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O Plano
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E-book293 páginas4 horas

O Plano

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Sobre este e-book

Uma trama que envolve o leitor na mesma intensidade bem calculada com que o personagem principal também se enreda numa história assustadora, revelando as forças e fraquezas que compõem o jogo do poder e até onde este pode atiçar a crueldade humana, camuflada em ações que, à primeira vista, traduzem bondade e filantropia.

Este romance de suspense vai muito além da trama de mistério, pois abre uma janela através da qual enxergamos a alma dos personagens com tamanha clareza que nos assusta pela verossimilhança com a realidade do dia a dia.

Tendo como cenário a cidade de São Paulo, com uma pluralidade cultural e social que sintetiza o Brasil, a história gira em torno de um sinistro ardil que, por pouco, não chega ao poder principal do país. isto é, se em algum momento da nossa história recente realmente não chegou ou poderá chegar. esta é a dúvida que permanece pairando no leitor após encerrar a eletrizante leitura.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento24 de abr. de 2021
ISBN9786599442407
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    O Plano - Agda Theisen

    Sumário

    I

    Deixou o hotel tão rápido quanto permitia sua mente entorpecida pelo álcool. Caminhava com cuidado, olhos fixos no chão e, pelo sim e pelo não, a um braço de distância da parede mais próxima.

    — Puta que pariu — praguejou quando o corpo do outro o derrubou no chão.

    Com algum esforço conseguiu se livrar do mendigo inerte e ficar em pé. O fedor do homem irritava o olfato.

    Teve o ímpeto de chutar o desgraçado, mas a percepção do sangue que lhe manchava as mãos e a camisa fez seu cérebro, lento pela bebida, reagir.

    Mais lúcido, abaixou-se e viu que o homem ainda respirava, embora o pulso estivesse muito fraco. Não teve coragem de examinar a origem de todo aquele sangue. Seu instinto gritava para que saísse dali o mais rápido possível.

    Respirou fundo, fechou o casaco para ocultar a mancha de sangue, limpou as mãos nas roupas do indigente e preparou-se para deixá-lo entregue à própria sorte. Um último olhar no moribundo, entretanto, o reteve. A luz do poste iluminava o rosto cadavérico, a despeito do movimento do tórax evidenciar a respiração renitente. Uma centelha de altruísmo o fez sacar o celular e discar 190. Relatou à polícia o que encontrara e pediu que arrumassem uma ambulância. Omitiu tratar-se de um mendigo, pois duvidava que atendessem se soubessem que era um vagabundo de rua.

    Sacudiu a cabeça, satisfeito. Fizera o que estava ao seu alcance...

    — Será? — sussurrou uma voz dentro da sua cabeça — Porra, eu ainda estou muito bêbado — sacudiu veementemente a cabeça.

    Porém, a voz insistia e o impedia de seguir andando. Olhou o sujeito no chão e apertou os olhos para focá-lo melhor. A palidez da face parecia ter aumentado e os movimentos respiratórios estavam quase imperceptíveis.

    — Ele não vai aguentar esperar...

    Com má vontade, abaixou-se, tentando ignorar a náusea causada pela mistura dos cheiros de sangue, suor e excrementos, e ergueu a camisa do homem. A hemorragia provinha de uma incisão na lateral do abdômen, abaixo da linha das costelas. Aos pontos desfeitos, ele torceu o nariz; fizera suturas bem melhores do que aquela quando treinava na faculdade.

    Rasgou um pedaço da própria roupa, dobrou como uma compressa e pressionou sobre a ferida aberta. Depois, retirou um trapo que o mendigo trazia amarrado feito turbante e enrolou em torno do corpo dele, prendendo a compressa improvisada firmemente. Ignorou a imundice da tira de pano, infecção era o menor dos problemas dele, pensou. Ajeitou as roupas do mendigo, tentando mantê-lo mais aquecido e pôs alguns pedaços de papelão encontrados por ali para proteger-lhe a cabeça raspada da rudeza do chão. Pronto. Agora não tinha mais coisa alguma para fazer por ele. Levantou-se, arrumou-se como pôde e espreitou o começo da rua para ver se a ambulância dava sinal de vida. Nada.

