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A essencial arte de pensar e refletir
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A essencial arte de pensar e refletir
E-book542 páginas14 horas

A essencial arte de pensar e refletir

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Sobre este e-book

Neste ensaio filosófico o autor oferece uma importante contribuição à compreensão do modo como costumamos pensar. Para isso pesquisou o tema desde os primórdios da cultura Ocidental, objetivando conhecer como e por que o pensamento se tornou precioso e fundamental em nossas vidas, mas também motivo de angústia e dúvidas.

Afinal o que é o pensamento? Pensar é o mesmo que refletir? Para que serve a reflexão? O texto revela que o pensamento pode ser entendido como uma forma de arte, que pode ser aprendida e apreendida, para que possamos fazer escolhas inteligentes. Este livro trata essencialmente das diversas formas de pensar e da relação do pensamento com o desenvolvimento das capacidades humanas. Ou seja, trata dos caminhos que podem nos levar ao uso deliberado de nossas potencialidades, para que seja possível, no dizer do filósofo Sócrates, experimentarmos "a vida que vale a pena ser vivida".
IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de jan. de 2023
ISBN9786525267739
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    Pré-visualização do livro

    A essencial arte de pensar e refletir - José Diney Matos

    PRIMEIRA PARTE

    O PORQUÊ DESTE LIVRO

    Começo este ensaio fazendo a seguinte indagação: Para que serve a reflexão? A ideia deste livro surgiu de dúvidas que sempre agitaram a minha alma e que definitivamente tomaram conta de mim após assistir a uma palestra do pensador contemporâneo, o francês Edgard Morin, palestra esta que foi dirigida a uma plateia predominantemente constituída por jovens. Fiquei impressionado com a vitalidade e a lucidez deste homem de mais de noventa anos de idade que, apesar dos pesares, ainda acredita que as novas gerações possam construir um futuro mais digno para a humanidade e para o Planeta. Eu havia terminado de ler seu último livro sobre o tema pensamento complexo, e ainda estava digerindo o texto quando o vi falando em um programa da TV francesa. Morin me fez desengavetar minhas anotações e reabrir meu arquivo de texto para, enfim, retomar e concluir o projeto do meu terceiro livro, após dois anos sabáticos em minha vida pessoal. Vendo aquele senhorzinho careca, com pequenas mechas de cabelos brancos, falando com tanta vitalidade e entusiasmo, me dei conta de que precisava tomar coragem, sair da desmotivação e terminar o que havia começado dois anos atrás. Ao desligar a TV naquela noite, fiquei pensando em Morin e refletindo sobre as questões que sempre me afligiram desde a juventude. Em agosto de 2011 pude assisti-lo novamente, desta vez na Sala São Paulo, quando participou do Seminário Fronteiras do Pensamento, sempre lúcido e polêmico. Mais uma vez me senti provocado a continuar escrevendo sobre o tema do presente livro. Logo em seguida concluí o projeto. De certa forma devo a ele a motivação que me fez ir até o fim.

    Em meados de 2022, em meio à tragédia da pandemia que se abateu sobre todos nós, a angústia voltou a tomar conta de mim. Mas desta vez os motivos eram outros, pois fiquei realmente impactado com o cenário que a Covid 19 descortinou. No início da pandemia eu achava que a tormenta tinha um lado bom, pois acreditava que as pessoas finalmente fariam uma profunda reflexão sobre si mesmas diante da fragilidade trazida pela doença. Mas eu estava enganado. O que constatei desde então, foi a cristalização de como o ser humano é capaz de ser egoísta e irresponsável consigo mesmo e com os outros, mesmo diante de uma catástrofe de grandes proporções. Isso me levou a produzir uma revisão de conteúdo do meu livro, publicado em primeira edição em 2016, objetivando resgatar a tarefa de colocar um pouco mais de luz sobre a importância da reflexão em nossas vidas. Então, vamos à tarefa.

    Vamos começar refazendo a questão básica que serve de pano de fundo ao tema. Afinal, o que é o pensamento? Como podemos compreender melhor este ato que é tão espontâneo e essencial em nossas vidas? Se o ar que respiramos é fundamental para a nossa existência, o pensamento é uma espécie de dádiva natural (que só os seres humanos possuem) que nos permite compreender o mundo. Mas será que podemos melhorar nossos pensamentos, assim como podemos melhorar a forma como desejamos viver? Se a biologia revela que a energia da respiração (prana) serve para energizar nossas células, os pensamentos podem energizar a alma? Se por um lado somos seres pensantes, capazes de produzir conhecimento e sabedoria, por que somos tão limitados e muitas vezes ridículos? Afinal, o que é a reflexão? Foi a partir da tentativa de responder a essas questões que nasceu o projeto deste livro.

