Crônicas Da Quarentena
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Crônicas Da Quarentena - Diversos Autores
O CIO E O FIO
Augustto Flavio D'Moraes
Está ensolarado lá fora. Os tijolos de vidro refletem o prisma de um banho de sol que se convida. Sinto-me preso, ansioso, louco. Penso nas coisas a fazer: tomar o desjejum, lavar a louça, organizar a casa, ler, cuidar de mim e das coisas. Ah! Quero escrever uma crônica para um projeto sobre a quarentena! Ouço miados, que aumentam conforme os segundos correm no relógio. Tenho duas gatas, aliás, três: Aline, minha esposa; Minerva em homenagem ao Harry Potter; e Lila, aportuguesada do Hindi. Observo o céu anil da janela. Estou preso dentro de casa. As panterinhas, também presas no depósito, miam desesperadamente. Abro a porta e nem bom dia recebo. Gatos sendo gatos. Fito a sujeira, a bagunça. Cocô, muito excremento nas bacias repletas de areia. Calma, é só uma areiazinha. Limpo e arrumo, pois agora as mal-humoradas e antipáticas
estão com fome. Corro para dentro de casa para pegar a vitamina e o antibiótico delas. Volto ao depósito e cadê as gatas? Fugiram. Foram passear atrás de prazer e da sua natureza indelével. Continuo a limpeza e a ordem no quartinho. Troco a água e coloco ração nos potes. Junto todo o lixo e me dirijo ao lixeiro. Pronto. Lavo bem as mãos. Esqueci do café. Sento-me à mesa e me deleito. Estou alimentado. Minha fome matinal é voraz. Por um lapso de memória o hospital surge na tela mental. Tenho que trabalhar às 19h, máscaras e o inimigo invisível e suas companhias me aguardam. Logo esqueço e aproveito o belo dia que está por vir. Apavoro-me. Cadê as benditas gatas? Saio correndo pelo quintal orgânico e fico miando, onomatopeico. O desespero toma conta. Infantilizado, chamo as gatas. De repente elas miam. Uma está na árvore e a outra no telhado da casa. Surge em mim o espírito aventureiro de escalador, trepador de árvores, criança da década de 80 e 90 (saudades!). Chamo a Minerva, que da árvore desce. Dou um carinho nela e guardo-a dentro de casa. Agora é a Lila, que está no telhado. Ainda bem que são quase dez horas da manhã e o sol não castiga tanto. Pego a escada e cuidadosamente subo em sua direção. Lila quer brincar de esconde-esconde. Ensaio um palavrão. Só ensaio mesmo. Começo a serenar, me acalmar. Deito-me nas telhas de barro. De repente uma coisa preta e linda me lambe o rosto. É Lila. Calmamente dou um abraço nela. Quase sentado, vou rastejando para o beiral. Como descer pela escada? Que embaraço. Vejo uma parte mais próxima da beirada e calculo a descida no monte de areia que sobrou daquela reforma que fizemos ano passado. Jogo a gata calmamente e então desço. Ela louca, parecia pedir para brincar novamente. Vou até a areia e a chamo novamente. Ela vem. Vamos para dentro de casa, pois agora a Minerva miava insanamente pela irmã postiça. Corro para o computador e começo a digitar algumas coisas. As gatas malucas e intrépidas chamam a atenção e brincam sem parar. Fito o olhar nelas. Busco inspiração ao invés de brigar. Logo uma ideia surge. Os dedos rapidamente discorrem nos parágrafos virtuais. Na quarentena que não é quarenta, as contas não batem. Os minutos parecem ter menos de sessenta segundos, as horas parecem sem fim, o dia se esvaece, eu perdido em mim. Invisível, não percebo o que fiz. Desatento aos detalhes, mas nem tanto, denoto um automatismo. Vou fazendo o que posso. Hoje escolhi não ligar a televisão. O hospital já está nas minhas vísceras há algumas décadas. Autocuidado fica pra depois. São exatamente onze horas e vinte e quatro