    Na esquina adiante, três prostitutas conversavam displicentemente em frente à porta do Hotel D´Ouro. Sob a luz fraca do letreiro, Zeca analisou as mulheres envoltas na fumaça dos cigarros e tentou identificar com qual delas estivera. Não teve certeza.

    Parecendo saber que eram observadas, elas se voltaram para ele, ignorando o homem caído no chão, coisa nada incomum por ali. Depois, perderam o interesse e retomaram o assunto de que tratavam. Ele as examinou mais um pouco... Fora com a dos sapatos vermelhos — lembrou.

    Ironicamente o adereço o impressionara mais do que o rosto, mais do que a transa. Aliás, dessa nem lembrava. Será que, na bebedeira, a mulher o enganara? Não, não, ponderou, seu corpo saciado dizia-lhe que não.

    Voltou-se para o moribundo. Os lábios do sujeito se moviam num sussurro.

    Abaixou-se, aproximando o ouvido do rosto do infeliz. Pareceu entender:

    — Fio, líbero, foge, irh.

    Um gemido rouco substituiu a voz.

    — Fale outra vez, quem é você?

    — Coca, fio, líbero, foge, ir...h.

    O homem voltou à inconsciência. Podia ser mesmo que aquelas fossem suas últimas palavras.

    Ouviu um som de sirene. Ocultou-se na sombra do prédio da esquina, colando-se atrás de uma pilastra.

    Era mesmo a ambulância. Dois homens desceram do carro, balançaram negativamente a cabeça e um deles chegou a cutucar com o pé o mendigo caído, como se fosse um saco sem vida. Depois, retiraram a maca do veículo, jogaram o ferido em cima sem qualquer tipo de cuidado e partiram sem muita pressa.

    Zeca caminhou lentamente até a Praça da República. Os neons piscando ao longo do percurso convidavam para nova rodada de bebida, mas a roupa suja de sangue mal ocultado sob o casaco o afastou da ideia. Se fosse abordado por um policial, dificilmente o convenceria de que fora apenas um bom samaritano.

    * * *

    — Zeca, meu filho, você está bem? Zeca, acorda!

    Conseguiu abrir os olhos com dificuldade, tudo parecia girar. Um suor frio sobreveio quando ele tentou se sentar, obrigando-o a se recostar e fechar os olhos novamente. Passaram-se ainda alguns minutos até que conseguisse dominar o mal-estar e percebesse o olhar assustado da mulher:

    — Por que essa aflição?! O que aconteceu?

    — Eu é que pergunto! Encontrei sua camisa rasgada e toda suja de sangue, você dormindo até uma hora dessas e gemendo...

    — Eu estava tendo um pesadelo. Que horas são?

    — Passa das onze.

    — Droga! Meu pai... — tentou se levantar.

    — Está ótimo, não se preocupe — tranquilizou-o, empurrando-o de volta à cama com delicadeza.

    O rapaz mudou de posição na cama, oferecendo um espaço para que ela se sentasse ali. Relatou o que acontecera na madrugada anterior e contou sobre o pesadelo, em que o assombrava a figura do moribundo

    Dirá balançava afirmativamente a cabeça. Zeca sabia que ela devia estar atribuindo um sentido místico ao seu sonho, coisa que gostava de fazer, mas esperava que o poupasse das suas interpretações.

    A velha mulher levantou-se e, como se ouvisse seus pensamentos, apenas disse:

    — Muito bem.

    Altiva, porte nobre, a despeito da condição humilde de empregada doméstica que sempre fora, ela ainda emendou antes de sair do quarto:

    — Está na hora de acordar para vida, Zeca.

