O Jardim Dos Iluminados
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O Jardim Dos Iluminados - Johnny Fragoso
1
Quando você abre os olhos pela manhã, sua alma está realizada porque
ela já tem tudo o que precisa para ser feliz neste dia, nesta vida e por
toda a eternidade. Este é o clímax da alma, saber que ela é eterna,
indefinida e totalmente ilimitada.
2
O rapaz abriu os olhos e estranhou o ambiente à sua volta. Embora
lembrasse um quarto de hospital, não havia equipamentos médicos ou
qualquer outro artefato do tipo. De todo modo, onde quer que estivesse,
certamente não era a moderna e confortável cobertura em que vivia no
centro da cidade.
O travesseiro sobre o qual sua cabeça pendia dolorosamente cheirava
à naftalina e, para seu espanto maior, uma pequena tabuleta de madeira
jazia dependurada na parede à sua frente, trazendo os seguintes dizeres:
ABANDONAI TODA A ESPERANÇA,
VÓS QUE ENTRAIS
Com um pequeno esforço, lembrou que se tratava da inscrição
existente acima dos portões do inferno, na Divina Comédia, de Dante
Alighieri, o que só fez aumentar seu espanto, causando-lhe uma
incômoda preocupação.
O rapaz chamava-se Paulo e não fazia a menor ideia do local em que
se encontrava. Apesar do desconforto momentâneo, forçou o corpo para
o alto e moveu o pescoço lentamente até o ponto em que uma dor
lancinante o obrigou a voltar a posição original. Movendo apenas os
olhos, examinou o lugar mais detidamente e pôde ver que uma pequena
sineta empoeirada havia sido colocada sobre o criado mudo, ao lado da
cama em que estava.
"Que droga de lugar é esse", pensou consigo enquanto estendia o
braço para apanhar o objeto. Quem quer que o estivesse mantendo preso
naquele lugar certamente queria ser avisado no momento em que
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acordasse. Então, apesar da dor que lhe tocou a base da cabeça, apanhou
a sineta empoeirada e a agitou freneticamente como se gritasse por
socorro.
Também pensou em chamar por alguém, mas sentia-se tão fraco que
não reunira forças para fazê-lo. Nesse momento, chegou a pensar que
suas cordas vocais haviam sido arrancadas da garganta. Assim, quando
se preparava para brandir a sineta uma segunda vez, um breve rangido
de assoalho acusou a chegada de alguém, fazendo com que uma centena
de pensamentos permeassem seu cérebro numa fração de segundos.
"Quem haveria de ser? O que estava fazendo naquele lugar
estranho? Por que sentia tantas dores? Havia sido sequestrado? Quem
o esperava do lado de fora? Seria um salvador ou a pessoa que o havia
raptado"?
O rangido do assoalho tornou-se mais forte até que, finalmente,
pareceu parar diante da porta. Antes, porém, que ela se abrisse, um novo
rangido se fez ouvir no exato lugar onde o primeiro havia começado. Em
seguida, para o espanto do rapaz, outros rangidos foram se somando
continuadamente como se uma pequena multidão se acercasse do recinto
em que se encontrava.
O rapaz arregalou os olhos e viu-se com o coração aos pulos. Se
tivesse sido sequestrado, como de fato desconfiava, tudo levava a crer
que seus raptores encontravam-se reunidos do lado de fora do cativeiro,
à espera de que recobrasse a consciência para gravar alguma mensagem
ou pedido de resgate.
4
"Sim, é isso", pensou olhando fixamente para a maçaneta da porta.
"Mas por que não me lembro de nada?"
De fato, guardava todas as lembranças de sua vida intactas até aquele
momento, desde que saiu para o trabalho até apanhar Cláudia em frente
ao prédio em que moravam. Mas daí em diante, não se lembrava de mais
nada. Apenas um espaço em branco, uma lacuna não preenchida, um
lapso de tempo e espaço que num piscar de olhos o remeteram até aquele
quarto mal iluminado, o cheiro de éter, a naftalina e a tabuleta com os
dizeres que aludiam ao Inferno de Dante. E agora, os rangidos na porta.
Todos aqueles pensamentos ziguezagueavam em sua mente no
momento em que a maçaneta girou vagarosamente e um tênue feixe de
luz inundou o quarto ofuscando sua vista. Ao colocar as mãos sobre os
olhos para conter o feixe de luz, vislumbrou uma dúzia de rostos
assombrados que o fitavam através da fresta deixada pela porta.
