A Religião dos Livros - Alfarrabistas, Livrarias e Livreiros
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Sobre este e-book
Carlos Bobone
Carlos Maria Bobone tem 29 anos e é alfarrabista. Começou ainda adolescente a vender livros na feira da Rua Anchieta, trabalhou na Livraria Artes e Letras enquanto tirava o curso e, depois de se licenciar em Filosofia, foi trabalhar para a Livraria Bizantina, fundada pelo seu pai. Colabora também com o Observador, onde escreve, claro, sobre livros.
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A Religião dos Livros - Alfarrabistas, Livrarias e Livreiros - Carlos Bobone
O fabuloso mundo das livrarias
Se alguém se desse ao trabalho de repassar revistas e jornais à procura de notícias sobre livreiros, sairia decerto inspirado. O mundo das livrarias aparece-nos sempre como um espaço de excepção, habitado por excêntricos guardiões de preciosidades que o mundo esqueceu, numa nobre e romântica luta contra as regras da modernidade.
O fecho de livrarias, que os jornais noticiam com muito mais apetite do que a sua sobrevivência, contribui para o retrato. O livreiro já não é apenas um erudito de barbas brancas, herdeiro de incunábulos venezianos e depositário do pecúlio de Poggio Bracciolini; além de um esquipático conhecedor das minudências de antanho, o livreiro é um resistente. O público habituou-se a assistir ao capitular das livrarias como se testemunhasse a derrota da cultura antiga às mãos dos bárbaros. O tom elegíaco das notícias fala-nos das livrarias que «resistem» e da sobrevivência do negócio como de uma luta maior, impondo nos trabalhadores uma dignidade revolucionária difícil de superar. Pela actualização dos diários e semanários, o modesto lucro do livreiro personifica a luta do bem contra um mal rapaz e inevitável. As livrarias trabalham com uma lâmina sobre a cabeça, que mais cedo ou mais tarde fará dos seus donos e empregados mártires culturais.
No seu livro sobre Livrarias, Jorge Carrión evoca como modelo do livreiro a figura criada por Stefan Zweig, o Mendel dos livros, livreiro judeu a quem as circunstâncias da vida tiraram a livraria, e que ainda assim continua a vender os seus livros na mesa de um café. Este Mendel, de facto, conjuga todas as características espalhadas pela imaginação popular a respeito dos livreiros. Junta o lado iniciático, o uso dos livros como resistência, o papel de salvador da cultura contra as regras do seu tempo, e até a imagem dos livros como um bem precioso.
Curiosamente, este mesmo Mendel é referido num texto bastante desencantado de Paulo Rodrigues Ferreira, que expressa bem o contraste entre a figura idealizada do livreiro e o dia-a-dia dos verdadeiros vendedores. Paulo Rodrigues Ferreira fundou a Fyodor Books, que durante uns anos vendeu livros baratos a um público jovem e interessado por literatura. Foi, naturalmente, por amor aos livros e à imagem de um Mendel, que sábia e abnegadamente transmite a cultura a quem a quer receber, que a livraria foi fundada. É significativo que, pouco depois, uma pessoa que ama os livros e a literatura acabe a escrever um texto chamado Ser Livreiro Pode Ferir de Morte, em que está patente o choque com a boçalidade de alguns livreiros, para quem os livros são apenas um monte de papel e um pretexto para perpetrar as mais mesquinhas vigarices.
De facto, os jornais não nos preparam para o mundo dos feirantes e dos livros despejados com o recheio de casas abandonadas, para as peripécias das negociações com o sem-número de vagabundos que andam à cata de livros no lixo para os venderem nos alfarrabistas, ou para a fartura de, em vez de nos depararmos com preciosidades, nos depararmos constantemente com cópias malcuidadas de livros do Reader’s Digest.
Num dos textos de Livros e Cigarros, Orwell conta que a sua experiência como livreiro não só lhe mostrara o íman de loucos e solitários que eram as livrarias, como lhe dera a experiência de um verdadeiro embuchamento de livros. A constante exposição às lombadas funcionava como o cheiro a comida num restaurante, que mais cedo ou mais tarde acaba por enjoar os seus empregados. É, portanto, natural que os livreiros nada tenham de erudito e sublime, ou sequer uma fogosa paixão pela literatura.
Há livreiros famosos pelas suas proezas boémias — o empregado da Livraria Barateira tinha, a certa altura, o seu retrato pendurado na parede da Cervejaria Trindade, a reconhecer que as suas sete cervejas diárias ao almoço constituíam uma assinalável façanha — e outros pela sua capacidade negocial; no entanto, poucos se distinguem por uma metafísica paixão pelas letras.
Durante vários anos a profissão de livreiro pouco disse às letras oficiais. O mais próximo que se estava de uma cadeira académica que fosse era na famosa cadeirinha da Barateira, onde começou o seu labor o dono da Livraria Camões, João Lopes Holtremann. Consistia esta cadeirinha num assento preso no cimo da porta que dividia as duas portas da livraria, onde se sentavam uns rapazes pré-púberes para, do alto, identificarem potenciais ladrões de livros. Esta estada nas alturas era o que de mais etéreo se conseguia numa geração de livreiros que, por mais pergaminhos que tivesse na mão, não podia exactamente dizer que os tinha no currículo académico.
Cresci com um pai alfarrabista, passei numa livraria aquelas horas vagamente entretidas que os filhos passam nos trabalhos dos pais, pelo que os manuscritos de paleográfica leitura, os grandes fólios encadernados em pele ou em pergaminho e os jornais do século XIX sempre representaram para mim a banalidade do material de escritório. Só é excêntrico aquilo que é raro, pelo que, para mim, o modelo do alfarrabista ou do livreiro sempre foi o modelo da normalidade. Visto de dentro, nada há de excêntrico ou de bizarro num livreiro, é tudo natural. O Sr. Berkemeier, o livreiro alemão responsável pelo armazém que o Sr. Almarjão tinha na Travessa da Queimada, expressava este sentimento com humor. Depois de, num livro de viagens escrito por um francês, ser literariamente descrito como «uma figura saída dos livros de Pirandello», dizia que tinha de ir ler o Pirandello para ver com o que é que se parecia. A desilusão, segundo ele, foi grande: só encontrou malucos entre as páginas do