    — Já estou me levantando, minha deusa de ébano — provocou, fingindo não entender o sentido mais profundo que ela tentava dar às palavras.

    — Se eu fosse deusa de alguma coisa, já tinha dado um jeito em você!

    Ele se aprontou e foi ver o pai. Encontrou-o recebendo o almoço que Dirá carinhosamente oferecia. Afagou o homem velho, disse-lhe alguma coisa ao ouvido e recebeu de volta o olhar vago de incompreensão a que já se acostumara.

    — Cada dia melhor — comentou fazendo careta e seguiu na direção da cozinha.

    Sentou-se à pequena mesa, serviu café e mordiscou alguns biscoitos. Relembrou, alternando censura e indulgência, os excessos da noite anterior. A bebida, a música alta, o bar cheio, a pista de dança lotada. O lugar de má aparência era, originalmente, ponto de prostituição, mas se tornara cult e passou a ser frequentado por diferentes tribos ou simplesmente curiosos dispostos a descobrir novidades.

    Ele gostava de lá porque no meio da variedade de tipos que lotavam o lugar sua figura passava despercebida. Costumava se sentar em uma mesa de canto, num mezanino estreito, de onde tinha uma visão privilegiada e normalmente não era incomodado. Na noite anterior, porém, fora diferente. A mulher se aproximou, deixando claro que seu interesse era profissional. Aceitara a companhia, talvez porque naquela hora sua solidão o incomodasse particularmente mais. Beberam muito, dançaram um pouco e terminaram a noitada num quarto barato de hotel.

    Observava, distraído, a vista da janela, quando a voz do apresentador do telejornal chamou sua atenção para a TV que ficava sempre ligada na cozinha:

    O homem que atacou o médico Arno Costa Ramos foi encontrado morto nessa madrugada, no centro de São Paulo. Há dois dias, esse homem, interno da Fundação Otília Ramos, do qual Arno é fundador e diretor, tentou assassinar o seu benfeitor utilizando um canivete...

    Zeca se interessou. O tal médico fora seu professor no ciclo básico do curso de medicina. Ele não lembrava muito bem em qual disciplina. Alguma coisa relacionada à ética...

    Voltou sua atenção ao telejornal.

    A TV mostrava um replay do depoimento do médico, um senhor de idade, com o braço sustentado por uma tipoia e um sorriso cândido no rosto: Recolhemos aquele pobre homem das ruas, doente, desnutrido, dependente de drogas e tentamos cuidar dele da melhor forma possível. Desde o princípio diagnosticamos distúrbios psíquicos graves, com manifestação de alucinações e mania de perseguição. Infelizmente não tivemos tempo de tratá-lo adequadamente, ele fugiu, provavelmente motivado pelo desejo das drogas. Há dois dias, apareceu no meu escritório. Aproximei-me para acolhê-lo, e ele me agrediu com uma faca, acusando-me de tentar matá-lo.

    Quando a matéria terminou e o assunto do jornal mudou para a previsão do tempo, ele desligou o aparelho.

    Serviu mais uma xícara de café, recostou-se preguiçosamente e esticou as pernas compridas. A bebida quente e estimulante ajudava a dissipar os sinais da ressaca e uma sensação de bem-estar tomava conta dele. Relaxado, permitiu que sua mente passeasse pelas lembranças da faculdade...e torceu o nariz. Entrara na faculdade de medicina apenas para afrontar o pai.

    — Perda de tempo!

    Tratou de mudar o rumo dos pensamentos. Na porta da geladeira ímãs desbotados prendiam as contas do mês. Levantou-se e apanhou o maço de papéis, analisando os compromissos daquela data.

    — Dirá!

    Ela não respondeu, e ele foi encontrá-la acomodando o pai para o descanso da tarde. Trocaram um olhar cúmplice, e ele ergueu o maço de contas, completando:

    — Vou ao banco.

