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Dois cigarros
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E-book140 páginas2 horas

Dois cigarros

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Sobre este e-book

"É fim de tarde. Você entra no carro sem dizer nada e pergunto: vamos? Você diz que sim com um gesto e me mostra o caminho. Depois de meia hora pergunto se você trouxe suas roupas e sua escova de dente. A escova, sim, me responde." Assim, sem uma história preexistente, um arquiteto solitário de quarenta e poucos anos e uma jovem misteriosa de grandes olhos verdes que nunca falava sobre o passado se encontram pela primeira vez para uma viagem sem destino. O acaso, que une e separa duas vidas, conduz os personagens do romance de estreia do jornalista Flavio Gomes numa jornada que passa pelo interior de Minas, pequenas cidades alemãs, São Paulo, Paris, Berlim, Amsterdã, Itacaré, Budapeste, Praga e Estrasburgo, sem que jamais um saiba o bastante do outro para imaginar um fim possível.
IdiomaPortuguês
EditoraGulliver
Data de lançamento9 de abr. de 2020
ISBN9786586421057

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    Dois cigarros - Flavio Gomes

    twitter.com/gullivereditora

    I live as I choose or I will not live at all.

    -- Dolores O’Riordand

    Ao amigo Carlos Tocchio,

    que partiu sem avisar – uma deselegância

    1

    Pego meu carro, pego a estrada, pego a entrada da sua cidade, pego a rua principal, sei onde você trabalha, acho que sei bastante de você, apenas buzino na porta. É fim de tarde. Você entra nele sem dizer nada e eu pergunto: vamos? Você diz que sim com um leve gesto de cabeça e me mostra o caminho. Por ali. Eu sigo, nós dois em silêncio. Depois de meia hora pergunto se você trouxe suas roupas e sua escova de dente. A escova, sim, me responde. Ficamos mais meia hora em silêncio, a estrada passando. Às vezes você me diz: à direita, à esquerda, entra aqui. Quando vejo, estamos cruzando a divisa de Minas e está anoitecendo. Tá cansado?, você quer saber. Não, só com fome. Entra ali. É uma cidade pequena, mas você parece conhecer. Direita, esquerda, em frente. Para aqui. É um restaurante pequeno que diz na placa cozinha italiana. Entramos e você pede. Os pratos e um vinho da casa. Comemos em silêncio. Para onde vamos?, finalmente pergunto. Apenas vamos, você diz. Voltamos ao carro, encosta ali, põe gasolina, você ordena. Não vamos dormir?, eu. Mais um pouco. E seguimos, agora no escuro, apenas as estrelas como companhia. É clichê dos piores dizer que as estrelas fazem companhia na estrada à noite. Mas era assim. Só as estrelas e a lua. De vez em quando você apaga os faróis – para alcançar o botão do farol, você precisa soltar o cinto e passar o braço até o outro lado do volante. O que é isso?, me irrito um pouco, e você: guia só com a luz da lua, é bonito. É bonito, mas me assusto e acendo o farol. Você, então, ri. Olha para a frente e ri o sorriso mais lindo que alguém pode sorrir. Eu sorrio também. Você não trouxe roupas?, pergunto de novo. Hoje não vai precisar, você responde.

    Aí a gente para num hotel numa cidade-sem-nome.

    ***

    Estaciono na transversal, uma ladeira, e deixo o carro engatado por segurança, as rodas viradas para a esquerda coladas no meio-fio – vai que. O hotel de esquina, paredes verdes e janelas brancas, se chama Central. Toda cidade mineira tem um Hotel Central. É tarde e não tem ninguém na rua de paralelepípedos e calçadas estreitas. Toco a campainha, uma luz fraca se acende lá dentro. O rapaz, um jovem de pele curtida no sol, deve ter trabalhado na lavoura antes de conseguir o emprego no Central, ou talvez ainda trabalhe e faça apenas um bico noturno, abre a janelinha no meio da porta e diz pois não, meio desconfiado, fazendo foco com os olhos de quem acabou de acordar e deixando no ar um leve hálito de cachaça. Você tem um quarto?, pergunto. A essa hora?, ele. Uai, só chegamos agora.

