Cuidar? De Quem? De Quê? A Ética que nos Conduz
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Sobre este e-book
O estudo também indica algumas condições de possibilidade para o abandono do cuidado de si e dos outros: modos de viver que se sucederam, atualizados no contemporâneo pela ênfase no sucesso e no empreendedorismo individual, afogando-nos em nós mesmos e nos esvaziando do outro. Nossas relações estão cada vez mais pertinentes ao desempenho individual e menos à solidariedade e à vida comunitária. Aumentamos amigos virtuais a quem precisamos disfarçar desempenho e a quem não podemos ser como nascemos: desamparados. Nesse mundo do desempenho e do hedonismo infindo não há lugar para a dor do desamparo ou sequer lugar para a morte, que se afasta de nós embaçada em substâncias que visam a encobrir nossas dores, assim como potencializar nossos prazeres.
Esquecemo-nos que empreendedor é aquele que empreende dor, sabe-dor de que não há vida sem dor e que só podemos empreender a dor quando ela se torna parte da vida. Quando aliamos isso ao mundo da felicidade em pílulas, fecha-se esse movimento narcisista-hedonista-empreendedor. Sofrer para quê? Análise ou terapia para quê? Basta usar substâncias, sejam as advindas da indústria farmacêutica, sejam as advindas das garagens do tráfico.
Por esse conteúdo acentuadamente atual, com linguagem poética, mas sem perder o rigor acadêmico, esta leitura torna-se uma excelente fonte de conhecimento e discernimento a todos que se interessam pelo tema do cuidado.
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Cuidar? De Quem? De Quê? A Ética que nos Conduz - Ricardo Pimentel Méllo
Editora Appris Ltda.
1ª Edição - Copyright© 2018 dos autores
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COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO PSI
À Prof.ª Maria de Fátima de Sena e Silva,
criadora do Núcleo de Estudos sobre Drogas (Nuced)
e uma das pioneiras na implantação de estratégias
de Redução de Danos no Ceará.
FIGURA 1 – ILUSTRAÇÃO NAU DOS DESEJANTES
(2017)
AUTOR: MAURO REIS ALBUQUERQUE
APRESENTAÇÃO
Dos objetivos e processos de nascimento da pesquisa
A escrita consiste [...] em empreender uma tarefa graças a qual e ao final da qual poderei, para mim mesmo, encontrar alguma coisa que não tenha visto inicialmente.
(FOUCAULT, 2016, p. 49).
Passados 15 anos do meu doutoramento, passei por processo semelhante em nova banca: agora para promoção para a Classe E, denominada de professor titular. Os temas são diferentes, já que em 2002 estudei abuso sexual infantil
e agora, o conceito de cuidado
. Em comum, o fato de eu me debruçar em documentos e em temas que impõem certa ética. Sobretudo, a semelhança das teses, que permeou todas as minhas atividades acadêmicas, está na postura de estranhamento
, que me põe a participar de atividades acadêmicas e, de um modo geral, a viver. Esse estranhamento gera um incômodo sempre que algo se torna tão familiar que parece não precisar mais de cuidado. Ou seja, advogo que cuidar pressupõe estranhar, não se conformar. Estranhar porque cada momento deve ser vivido como singular, ainda que múltiplo em suas nuances e na sua constituição. Estranhar para não se habituar, e assim, descuidar. Guio-me pelo estranhamento fundamental para estabelecer controvérsias
e arriscar-me em campos de aventura acadêmica e não acadêmica, fazendo a vida mais criativa. Busquei essa postura que se torna um guia, um caminho, uma metodologia sempre tensa e ativa.
Desde a graduação tive o privilégio de me deparar com pessoas que despertaram o estranhamento em mim. Na minha lista há muitos regadores de estranhamentos. Certamente tive um percurso com privilégios porque sei que, mesmo em momentos de muitas dificuldades, elas são amenizadas por eu ser homem, branco, letrado e possuir algum dinheiro no bolso e parentes importantes
(parafraseando Belchior). Essas foram algumas das condições de possibilidade de minha estranheza no mundo acadêmico que também favoreceram a pesquisa, que agora está sendo publicada em formato de livro. Tal pesquisa que vivi intensamente entre julho e outubro de 2017, impôs-se como consequência das atividades que desenvolvo com parceiras e parceiros junto ao Núcleo de Estudos sobre Drogas, da Universidade Federal do Ceará (Nuced), relacionadas a ensino, pesquisa e extensão. São atividades acadêmicas, feitas em agenciamentos coletivos, dentro e fora da universidade, junto com quem se crê estudante e tem certa confiança de que está diante de um professor, que passa a ser um outro
que nem sempre é grande no que diz, mas que deve ser ético no que faz, buscando, com o falar franco, a incongruência indecifrável da verdade que, ao mesmo tempo, é frágil e criativamente potente.