    Ela assentiu com um gesto e sussurrou:

    — Vá tranquilo, que hoje ele está ótimo!

    Desceu os lances de escada que ligavam o segundo andar ao térreo. Não gostava de usar o elevador. Era antigo e lento e a porta de grade rangia tanto ao abrir que sempre suscitava dúvidas sobre a manutenção adequada.

    O velho prédio, no entanto, ainda guardava sua imponência, principalmente no saguão. O pé direito alto, o piso de mármore, a escadaria redonda que dava acesso à rua e à ampla porta de folha dupla com vidro bisotado, atualmente reforçada por grades de segurança, mas ainda graciosa, davam personalidade ao conjunto.

    Agradava-lhe morar ali, mesmo questionando até quando seu pai conseguiria vencer os seis degraus de acesso ao hall. Já colocara em pauta nas reuniões de condomínio a necessidade de construir uma rampa para cadeiras de rodas e julgava que, pela média de idade dos moradores, sua sugestão logo seria acatada.

    Andou dois quarteirões até o banco e tomou as providências necessárias. Conferiu o relógio e viu que ainda dispunha de mais ou menos uma hora até seu pai acordar; depois, seria seu turno de cuidar do doente, levá-lo ao playground, forçá-lo a andar alguns poucos passos e tentar distraí-lo com alguma coisa.

    Disposto a aproveitar o restante da folga, atravessou a rua para comprar um jornal antes de se sentar em um barzinho, pedir um chope e alguma coisa para o almoço.

    Na banca, enquanto esperava pelo troco, observou a variedade de jornais pequenos com suas manchetes sensacionalistas hilárias Homem admite, eu mato a cobra e mostro o pau, uma foto ilustrava a matéria mostrando um caçador esfolando o pobre réptil. Outro anunciava: Assassinos preferem as loiras.

    — Só pode! Com a descoloração em alta eles estão ficando sem opção!

    Mais abaixo, uma nota menor dizia: Encontrado morto o agressor do médico... — nem acabou de ler. Seus olhos se fixaram na foto de mau gosto do dito defunto, um homem que reconheceu como o mendigo que tentara ajudar. Ao lado, uma foto de Arno Ramos completava a reportagem.

    — Que louco!

    Pegou o exemplar do O Diário de Polícia, incluiu-o na compra e seguiu para o bistrô que costumava frequentar. Abriu curioso o periódico e leu a matéria completa.

    O indigente morreu de parada cardíaca, colapso que aconteceu em virtude de uma overdose de cocaína.

    — Estranho, nenhuma referência à hemorragia — ele mesmo avaliara que sem uma transfusão de sangue imediata, o homem teria poucas chances de viver — por outro lado, das poucas palavras que conseguiu falar, uma foi coca.

    O restante do texto trazia uma reprodução do depoimento do médico que ele já ouvira na televisão.

    Desinteressou-se e colocou o jornal de lado. Seu almoço chegara.

    Deliciou-se com o filé apimentado e com o chope gelado, depois voltou para casa andando devagar, observando o movimento intenso da tarde.

    Todos pareciam tão ocupados. E ele? Até quando levaria aquela situação?

    Pensou, mesmo sem querer, no pai doente, no diagnóstico já tardio do mal de Alzheimer, na perda gradativa da capacidade da mente, na angústia dele em não conseguir lembrar quem eram as pessoas ou os lugares, nos surtos agressivos, no autoflagelo! Sabia do desespero de dormir com a mínima certeza de uma identidade, reconstruída diariamente com a ajuda do filho, e acordar ignorando o conceito mais elementar de existência — quem ele era! E mesmo agora, que estava quase catatônico, quem poderia garantir que ele não continuasse a se torturar intimamente?!

    Sentiu a raiva de sempre. Raiva pela doença ingrata, raiva por não ter percebido antes, raiva por não ser capaz de construir a própria vida e, ainda, covardemente, usar a doença do pai para justificar sua inércia.