    No ano de 2003, marinheiro de primeira viagem, eu estava às voltas com a inevitável peregrinação junto às principais editoras do Rio de Janeiro e de São Paulo objetivando encontrar alguém disposto a apostar na publicação do meu primeiro livro (Artimanhas do Ego). Após nove meses de gestação intelectual, o meu primeiro filho havia nascido e eu precisava fazê-lo percorrer o mundo. Orgulhoso e feliz, com os originais debaixo do braço, lá fui eu todo empolgado em busca da sonhada publicação. Porém, não tinha a menor ideia do que me esperava. Não imaginava quão difícil seria a minha tarefa. Lembrei-me dos meus dezesseis anos de idade quando pela primeira vez segurei um livro de filosofia em minhas mãos, por obra e graça do meu professor de literatura. O título do livro era Antologia Filosófica, coletânea de textos produzida por diversos autores que versava sobre os pensadores da antiga Grécia. Fiquei fascinado quando me deparei com os Diálogos de Platão (347-328 a.C.) e com a Metafísica de Aristóteles (384-322 a.C.). Foi um momento decisivo, um verdadeiro rito de passagem, pois nunca mais pude parar de ler os grandes pensadores. Percebi naquele momento que para pensar melhor era preciso ler. Então, lembrei de uma frase que havia lido em minha infância, escrita na parede do prédio de uma antiga livraria no centro do Rio de Janeiro, que dizia: Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê. Compreendi o que isso significava quando travei contato com os primeiros textos de Platão. Aquela frase me obrigou a refletir sobre coisas sobre as quais jamais havia pensado antes. Desde então me tornei um leitor interessado em tudo que me permitisse refletir sobre a realidade que me cercava. Assim, me transformei em um ser pensante, com todas as implicações que isso traz, pois aprendi que refletir sobre o que pensamos dá muito trabalho e pode ser muito angustiante. Mas também é muito gratificante.

    Mas voltemos ao meu primeiro filho’. Depois de percorrer algumas editoras sem obter sucesso, deparei-me com o diretor de uma conhecida editora em São Paulo que afirmou ter gostado dos originais, mas que não sabia se deveria publicar o livro devido a uma dúvida que o deixava inseguro, qual seja a incerteza sobre a que público se destinava o assunto. Expliquei que se tratava de reflexões que tinham por objetivo despertar o interesse do leitor para o hábito de pensar, e que isso poderia ser alcançado por meio da leitura de textos essenciais dos grandes pensadores. Após os esclarecimentos necessários, ouvi deste editor a seguinte indagação: Mas quem afinal pensa nos dias de hoje? Daí surgiu uma interminável discussão sobre a utilidade do pensamento para o dia a dia das pessoas. Felizmente consegui convencê-lo sobre a pertinência do tema e o livro foi publicado meses depois.

    O projeto deu certo e o meu filho vendeu duas edições, certamente uma grande proeza, levando em conta as dificuldades de quem escreve o seu primeiro livro em um país em que poucos têm o hábito da leitura. Fiquei muito feliz, mas aprendi com aquele episódio que a minha tarefa estava apenas começando e que o caminho seria longo. Mas o episódio também despertou em mim uma grande vontade de continuar trabalhando no tema, já que todo escritor pretende que a sua obra seja lida, para ser criticada e/ou compreendida. O livro em questão abordava temas relacionados à condição humana, além de analisar o impacto do comportamento egocêntrico nos hábitos do homem contemporâneo. O livro acabou por despertar o interesse do leitor, o que me fez participar de palestras e debates em diversas cidades. Em cada lugar por onde andei pude perceber o interesse das pessoas pelo tema, já que todos nós sabemos o que o ego pode provocar em nossas vidas, tanto para o bem quanto para o mal. Os leitores se mostravam interessados nas nuances da condição humana e debatiam a questão com curiosidade e entusiasmo. Foi então que recordei a indagação do meu editor. Afinal, quem tem o hábito de pensar?

