, eu cresci numa rua
movimentada, numa vizinhança cheia de gente velha. Sem
crianças
no
entorno,
claro,
não
saía
de
casa.
Consequentemente, não me arriscava e nunca quebrei
nenhum membro do meu corpo, tampouco tive de ficar dias e
dias internado na ala infantil de algum hospital mequetrefe.
Mantive esse recorde por 34 anos, 11 meses e 1 dia.
Outra paixão que tenho é viajar. Entretanto, quando
estou num avião, é impossível não pensar em algo como "e se
cair? ;
o que será que se sente, quando ele cai ou bate em
alguma coisa? Será que dói? ". Até agora, não obtive essas
respostas, principalmente pelo fato de ignorar veementemente
os especialistas
que aparecem após cada desastre aéreo.
Não, não acredito neles, pois aparecem sempre depois do
ocorrido, quando a distribuição de palpites abunda. Abunda
demais. Em todo caso, sempre torço para que, se o bicho tiver
mesmo de cair, que seja na volta da viagem. Pelo menos,
teria aproveitado o passeio e não teria que me preocupar com
as parcelas no cartão.
Já disse aqui que sou um grande falador de palavrões?
Deveriam fazer um concurso disso; seria muito legal. Claro
que o palavrão nada mais é do que o resultado de uma
convenção social: há 30 anos, ninguém ousava falar bunda
na TV. Hoje, não só falam como mostram o dia inteiro. A
16
O Evangelho de Khanagem Rodrigo Darini Valente
regra de ouro é: nunca confie em quem NÃO fala palavrão
.
É sério, não se pode acreditar nessa gente.
Veja que legal: a palavra puta, por exemplo, vem da
raiz {putr}, origem de palavras como putrefação e podre. Por
que algumas, então, se tornam baixo calão e outras não? Pura
coisa de convenção! Em Portugal, chamam criança de puto!
Deveria ser uma cláusula pétrea na constituição:
pessoas que falam muito palavrão deveriam ganhar um
adicional salarial vitalício. Se seus herdeiros também forem
da turma boca suja, a grana recebida dobraria! Tudo, é claro,
às custas dos contribuintes do tipo "ninguém em casa fala
palavrão".
A cena é clássica: certo dia, você encontra aquela
família perfeita, com um pai/marido perfeito que ajuda em
casa, cuida bem dos filhos, ajuda nas tarefas domésticas, é só
um pouco ciumento (mas quem não é, não é mesmo?), é
trabalhador... porém, só lhe restava um defeito: não falava
palavrões, tampouco deixava os filhos falarem. "Ah – você
pensa – "isso é uma pista de que isso tudo não é tão perfeito
assim".
Falando em ciúmes, às vezes eu me perguntava por
que homossexuais se autodenominavam "gays", palavra que,
no inglês, quer dizer alegre
. Foi quando me dei conta das
estatísticas de violência doméstica contra mulheres (casais
heterossexuais) e contra gays, aí comecei a entender o
porquê.
17
O Evangelho de Khanagem Rodrigo Darini Valente
Parte 2 - Videogames e afins
Já disse aqui que sou viciado em videogames?
Sempre achei que videogames fossem um ótimo escapismo
deste mundo tão estúpido e ridículo; mais do que num filme
ou um livro, nos jogos você vive aquele mundo e interage nas
ações que acontecem nele. Como já disse, eu estava
empolgadíssimo com o lançamento do The Last of Us. Tão
empolgado, que, um dia antes do lançamento, pedi pro cara
da loja de jogos reservar o meu; disse que, no dia seguinte, eu
estaria lá sem falta - repito – sem falta para retirá-lo. Ledo engano…
Parte 2.1 – Um dos meus jogos preferidos
Já disse aqui que sou fã de videogames? Sim, e um de
meus jogos preferidos, daqueles que marcam a gente, foi
Journey, título do Playstation 3, produzido por uma empresa
chamada Thatgamecompany e lançado em 13 de Março de
2012. Ele é a prova cabal de que jogos de videogames podem
SIM ser considerados obras de arte. Nele, o jogador é imerso
num mundo instintivo, em que já pelo início percebe qual seu
objetivo: alcançar o topo de uma montanha.
A princípio, Journey é uma experiência solitária: você
é um personagem monacal de simples controle (anda e pula)
que viaja por belos e variados cenários. Se conectado à PSN,
você pode cruzar com outro jogador errante, mas qualquer
interação entre os dois é facultativa às partes e não influencia
no andamento da história.
18
O Evangelho de Khanagem Rodrigo Darini Valente
Trata-se de uma história de superação: para cumprir
seu objetivo, o personagem deverá enfrentar desertos, neve e
água. Se preferirem fazer o percurso em dupla, não há muito
em que um jogador auxiliar o outro, a não ser servir como
guia, caso o outro esteja perdido. Ao encontrar esse parceiro,
a sensação de solidão se perde um pouco, mas causa até certo
alívio em saber que há mais gente no mesmo barco
.