    A angústia fazia seu corpo responder imediatamente. O pulso acelerava, a respiração parecia difícil e um aperto na garganta exigia uma bebida forte que o aliviasse. Olhou em volta e não viu onde pudesse tomá-la, estava quase em casa e não havia mais tempo para se estender na rua. Dirá tinha um compromisso logo mais e precisava sair. Relutante, entrou em seu prédio, procurando acalmar o organismo. Precisava do mínimo de serenidade para a tarefa que tinha de fazer.

    Durante o resto do dia ocupou-se com os cuidados habituais do doente. Custava-lhe, às vezes, sentir ligação com aquele ser que agora parecia um estranho. O vínculo que o unia àquele homem velho e decrépito, ele admitia sinceramente, eram as recordações da infância e o remorso por ignorá-lo tanto tempo depois de adulto.

    Já passava das dez da noite quando Joseph, ou seu José como Dirá o chamava, finalmente dormiu. Zeca respirou fundo, espreguiçou alongando os braços e procurou pela garrafa de bebida que escondera na sala. Dirá não voltaria naquela noite, ficaria na casa do filho, e ele se sentia à vontade para tomar um trago sem o olhar reprovador dela.

    A mulher cuidara dele desde seu nascimento e até agora agia como sua babá. Órfão de mãe desde os três anos de idade, ela era sua única recordação de cuidados femininos na infância. Já estava aposentada, mas continuava na casa, pois sabia que sua presença era necessária. Era-lhe profundamente grato por isso. O inconveniente é que a velha ama jogava fora toda garrafa de bebida alcoólica que achava, e era expert em descobrir os novos esconderijos que ele encontrava para driblar sua vigilância.

    A garrafa de conhaque da sala realmente sumira, mas a que estava escondida na despensa, mimetizada no meio do estoque de material de limpeza estava intacta.

    Ignorando o leve cheiro do desinfetante salpicado no rótulo, verificou que por dentro o líquido estava perfeito. Serviu-se da bebida escura, apreciou o aroma encorpado e se sentou comodamente no sofá da sala, sentindo a brisa da noite que entrava pela janela.

    O jornal que comprara naquela mesma tarde estava em cima da mesa. Estendeu o braço e o pegou, folheando-o distraidamente. Leu um pouco sobre política, a página de esportes e teve a ideia de procurar num jornal sério alguma notícia sobre a morte do mendigo que ele tentara ajudar. Não encontrou nada na sessão policial. Não deu importância, não lamentava sobre o pobre indivíduo. Maluco, viciado, o que podia esperar da vida? E ainda por cima atacara o Dr. Arno!

    Gostava do antigo professor, não por causa das aulas, pois o assunto o entediava, mas quando resolvera deixar a faculdade para tomar conta do pai, faltando praticamente um semestre para concluir o curso, o professor o procurou, solidário, contou que sua esposa sofria da mesma doença e o aconselhou a prosseguir com os estudos. Diante da irredutibilidade do aluno, colocou-se à disposição para ajudá-lo no que fosse preciso e o confortou com um abraço amigo.

    A solidariedade inesperada tocou-o naquele momento delicado, fazendo-o registrar o fato na memória. Porém, nos quatro anos passados, desde então, Zeca nunca mais havia pensado no professor com cara de avô bondoso, sempre homenageado pelos formandos da faculdade.

    Naquele momento, entretanto, sentiu vontade de revê-lo. Sorveu mais um grande gole de conhaque e fixou o olhar no tapete enquanto se entregava à nova ideia. Gostaria de conversar com alguém que entendesse o contexto da sua vida. Havia se afastado dos amigos ou os amigos é que tinham se afastado dele. De qualquer forma, com o professor poderia falar mais à vontade sobre seus problemas sem aborrecer muito seu interlocutor, pois ele o entenderia.