Contudo, por mais estranhos que parecessem, não se assemelhavam
ao perfil de sequestrador com o qual estava habituado a ver na capa dos
jornais. Ao contrário, aquela gente parecia estar tão assustada com a sua
presença quanto ele próprio estava com a deles.
O rapaz franziu o cenho e concentrou sua atenção num rosto diferente
de todos os outros que ali se encontravam. Era um rosto velho, composto
por uma espessa barba grisalha, suavemente cofiada por um par de dedos
grossos e enrugados. Trazia nos lábios um sorriso branco e insinuante,
uma espécie de cartão de boas vindas.
5
O velho aproximou-se lentamente fazendo um gesto para que os
outros ficassem do lado de fora. O rapaz encolheu-se na cama como que
se esperasse pelo pior.
— Julguei que morreria sem ouvir esta campainha.
Sua voz era grave como um trovão, mas, ao mesmo tempo, trazia um
que de doçura e cordialidade.
— Quem é você? – Indagou o rapaz aliviado pelo som da própria voz.
— Se é o que está pensando, você não está morto e este lugar não é o
céu. Como está se sentindo?
— Quando você me disser quem é e onde estou, talvez eu me sinta
melhor.
— Você está em um lugar seguro, pode acreditar. Mas me refiro à sua
condição física, afinal, ela não parece ser das melhores...
— Meu corpo dói como se tivesse sido atropelado por um caminhão.
— Queixou-se o jovem percebendo a ansiedade da turba que se espremia
do lado de fora do quarto.
— A dor é um bom sinal. Significa que seu corpo, e principalmente o
seu cérebro, estão intactos. Isso é muito bom.
— Mas de que diabos está falando? Como isso pode ser bom? Seja lá
quem você for, será que pode me explicar o que está acontecendo e
como vim parar neste lugar?
— Fique tranquilo meu amigo, as respostas sempre vêm no momento
mais apropriado. Agora, tudo o que você precisa é de uma refeição
decente, um banho de verdade e uma boa dose de sol e ar fresco.
6
O jovem pensou em se levantar e dizer algumas verdades ao velho,
contudo, mal teve forças para manter o corpo ereto sobre a cama.
Pensando bem,uma boa refeição viria mesmo a calhar, afinal, sentia-se
fraco e bastante indisposto até mesmo para raciocinar sobre tudo o que
estava acontecendo.
Assim, com um breve aceno de cabeça, consentiu resignado.Não
havia nada que pudesse ser feito.
O velho sorriu ternamente enquanto cofiava a longa barba branca. Ele
também estava curioso e ansiava por conhecer melhor o estranho homem
à sua frente
* * *
Apesar da frugalidade da refeição – uma sopa rala de legumes com
minúsculos pedaços de carne – o rapaz realmente sentiu-se melhor,
muito embora ainda não reunisse forças suficientes para sequer
permanecer em pé. Prevendo tal dificuldade, o velho tratou de
providenciar uma tosca cadeira de rodas para que servisse de veículo ao
jovem, enquanto este não recobrasse suas energias.
Mais calmo e disposto, o rapaz percebeu que o velho caminhava em
sua direção e, antes mesmo que pudesse dizer qualquer coisa, dirigiu-se
para a parte de trás da cadeira de rodas, posicionando-se como se fosse
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um motorista particular. Sem mais palavra, o velho tomou um impulso e
conduziu o veículo
para o lado de fora do refeitório fazendo com que
o rapaz finalmente se desse conta do lugar em que se encontrava.
Aliviado por não estar em um cativeiro convencional, ele logo
percebeu que o local era uma espécie de clínica de reabilitação, que jazia
encravado em algum sítio nos arredores da cidade. Após afastarem-se
um pouco, um exame mais detalhado da paisagem o fez acreditar que se
tratava, de fato, de uma clínica ou hospital psiquiátrico.
O complexo principal era formado por um prédio baixo com cerca de
cinquenta metros de comprimento e de onde se podia ver dez ou doze
pequenas janelas que contrastavam com o branco da parede. Do lado
direito do complexo havia uma varanda bastante aconchegante, onde
algumas pessoas espreguiçavam-se tranquilamente. Na parte central,
uma porta de vidro esfumaçado trazia um adesivo indicando que se
tratava de uma sala de recepção, de onde, mesmo àquela distância, era
possível notar que uma atendente falava ao telefone enquanto
posicionava uma folha de papel no que parecia ser um aparelho de fax.