Em Journey, você não é um herói com superpoderes
capaz de eliminar inimigos com um só golpe; tampouco, um
soldado com enorme e sofisticado armamento que dizima
dezenas de rebeldes ou terroristas. Muito pelo contrário,
diferente dos grandes sucessos do mercado, aqui você não
luta contra nenhum inimigo, apenas desvia deles. É um jogo
em que o personagem identifica-se totalmente com o jogador.
Quer seguir seu caminho de modo solitário ou prefere
acompanhar outro jogador? Quer explorar todo o cenário ou
prefere seguir de modo mais linear? Quer dar seu nome ao
monge? Tudo bem, a partir de agora ele é você.
Fugindo ainda mais dos clichês, Journey não dá
nomes aos personagens e não os deixa emitir qualquer tipo de
comunicação verbal, seja na relação personagem-jogador,
seja na relação jogador-jogador. Apenas após os créditos
finais é que somos capazes de ver os nomes dos usuários que
passaram por nosso caminho.
Journey é lúdico, místico (afinal de contas, você é um
monge). Aos poucos, você se sente fazendo parte daquele
mundo. Nunca lhe explicam o porquê de ter de subir àquela
montanha, mas, instintivamente, você sabe que aquilo é o que
deve ser feito. Como uma criança, você pode escorregar nas
dunas das fases do deserto. Com um sentimento de abandono,
19
O Evangelho de Khanagem Rodrigo Darini Valente
você pode ser deixado de lado por outro jogador que prefira
viver a experiência sozinho.
Ao terminá-lo, o gosto de quero mais é inevitável.
Pena que a experiência ao jogá-lo novamente (e de novo, e de
novo, e de novo) nunca é igual àquela da primeira vez.
Parte 3 - Nerds, sua cultura e afins
Pode ser que, para muita gente, eu seja um nerd.
Entretanto, não me considero um. De verdade. Devo
corresponder a apenas uns 5-6% do que a cartilha nerd exige.
Se eu sei a cronologia de tal história em quadrinho de tal
personagem? Querida/o leitora/o (leitoro?), não lembro nem
o que comi ontem - só sei que não tinha carne no prato.
Nem de longe tenho o estereótipo nerd / geek: aquele
cara de óculos, estudioso, craque em tecnologia, ciências
exatas e fã de mitologias e literatura de fantasia. Mea culpa,
sempre preferi escrever a ler; acho que minha ansiedade não
permite que eu devore 500 páginas de um livro, embora eu já
tenha me forçado a fazer algo assim. Mea culpa 2: nunca li
todos os livros do Senhor dos Anéis
– assim que terminei o
primeiro, A Sociedade do Anel
, saiu o filme. Aí, cometi o
sacrilégio de não ler os demais, contentando-me apenas com
os filmes. Em compensação, não li nem assisti ao Hobbit
como protesto pela quantidade de cavalos que morreram nas
filmagens. Se conseguem fazer um elfo montar um grifo, via
efeitos de computador, por que esses malditos precisam de
cavalos reais no filme?
20
O Evangelho de Khanagem Rodrigo Darini Valente
Lembro que passei algum tempo, no início de meus
vinte e poucos anos, jogando RPG de mesa
. Se você não
sabe, RPG é um jogo em que você incorpora um personagem
e tenta agir conforme a raça / personalidade dele. Portanto, se
você for um elfo, terá de agir diferentemente de quando for
um anão. Ou um ogro. Um dia, lembro de ter visitado uma
convenção de RPG e participei de uma live
, ou seja, você
age numa área aberta, fazendo também fisicamente as ações
do personagem. Um dos maiores momentos de vergonha
alheia por que passei.
Eram tempos em que eu mais me aproximava do
perfil: estudava e trabalhava com informática, só ouvia heavy
metal (melódico ou speed, de preferência), jogava RPG de
mesa e, claro, era virgem. Se você não for mais, que então me
desculpe, mas perdeu 25,71% da condição de nerd.
Analisando a mim mesmo... devo já ter perdido
95,64% dessa condição.
Parte 4 – Uma Surpresa Inesperada
Um
dia,
um
rascunho
de
lixo
humano
subdesenvolvido, achando que eu compartilhava do mesmo
mau gosto dele, tentou me matar. Foram cinco facadas em
pontos vitais, que mandaram uns bons mililitros de sangue
espirrados ao chão. Segundo o pessoal mais religioso, por
algum motivo que eu não sei (e, convenhamos, nem eles
sabem), Deus me salvou
, dadas as circunstâncias em que as
coisas aconteceram, como fui socorrido e a quantidade de
sangue que perdi.
21
O Evangelho de Khanagem Rodrigo Darini Valente
Isso já deve ter ocorrido com todo mundo: às vezes,
não temos a sensação de que não deveríamos estar em
determinado lugar, em determinada hora? Chame isso de
aviso divino, consciência coletiva, universo conspirando… só
sei que, de vez em quando, alguma coisa quer nos puxar para
fora de tal situação. Tem gente que entende esse sinal
claramente; outros, por outro lado, acham que é só mais um
sentimento estranho e o ignora. Às vezes, vale à pena ouvir
seu eu interior, não?