A Academia me ajudou a atravessar o desamparo que nos é constituinte, que gera incertezas tão necessárias para tentar ir mais adiante. E essa travessia não se fez sem a arte. Freud (1930-2010), nos mostrou a importância da arte como suave narcose
, a deslocar nossos desejos e permitir-lhes vicissitudes. Na arte da música, deparei-me com inúmeras canções que usei em sala de aula e em textos (e continuo usando). Canções com vozes diversas como a de Leila Pinheiro, que me ajudou a traduzir a incômoda frase de Foucault que uso muito: o que estamos fazendo de nossas vidas?
. A narcose da arte, na voz de Leila e na letra de Fátima Guedes, ensina: a gente leva da vida, a vida que a gente leva
. Quem dera nossos trabalhos acadêmicos fossem essa narcose suave, a nos ensinar que a vida é essa que a gente leva, na medida em que narcosamos os nossos desamparos.
Também me acompanham as narcoses advindas de uma arte muito comum no Nordeste: a arte feita com o barro. E quero lhes contar uma fábula que advém da tradição romana, que não abordei na pesquisa porque demandaria tempo para enfrentar a discussão ontológica feita por Heidegger em Ser e o Tempo
e poderia me afastar da posição epistemológica que segui. Trata-se do mito do Cuidado
: uma fábula que nos remete a importantes metáforas. Envolve como personagens: Júpiter (identificado como Zeus na mitologia grega); Saturno, pai de Júpiter (identificado como Cronos na mitologia grega); Terra, a mãe de Saturno (Gaia na mitologia Grega); e por fim, Cuidado, que não era deus. Na lenda, Cuidado foi dar um rolê
, deparou-se com um rio em cuja margem tinha barro e se colocou a fazer arte, moldando um objeto. Júpiter chegou junto
e Cuidado lhe pediu que oferecesse vida à peça. Júpiter a animou (anima = espírito). Cuidado queria dar nome à peça, mas Júpiter se achou no direito de batizá-la com o seu próprio nome. Ambos ficaram nessa discussão, quando chegou Terra que se doeu
por conta do uso do barro e disse que a peça tinha que ter o nome dela. Discussão geral. Daí resolveram chamar Saturno para arbitrar a pendenga
. Este disse mais ou menos o seguinte:
Como essa criatura moldada por Cuidado vai morrer, porque não é deus, Júpiter vai ter de volta o espírito que doou e Terra vai ter de volta o corpo quando a criatura for enterrada. Porém, Cuidado é quem vai acompanhar a criatura em vida e merece dar o nome a ela.
Pois bem, entendendo que a criatura foi feita de matéria orgânica existente no solo (este um combinado híbrido advindo da decomposição de animais, minerais e vegetais), portanto, uma criatura que veio dos húmus, Cuidado deu à sua criação o nome de Homo (termo latino para homem). Pela fábula, quem criou o ser humano foi Cuidado, por isso o título do mito ser o mito de Cuidado
. Porém, esse mito também é conhecido como mito da Cura
, porque, em latim, o termo para cuidado é cura. As nossas ações no Nuced vão em direção à cura, não no sentido corrente de levar alguém à pureza, mas de acompanhar esse alguém em sua vida com cuidado.
Outra arte importante que me envolve em narcose são desenhos e pinturas. A capa da pesquisa abriga um desenho feito por um querido estudante do curso de Psicologia, Mauro Reis Albuquerque, que abraçou a minha proposta de fazer uma releitura da Nau dos Loucos
, neste caso batizada de Nau dos Desejantes
. Uma nau que coloca a todos, humanos e não humanos, em um barco à deriva no mundo, negociando nossos desejos coletivamente. Particularmente, nessas viagens acadêmicas, em uma nau corsária empurrada por desejos, segui atirando garrafas com mensagens nos mares das práticas acadêmicas, contando com tanta gente (outros sem os quais ninguém sobrevive).
No momento da pesquisa, a viagem se fez em direção ao cuidado
. Aprendi nessa viagem que o cuidado
é como uma garrafa que protege as mensagens atiradas ao mar, sem impedir a fluidez libertária da vida de quem quer que seja. Assim, uma ação é cuidado quando eticamente produz narcose aos nossos desamparos, sem impor à vida de alguém um modelo prévio, como se este fosse garantia de vida fluida. Cercear não é cuidar: é apenas impedir a narcose fundamental à nossa vida. Cercear não é cuidar: é apenas dominar. E cuidar, portanto, é produzir potências, seja nas dores ou nos prazeres. Isso a pesquisa, como uma lâmina afiada, marcou em mim. E assim espero que ocorra a quem partilhar a pesquisa por meio de sua leitura.
Desde meados de 2014, assumi a coordenação do Núcleo de Estudos sobre Drogas (Nuced), pertencente ao Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará, após o falecimento da professora Maria de Fátima de Sena e Silva. Inicialmente, montei um grupo de estudos com alguns estudantes e profissionais. Posteriormente, assumi a disciplina optativa Estudos e Pesquisas sobre Drogas
, na qual pude ampliar os estudos sobre o tema no curso de Psicologia. No Nuced, comecei a me envolver com práticas de Redução de Danos (RD), o que abriu caminho para que eu ministrasse a disciplina Práticas Integrativas II
, incluindo mais estudantes nessa proposta. Nessa disciplina, propus que fôssemos trabalhar em dois equipamentos da Prefeitura de Fortaleza destinados a jovens entre 16 e 29 anos, os Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte – CUCAS. Nesses espaços, desenvolvemos atividades usando estratégias de Redução de Danos¹.