Já do lado esquerdo, mais ao fundo, uma velha casa de madeira parecia
resistir ao tempo, lutando consigo mesma para permanecer de pé.
Ademais, havia muitas árvores, um gramado verdejante, um extenso e
multicolorido jardim, uma horta repleta de verduras e legumes frescos e
um lago com um longo píer de madeira. Ao redor do lago, uma dúzia de
pequenos casebres de madeira se estendiam até o sopé de uma graciosa
colina esverdeada.
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— Que lugar é esse? — Indagou o rapaz procurando o velho com o
canto dos olhos.
— Meu nome é Nelson – disse o velho ao lembrar que ainda não
haviam se apresentado – mas as pessoas preferem me chamar de
Professor. E você? Quem é?
— Não sabe quem eu sou?
— Não mesmo! Porque deveria saber? Você é alguém famoso?
O rapaz coçou a cabeça em claro sinal de preocupação.
— É que eu pensei que este lugar fosse uma clínica, mas, se assim
fosse, você deveria saber meu nome.
— Na verdade não estamos longe de ser uma clínica. Uma clínica da
alma, eu diria.
— Como assim? Acho que não entendi muito bem.
— Mais vai entender no momento certo. Se tem algo em que
acreditamos muito aqui em nossa comunidade, é que tudo o que
acontece em nossas vidas é para o nosso bem e possui algum
significado. Isso significa que se você chegou até aqui, é porque, de
alguma forma, queria estar aqui. Nada é por acaso.
— Mas como eu posso querer estar num lugar que nem sei aonde
fica? Pra ser honesto, eu nem mesmo sei como cheguei até aqui.
O velho parou subitamente a cadeira de rodas para olhar diretamente
nos olhos do rapaz.
— Tem certeza de que não se lembra de nada?
9
— Bem, lembro de quase tudo, exceto de quando e como cheguei
aqui.
O velho hesitou por alguns segundos.
— Bem, neste caso eu entendo a sua preocupação. Deve estar
achando tudo muito estranho mesmo.
O rapaz fez que sim com a cabeça como se esperasse que algum fato
novo solucionasse o mistério. Percebendo a angustia do jovem, o velho
disse o que sabia:
— Você sofreu um acidente e o seu carro foi encontrado dentro de
um rio que passa logo atrás daquela colina. Por sorte, algumas pessoas
que vivem na comunidade o encontraram e o trouxeram pra cá. Como
seu estado era muito grave, nós o levamos para um hospital na cidade.
Lá, os médicos conseguiram salvar sua vida, mas não puderam impedir
que entrasse em um estado de coma profundo. Alguns dias depois, os
diretores do hospital nos ligaram e pediram para que o buscássemos.
Diante do seu quadro médico, não havia muito o que pudessem fazer por
você.
— E por que não me levaram pra minha casa?
— E como podíamos saber aonde fica a sua casa? Você foi
encontrado sem documentos e ninguém fazia a menor ideia de quem era
ou de onde morava. O que, aliás, até agora não descobrimos.
O rapaz estava em choque.
Como aquilo era possível, afinal, tinha família e muitos amigos. Se
estava desaparecido, o mínimo que esperava era que vasculhassem a
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cidade até que o encontrassem. Não devia ser tão difícil levando-se em
conta os ilimitados recursos financeiros de que sua família dispunha.
Ao ver a agitação do rapaz, o velho pousou a mão em seu ombro.
— Fique tranquilo que tudo vai se resolver.
—Tranquilo? Como pode pedir pra que eu fique tranquilo? Preciso
voltar agora mesmo e retomar minha vida. Tenho negócios a resolver,
além do mais, preciso saber porque é que não vieram me procurar. Eu
poderia estar morto a essa hora, sabia?
— Bem, talvez você esteja realmente morto.
O rapaz arregalou os olhos e, se não fosse por sua saúde debilitada,
teria saltado da cadeira de rodas.
— Como assim? Do que você está falando? Como posso estar morto
se estou falando com você?
— Eu sei que você não está morto. E sei disso porque eu estou vivo e
não costumo ver fantasmas. O que quero dizer é que para o mundo fora
desta comunidade, talvez você esteja realmente morto.
— Impossível! A menos que...
O velho deixou escapar um sorriso lacônico e voltou a empurrar a
cadeira de rodas por uma pequena trilha ladrilhada que levava até o
jardim.
— Pare! – Berrou o rapaz gesticulando sem parar.