    Com a autocrítica enfraquecida pelo álcool, procurou o número da fundação que Arno Ramos dirigia e que levava o nome da sua esposa, e ligou.

    O telefone chamou inúmeras vezes, tempo suficiente para que ele percebesse como era tarde e não deveria haver ninguém lá.

    Já ia desligar quando alguém atendeu.

    Perturbado, ficou alguns instantes sem ação, enquanto a voz familiar do outro lado perguntava pela terceira vez:

    — Alô? Quem é?

    Finalmente teve coragem de responder:

    — Dr. Ramos? Quem está falando é um ex-aluno...

    — Sim? — incentivou.

    Zeca respirou fundo, arrependido de ceder ao impulso de ligar. No entanto, agora devia uma explicação:

    — Meu nome é Joseph Schmmitd... Filho — completou desnecessariamente — fui seu aluno há alguns anos, o senhor não deve lembrar. Vi na televisão sobre o atentado que o senhor sofreu e, bem, queria saber como o senhor está.

    — Oh, meu filho, muito obrigado pela atenção. Tenho recebido muitos telefonemas e são coisas como essas que atestam que plantei boas sementes na vida. É um conforto muito grande. Eu estou bem, apesar de tudo. E você? Como vai?

    — Eu? Quero dizer, eu vou bem.

    Seguiu-se um silêncio incômodo o qual o professor soube quebrar:

    — E a profissão, como vai? Qual sua área, mesmo?

    O ex-aluno ficou embaraçado. O que dizer, senão a verdade?

    — Eu, na realidade, não me formei. Precisei cuidar do meu pai, que está doente. Alzheimer, o senhor sabe...

    — Agora me lembro de você! Vejo que não seguiu meus conselhos, não é? Um rapaz tão brilhante.

    — Acho que não tão brilhante assim.

    — E hoje, você trabalha com o quê?

    — Na realidade, continuo cuidando do meu pai.

    — Entendo.

    — Na verdade — apressou-se em dizer, na tentativa de salvar sua dignidade — estou estudando novas possibilidades.

    — Por que não vem me visitar qualquer dia aqui na Fundação ou lá na faculdade, se preferir?

    — Pode ser.

    — Venha — insistiu ele, gentil — estou na Fundação todas as manhãs e à noite, até mais tarde, como você pode ver. Você sabe onde fica?

    — Sei, sim, no centro...

    — Isso. Venha e vamos conversar um pouco sobre você!

    — Está bem, professor. Obrigado.

    — Obrigado a você por ter ligado.

    Largou displicentemente o telefone sobre o sofá e riu sozinho. Arno Ramos continuava o mesmo! Carismático e atencioso, sempre se dispondo ao papel de orientador.

    — Bem — suspirou — trocar algumas ideias com ele pode ser um começo, afinal.

    Determinado, celebrou a decisão com um último gole e voltou a esconder a garrafa no armário de limpeza.

    II

    Examinou pela enésima vez o prédio logo adiante. Da mesa onde estava podia ver a entrada da Fundação Otília Ramos. A instituição ocupava boa parte do térreo do edifício.

    A luz do letreiro se acendeu e funcionários começaram a deixar o local. Conferiu o relógio: seis da tarde. Respirou fundo. Estava naquele bar desde as cinco, se ia encontrar com Ramos, que fosse logo. Tomou coragem, pediu a conta e adicionou uma pastilha de menta à cerveja que bebera.

    Caminhou um pouco e atravessou a rua lentamente. Identificou-se ao porteiro, que liberou sua entrada, indicando a última sala de um extenso corredor.

    Entrou sem pressa, na realidade, ainda questionava se devia mesmo ter ido, mas não tinha nada a perder, concluiu.

    — Nada mesmo — repetiu para si mesmo e bateu à porta com os dizeres Diretoria.

    Percebeu passos do outro lado. Arno apareceu dando-lhe um sorriso e um abraço:

    — Joseph, que bom que você veio!

    Zeca

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