    O menino gosta do uai, abre a porta, nem era tão jovem assim, tinha um bigode ralo sobre os lábios finos, eu entro na frente. Nossa bagagem se resume a uma mochila pendurada no meu ombro esquerdo. O senhor tem mala no carro? Só trouxe a escova de dente, respondo, e você ri de novo, agora olhando para o chão e provavelmente me achando um tonto.

    O café é das seis às nove. Daqui a pouco, ele diz. Vocês são casados? Não, digo rápido, sim, fala você mais rápido ainda, em cima da minha resposta. Foi a que valeu, porque ele pediu desculpas e disse que só tinha quarto com duas camas de solteiro naquela noite, que o último com cama de casal estava com problema no chuveiro, amanhã vem o rapaz consertar, quer dizer, hoje, né, porque já é hoje. Não tem importância, eu digo, e antes que você resolva falar para ele que não tinha problema nenhum tomar banho gelado pego a chave, presa num enorme chaveiro de acrílico com o emblema do Central e o número do quarto: 12, é só subir a escada e virar à esquerda. A janela dá frente para a rua aí do lado, faz menos barulho. O senhor parou o carro ali? Parei. Tem problema não, amanhã é sábado e pode parar.

    Na escada, você vai primeiro, eu atrás. Ainda não tinha olhado direito para você. No carro, nossos olhares se cruzaram algumas vezes como que pedindo um ao outro: não precisamos falar nada agora, depois a gente conversa de tudo. No restaurante, comemos também em silêncio, evitando olhares mais demorados e trocando banalidades – tá gostoso?, quer queijo?, esse vinho é bem suave, eu prefiro um pouco mais seco, açúcar ou adoçante?

    Pequena, como eu – foi a primeira coisa que reparei. O andar, firme e decidido. Pernas bonitas e bronzeadas, como os ombros e o pescoço. Você tinha tomado sol em algum lugar por aqueles dias. A camisetinha verde meio folgada não fazia justiça à sua cintura. Uma mulher bonita. O cabelo estava preso num coque esquisito com uma piranha por causa do calor e notei algumas gotas de suor na nuca. E uma tatuagem em japonês. Esses carros são quentes, me desculpei, ainda que você não tivesse reclamado de nada. Sem se virar para trás, esticou o braço para que eu pegasse sua mão e, me puxando escada acima, falou: faz mal não, a gente toma um banho.

    O quarto era pequeno e asseado. As camas estreitas, de estrado de madeira clara e colchões de espuma, um criado-mudo entre elas e um guarda-roupa de duas portas encostado na parede, com uma mesinha e uma cadeira. Tudo novinho, até cheiro de tinta, com algum esforço, dava para sentir. Acho que o Central passou por uma reforma, pensei um pensamento sem sentido, mais um. Vivo fazendo isso. A porta do banheiro era estreita, daquelas tipo camarão. Você entrou, olhou, abriu os braços num gesto teatral, virou para mim e decidiu: vou tomar o banho mais delicioso da minha vida. E sorriu de novo.

    Cada sorriso me deixava bobo. Porque não era uma risada escancarada de uma boca cheia de dentes, na verdade era um quase-sorriso com a boca entreaberta, os dentes branquíssimos só fingindo que queriam aparecer, mas de olhos enormes. Não sei explicar direito como os olhos podem sorrir mais que a boca, mas era seu caso. Tem toalha aí, tem sabonete, xampu?, eu querendo ser prático e eficiente, dei dois passos em direção ao banheiro, passei de lado para não trombar com seus braços abertos, e só tinha toalha, vou lá embaixo buscar sabonete e xampu, falei, e você riu mais uma vez, e quando eu tentava desviar de novo de seus braços abertos você passou a mão no meu cabelo de um jeito que, naquele instante, tive a certeza de que jamais sentiria de novo tamanha ternura vinda de qualquer outra alma vivente neste mundo.