minutos, estou à frente do computador. As gatas, gastas pela brincadeira matinal, agora cessam e caem em sono a ronronar. A respiração delas é ofegante, rítmica, rápida. Logo me vem comparações fisiológicas, insuficiências respiratórias e muito mais. O cio? Ainda está aqui. As duas estão loucas para copularem. O fio? Parece novelo, carregadores do notebook, do celular, dos aparelhos diversos. Falta um apenas: o meu fio. Procuro a tomada humana. Não existe, é invisível, assim como o inimigo imaginário, pressão seletiva do humano otário. Começo a chorar. Mamãe, irmãs e sobrinhos estão longe em meio à epidemia. Minha sogra e cunhado também. Ajoelho-me e suplico proteção a todos. Não posso sair para vê-los, e nem poderia, tenho pacientes a atender, uma situação de caos anunciada. Copiosamente choro. Coração bate forte, quer abrir o peito sufocado. Após alguns minutos estou leve. Relaxo. Contemplo as gatas. Os rabos abanando, querem brincar. Os átomos compilados em pelos pretos e olhos amarelados anseiam movimento, felicidade, mais que isso. Querem dormir e assim o fazem. Ponto final, a crônica está pronta. Dentre cios e fios, não mais me desespero. Várias lições foram aplicadas. Meu amor, te espero, vem logo pra casa.
Ilusões de Quarentena
Alexis DG
Eu não quero sair de casa. E você também não, provavelmente. Eu sei, isso parece loucura. Todo mundo está dizendo que já não aguenta mais a quarentena, que daria tudo para voltar logo a circular pelas ruas como antes. Mas não acredite, isso é um delírio. Pense no calor, no trânsito, nas aglomerações com empurrões e pisões no pé. Quem quer sair e aproveitar de verdade lá fora são os pássaros confinados, nós não. Nós queremos é nossa liberdade de volta, e liberdade não é sair para enfrentar todas essas agruras da sociedade. Liberdade é poder escolher sair, e poder escolher ficar. É isso que todos nós gostaríamos de ter.
O que alguns enxergam como vantagem e outros como desvantagem é que a privação do senso de liberdade e do contato social pode nos causar uma espécie de hiperatividade mental. É como se, devido às nossas pernas paradas, sobrasse mais energia para o nosso cérebro funcionar a todo vapor, principalmente quando não é tão necessário. Isso é suficiente para nos fazer questionar alguns conceitos, prioridades e até nossa sanidade. Quem é que não fica confuso quando se vê louco para voltar à antiga rotina, mesmo tendo passado os últimos meses (ou até anos) reclamando dela?
Pois acostume-se: a quarentena veio para mexer com a cabeça de todo mundo. Isso fica claro pelas conversas que estão voltando do mundo dos mortos no meu celular – aposto que você também enviou ou recebeu pelo menos uma mensagem de alguém com quem não falava há um bom tempo. Confesso que, sob o domínio de um cérebro acelerado, fico me perguntando se essas mensagens, sejam as enviadas ou as recebidas, são motivadas por carinho e saudades ou se apenas estamos entediados a ponto de buscar qualquer conversa aleatória em nossa lista de contatos. De qualquer forma, parece que muita gente nunca esteve tão disposta a conversar quanto durante o isolamento.
O fato é que não dá para fugir das paranoias. Nós não estamos habituados ao confinamento, e ele vai continuar nos apresentando partes desconhecidas de nós mesmos e dos outros, o que pode ser ótimo se mantivermos o bom humor. Meu cachorro, por exemplo, agora faz festa quando vou ao mercado e começa a chorar quando volto. Mesmo sem ver as notícias, ele também não está tranquilo com o que está acontecendo.
Refletir mais e se reconectar com sentimentos esquecidos é nossa melhor chance