Esse trabalho cresceu, e começamos a realizar atividades de Redução de Danos junto a profissionais do sexo, às proximidades do Cuca, localizado na Barra do Ceará e, ao mesmo tempo, fomos chamados por setores da saúde mental
para discutir políticas de saúde relacionadas ao uso compulsivo de drogas. Também supervisionei estágio em um Caps-ad durante o ano de 2016, aproximando-me desse equipamento público de saúde.
No primeiro semestre letivo de 2017, iniciei a preparação de um grupo de estudantes para trabalhar com a população de rua, com a proposta de implantar o que estamos chamando de Clínica Nômade
(CN), inspirados em um texto de Suely Rolnik (1997). Coincidentemente, fomos convidados a colaborar com o projeto Novos Caminhos
, formulado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), com apoio financeiro da Secretaria Nacional de Drogas (Senad), em parceria com a Prefeitura de Fortaleza. O projeto tem como objetivos:
Desenvolvimento de iniciativas Inter setoriais voltadas para a reinserção social e qualificação profissional de usuários de álcool, crack e outras drogas que vivem em situação de rua no centro da Cidade de Fortaleza, por meio, de atividades organizadas em quatro eixos: Eixo 01 – convívio social; Eixo 02 – qualificação profissional; Eixo 03 – Inclusão produtiva; Eixo 04 – Provisão Moradia Provisória. (FORTALEZA, 2016, p. 1)
A proposta para o Nuced, junto ao projeto Novos Caminhos
, era a de que trabalhássemos com algumas pessoas contempladas pelo projeto em ações de Redução de Danos e Acompanhamento Psicossocial
, instituindo o que geralmente é conhecido como Acompanhamento Terapêutico (AT) (BARRETO, 2016; CAMARGO, 1997; CARVALHO, 2004; PALOMBINI, 2004; REIS NETO, 1995).
Portanto, no Nuced passamos por três fases em um curto espaço de tempo (cerca de dois anos) sem deixar de lado nenhuma: a) grupo de estudos; b) atividades de RD; c) Clínica Nômade ou Atendimento Terapêutico. Isso nos colocou questões. Se antes nos preocupávamos com estudar e discutir sobre histórias do uso de drogas, políticas sobre drogas e redução de danos, tivemos de começar a nos enveredar, concomitantemente, ao que seria o cuidado à saúde de pessoas que fazem uso compulsivo de drogas, ampliando nossos estudos também para o que é conhecido como a clínica das toxicomanias
ou clínica das adicções
(GURFINKEL, 1995, 2011; MELMAN, 1992; NOGUEIRA FILHO, 1999; OLIEVENSTEIN, 1985; PIRLOT (2014); POULICHET, 2012; SANTIAGO, 2001; TURNA, 2012). Assim, fomos para a ponta do atendimento em saúde no que se refere ao consumo de drogas. Nesta pesquisa, não tratarei dessa ação em seus pormenores de atendimento, porque ainda está no seu início.
Ora, no campo da saúde, é premente o conceito de cuidado
atrelado a termos como práticas de cuidado
ou linhas de cuidado
, circulando entre os profissionais, em documentos oficiais do Ministério da Saúde (BRASIL, 2004a, 2009, 2012, 2013a, 2013b, 2015)² ou veiculado em conversas nos serviços públicos de saúde. Porém, o que pude perceber – seja participando em reuniões nos Caps-ad, em Reuniões no Projeto Novos Caminhos, em reuniões na Comissão Intersetorial de Saúde Mental (Cism) do Conselho Estadual de Saúde (Cesau) ou no Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas (Compod) – é que o que algumas pessoas chamam de cuidado
, referia-se a práticas moralistas. Por exemplo, escutei de uma senhora técnica da Secretaria de Saúde Estadual: precisamos cuidar das pessoas que estão na rua, retirando-as do mundo das drogas
. Também é comum se falar em cuidar de dependentes químicos e seus familiares
. Portanto cuidar
, sob essa perspectiva, tem como foco a droga, como se ela tivesse, por si só, o poder de fazer com que alguém se tornasse dependente
. Tal perspectiva, trata o grupo familiar como responsável – se não pela entrada
do sujeito no mundo das drogas
–, pelo menos pela sua recuperação
.
Diante dessa constatação, preocupei-me com os usos do conceito de cuidado
que iríamos adotar no Nuced em nossas ações. Nesse caminho, retomei estudos e pesquisa sobre o conceito, em especial os escritos foucaultianos. Portanto, foi desenvolvido um trabalho de pesquisa conceitual, cuja característica principal foi a de oferecer uma discussão da literatura relacionada ao conceito pesquisado (cuidado), situando-o em área específica do conhecimento (saúde), com o intuito de convalidá-lo, sustentando-o em ampla discussão dos principais aspectos que o tornam necessário a determinados temas