    Desci e perguntei se o hotel tinha sabonete e xampu, tem que comprar, moço, quanto é?, me dá um de cada, vieram um Palmolive e um Seda. Quando entrei no quarto, você já estava no chuveiro, cantando baixinho alguma coisa que não consegui identificar. Acho que alguma canção em francês. Consegui xampu e sabonete vou colocar aqui no chão, falei alto para ser ouvido, mas o banheiro era tão pequeno que você afastou a cortininha de plástico e esticou o braço molhado sem dizer nada e sem parar de cantar baixinho, e sem entrar no banheiro, pela porta, passei o xampu, primeiro, e o sabonete, depois, à sua mão. Vou descer para fumar, avisei, e você respondeu lá do chuveiro, não demora.

    Peguei o cigarro e o isqueiro na mochila e desci mais uma vez, precisando de mais alguma coisa, moço?, não, só vim fumar aqui embaixo. Saí para a rua e me sentei numa das cadeiras de plástico branco que o Central gentilmente oferecia aos hóspedes e passantes para tomar uma fresca no final da tarde. Fumei dois cigarros e dezessete minutos depois, porque todos sabem que fumar um cigarro em ritmo normal leva oito minutos, e foram dois com um intervalo de um minuto entre cada, voltei.

    A luz já estava apagada e você, deitada e coberta com um lençol. Nua, supus: o sutiã e a calcinha jogados na cadeira, a camiseta verde e o short jeans pendurados no encosto. A janela estava aberta e por ela entrava uma luz amarelada da lâmpada de sódio do poste da rua. Em silêncio, tirei o tênis, a camisa e me sentei na cama olhando para você, que estava deitada de lado, as costas voltadas para mim. A respiração era de quem estava morta de cansaço. Tínhamos viajado por mais de quatro horas num carro quente e barulhento, ainda que quando eu olhasse para você, a janela aberta, os cabelos voando – o coque com a piranha você só fez no restaurante –, os óculos, o batom vermelho, você parecia que estava no conversível de Thelma & Louise cruzando a América.

    Não sei quanto tempo fiquei assim, te olhando, até que também me senti cansado. Levantei devagar para a cama não estalar e te acordar, preocupação ridícula porque o barulho do chuveiro seria maior ainda, entrei no banheiro, fechei a porta camarão, peguei o Palmolive e o Seda que você tinha deixado na pia, liguei a água e tomei o banho mais delicioso da minha vida.

    Escovei os dentes, porque de fato tínhamos trazido nossas escovas e tubos de pasta de dente, cada um o seu, um Colgate e um Oral-B, me ligo nesses detalhes, me enrolei na toalha, também sem nenhuma muda de roupas, apaguei a luz, voltei ao quarto iluminado pela luz da rua que atravessava a janela, você continuava na mesma posição, contornei sua cama, me certifiquei de que você não me veria sem roupa, pendurei a toalha na maçaneta da porta e entrei rápido debaixo do meu lençol.

    Minha única preocupação, a partir dali, era arrumar um jeito de acordar antes de você, me vestir e sair correndo do quarto, para que nossos corpos nus não se vissem no brilho da manhã. Mas não deu tempo de bolar um plano que deixasse claro meu pudor. Antes disso, apaguei.

    ***

    Acordei assustado, de pau duro. Todo homem tem várias ereções durante o sono, li outro dia, quando pela primeira vez tive alguma curiosidade sobre o assunto. Achava que era uma máquina insaciável. Na verdade, todo mundo é assim. Se seu boy não é assim, mande ele procurar um urologista, dizia o texto de uma página para meninas adolescentes na internet. Seu boy. Bem, meu medo se confirmou. Você acordou primeiro. Oi, disse de pé ao lado da minha cama, com duas sacolas numa mão e um saquinho na outra. Me ergui rápido e coloquei o travesseiro sobre o lençol, que por sua vez cobria o pau duro, mas não disfarçava direito aquela coisa meio constrangedora diante de alguém que eu tinha visto pela primeira vez menos de doze horas atrás. Oi, respondi, ainda meio tonto de sono, o sol da manhã enchendo o quarto de luz e calor. Fico muito vulnerável quando acordo. Não enxergo direito, tenho sede, o gosto na boca é ruim, nunca encontro meus óculos, demoro um pouco para funcionar. Meu estado se parece com o do meu carro,

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