— O que foi?
— Há quanto tempo estou nesta comunidade? Quero dizer, quanto
tempo fiquei em coma?
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— Hum, essa é a pergunta certa. Deixe pensar um pouco ... pela
minhas contas você está aqui há pelo menos oito meses.
O rapaz estremeceu e uma onda de pânico tomou conta do seu corpo.
De fato, não se dera conta que estava bem mais magro do que se
lembrava. Nesta hora, sentiu vontade de gritar e chorar, mas não teve
forças. Apenas silenciou por alguns segundos.
— Oito meses? Como conseguiram me manter aqui por todo esse
tempo sem uma estrutura médica?
— Você não deu muito trabalho. Na verdade, apenas cuidados de
enfermagem como soro na veia, banho e alguns curativos. Mas o grande
mérito da sua sobrevivência é seu. Foi você quem decidiu não morrer
agora.
O rapaz refletiu por alguns instantes. Não estava tão certo sobre o
mérito por sua sobrevivência. Lembrava-se de estar amargurado nos dias
que antecederam o tal acidente. Trabalhava demais, a relação com a
família não era das melhores, havia brigado com Cláudia e marcara o
jantar no dia do acidente justamente para se reconciliar com a esposa.
Pelo menos era o que sobrara de sua memória. Na verdade, nem mesmo
se lembrava de algum acidente.
— De qualquer modo – insistiu o rapaz – terei que partir agora que
recobrei a consciência. Além do que, já estou recuperado.
— E quem disse que está recuperado se mal tem forças para ficar de
pé?
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O rapaz respirou fundo e baixou a cabeça. De fato, mal podia
aguentar o peso do próprio corpo e por mais angustiado que se
encontrasse, de nada adiantaria voltar a vida naquelas condições. Antes
mesmo que pudesse responder a pergunta, o velho emendou:
— Vamos fazer o seguinte, você fica conosco durante trinta dias,
recupera suas energias e somente então retoma sua vida.
— Não sei, acho que não posso abusar mais de sua hospitalidade, até
porque, vocês já fizeram muito por um simples desconhecido.
— De jeito nenhum. Quando conhecer melhor nossa comunidade vai
saber que você não é um simples desconhecido. O que me diz?
— Bem, acho que não tenho muita escolha.
— Ah, você tem sim. Nós sempre temos escolha. Você, por exemplo,
pode voltar para sua velha vida agora mesmo ou, por outro lado, pode
aproveitar um acontecimento inesperado e fazer dele uma oportunidade
única de conhecer algo novo. Tudo está aí pra você escolher e seu único
trabalho é escolher o que é melhor pra sua vida. Muitas pessoas levam
vidas medíocres por acreditarem que nunca tiveram escolha. É sempre
aquela estória de que eu não escolhi ser pobre
ou "eu não escolhi ter
tantos filhos" e por aí vai. Contudo, se olharmos na raiz do problema,
sempre encontraremos uma escolha que foi feita em algum lugar do
passado e em meio a tantas outras que estavam a disposição. Portanto,
meu caro, essa é a primeira lição que aprenderá nesta comunidade:
sempre há uma escolha. A propósito, já me esqueci do seu nome.
— É porque eu não disse ainda. Eu me chamo Paulo.
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— Por causa do apóstolo? - Arguiu o velho tentando ser simpático.
— Na verdade, é por causa do Paulo Roberto Falcão, jogador da
seleção brasileira. Meu pai era apaixonado por aquela seleção de 82. Ele
queria que eu me chamasse Sócrates, mas minha não gostou muito e
achou que Paulo Roberto era melhor.
— Eu gosto mais de Sócrates. É mais sábio.
O rapaz não viu graça no comentário feito pelo velho. Antes, porém,
que respondesse, ambos chegaram ao fim da trilha ladrilhada que levava
ao jardim, fazendo com que o velho conduzisse a cadeira de rodas por
sobre o gramado até que chegassem a parte mais alta do terreno. Lá de
cima, o rapaz pôde ver um vasto pedaço de terra vermelha sendo
revirada por um velho trator com arado.
Percebendo a curiosidade do rapaz, o velho tratou de explicar a cena:
— Plantaremos batatas naquele espaço vazio. Se olhar um pouco
mais para a sua esquerda, verá uma plantação de mandiocas e outra de
abóboras. E depois que colhermos as mandiocas e as abóboras, talvez a
gente plante morangos ou abacaxis.