Em meados de Junho daquele ano de 2013 (na
verdade, foi no dia 13. Obviamente, dependendo do ponto de
vista, tudo o que ocorreu foi azar… ou sorte… vai saber...),
senti essa coisa estranha, mas não dei muita bola. Era
exatamente o dia em que, como disse na parte 3, eu pegaria o
The Last of Us, jogo que pedi pro gerente de minha então loja
preferida de videogames reservar. Era mais ou menos na hora
do almoço e meu (in?)consciente gritava "Sai daqui, vai
buscar o jogo! Sai daqui, vai buscar o jogo! Sai daqui, vai
buscar o jogo!"
É bem provável que Einstein, que tinha uma estranha
relação com o universo e via coisas que o resto das pessoas
não podiam ver, se estivesse no meu lugar, ouviria esse
recadinho e daria no pé no exato momento da mensagem.
Mas eu não fui. E tudo aconteceu mais ou menos assim:
Primeira – no pulso esquerdo
Segunda – na nuca
Terceira – no peito
Quarta e Quinta – nas costas
22
O Evangelho de Khanagem Rodrigo Darini Valente
Antes que me perguntem, já respondo: não, na hora
não dói. Juro, não dói mesmo. O problema é o depois
.
Bem mais tarde, depois de umas duas ou três bolsas
de sangue, eu já tinha perdido minha cor branco-lagartixa-
transparente e recuperado minha cor branco-leite-azedo.
Uma noite inteira ouvindo o bibibi dos aparelhos na
UTI e mais cinco outras num cômodo, mas vagabundo quarto
de um hospital municipal acabaram enchendo minha cabeça
de porquês, além de ter transformado meu agnosticismo
básico em um agnosticismo avançado. Afinal, se existe uma
força regente no universo que decide nossos destinos, o que
torna algumas pessoas mais afortunadas do que outras? São
questões que eu nem sequer procurava fazer na igreja, em
meus tempos de coroinha; seja porque eu apenas tivesse "fé
nos inquestionáveis desígnios de Deus, seja porque
pensar"
e fé religiosa
são elementos incompatíveis per se.
Foi quando, tomando como base o modo de pensar
judaico-cristão, imaginei haver toda uma burocracia celestial,
em que um Arcanjo cuidaria do reenvio de almas daqueles
que já morreram. Apreciador de trocadilhos que sou,
imaginei também um Anjo Auxiliar que serviria mais para
dar palpites e organizar a imensa fila de almas na entrada do
céu. Ele diria, vez ou outra, "Quero que cada um de vocês
ouça Khanagem! " – e assim nasceu o Arcanjo Khanagem.
Seria, creio, muito simples, se ele seguisse o
estereótipo que todos imaginam de um ser celestial:
imponência, formalidade e trombetas; ao contrário, ele tinha
de ser um grosseirão ríspido e que, sobretudo, odiasse a raça
humana, a quem considera a mais baixa e insignificante de
todas as criaturas orgânicas do universo. Por isso mesmo,
23
O Evangelho de Khanagem Rodrigo Darini Valente
quando do dia do julgamento
, imaginei o modo que ele
deveria tratar os mais variados tipos humanos que acabamos
por encontrar no dia a dia, com seus defeitos, manias e
dizeres.
As histórias do Arcanjo Khanagem não são para
todos. Para aproveitar completamente esse universo, o leitor
tem de se despir do manto religioso que estipula castigos
eternos a críticas e zombarias; da visão de medo e vingança
que as religiões impõem; do preconceito contra quem ousa
levantar a voz contra elas. Sem isso em mente, os textos
parecerão apenas mais um escárnio blasfêmico e nada mais.
Quanto aos antagonistas, seria normal que o Satanás
fosse o maior inimigo do Arcanjo Khanagem, pois, segundo a
crença cristã, o primeiro era um anjo orgulhoso que se voltou
aos seus e, como castigo, fora colocado longe de sua
presença. Entretanto, a relação entre os dois é sempre um
tanto harmoniosa, pois, no fundo, têm funções parecidas –
enquanto Khanagem trabalha no RH do céu, Tanás ("ouça,
Tánas,..." – inspirado pela descriatividade de "ouça
Khanagem!") faz o mesmo trabalho no inferno, que,
curiosamente, não é o local para onde vão os piores seres – lá
é bem mais divertido e interessante do que imaginam por aí.
Para não estragar a surpresa, não direi aqui qual o
maior rival do Arcanjo Khanagem. Já adianto, porém, que
não se trata do G.E.D.U., o Grande Encarregado do
Universo, denominação inspirada na divertida sigla
G.A.D.U.
dos maçons. Ele, ao contrário de seu colega
bíblico, é um tanto quanto quieto e tranquilo; não é do tipo
falante.
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O Evangelho de Khanagem Rodrigo Darini Valente
Exponho, nas próximas páginas, um trabalho dividido
em duas partes: na primeira, vem a mitologia acerca da