    Todos nós sabemos que a maioria das pessoas não costuma pensar criticamente, seja por preguiça ou falta de hábito. O imediatismo que caracteriza a vida nos dias de hoje nos leva a pensar sem refletir, o que me fez lembrar Sócrates, pensador grego que foi julgado e condenado à morte justamente por incitar as pessoas ao hábito da reflexão. O curioso de tudo isso é que a filosofia é uma práxis, ou seja, uma atividade, uma atitude. Mais do que uma teoria, a filosofia é uma prática que permite ao homem pensar de forma organizada. Será que passados mais de dois mil anos desde a ocorrência do lamentável episódio da condenação de Sócrates, o homem ainda prefere a opção pelo não-pensar? E o que é o não-pensar, senão o hábito de pensar superficialmente?

    Nos dias de hoje quase ninguém dispõe de tempo e paciência para ler. Se não há tempo para a leitura, não há pensamento reflexivo. Se não há reflexão, não há pensamento crítico. Se não há pensamento crítico, tendemos a agir mecanicamente. Esta parece ser a ciranda da vida moderna. Verdade trágica essa nossa tendência ao pensamento superficial e acrítico. Mas será que precisa ser sempre assim? Creio que não, pois ao assistir Edgard Morin falando aos jovens sobre o futuro e sobre a possibilidade de construção de uma nova humanidade, visando fazer da Terra uma nação comum a todos, concluí que nem tudo está perdido.

    Todos nós pensamos o tempo todo. Mas normalmente o fazemos de forma simplificada e mecânica. A maioria das pessoas vive o dia a dia sem refletir sobre suas crenças fundamentais. Assim, perguntas fundamentais ficam sem respostas, tais como: Qual o propósito da vida se a morte é inexorável? Deus existe? A felicidade é possível? Como acreditar na justiça se o mundo é tão injusto? Todos nós sabemos que para além da opção pelo pensamento superficial, existe um modo de estar atento a certo tipo de questões fundamentais. A isso se dá o nome de reflexão, a mais refinada forma de pensamento. Essa dicotomia faz parte da condição humana. Mas nem por isso devemos jogar a toalha e nos acomodarmos na indolência e no conformismo, pois na verdade não nos falta tempo para refletir, falta sim uma atitude diante da importância do pensamento reflexivo para uma vida mais rica em conhecimento e sabedoria. Se assim não fosse, Sócrates sucumbiria ao status quo e salvaria o seu pescoço, mas com isso decretaria a morte da filosofia.

    Se Sócrates (470-399 a.C.) pensasse apenas em salvar a si mesmo, aceitando a condição de parar de subverter os jovens, muito provavelmente Aristóteles não teria como construir livremente o primeiro grande sistema de pensamento de que se tem notícia. Se todos nós sempre cedêssemos à acomodação e à preguiça, os filósofos neoplatônicos da Idade Média não teriam tentado a aproximação entre fé e razão. Se o tempo fosse algo tão escasso em nossas vidas, Descartes não teria como criar um método de investigação capaz de servir de base a todas as ciências de sua época. E o filósofo contemporâneo Gadamer não teria como contestá-lo anos depois. Thomas Edson (1847-1931) tentou por quatorze vezes o experimento que o levou a criar a lâmpada elétrica. Se o pensamento reflexivo não fosse essencial, Immanuel Kant (1724-1804) não teria alertado para os limites da própria razão e teria desistido de construir sua filosofia. E Martin Heidegger (1889-1976) não teria levado a questão do ser a uma leitura inovadora. Certamente Friedrich Nietzsche (1844-1900) não teria como produzir uma filosofia que contestava a tudo e a todos. E a filosofia da linguagem simplesmente não existiria. Portanto, caro leitor, pensar refletidamente é isso, uma mistura de insistência, obstinação, metodologia, perseverança, construção e desconstrução. A refutação e a síntese. A aporia e o recomeço. É subir a montanha carregando pedras, como no mito de Sísifo. Um tipo de arte que se situa acima das dificuldades momentâneas e que nos incita a continuar buscando respostas sempre. Se não há tempo para pensar, então precisamos inventá-lo, até porque a ciência moderna já nos ensinou que na verdade o tempo é absolutamente relativo, pois o que realmente existe são momentos que são preenchidos com algo que priorizamos. Mais uma vez Edgard Morin tem razão. Agradeço o privilégio de ser seu contemporâneo, pois admiro sua inteligência e generosidade.

    A partir dessas constatações, mergulhei na leitura dos grandes pensadores buscando com isso encontrar respostas para a minha angústia intelectual. Percebi que foram muitos os que se dedicaram à tarefa de pensar reflexivamente. E tive grande identificação com essas pessoas. Além disso, percebi que apesar da diferença entre as ideias e os conceitos desses grandes pensadores, havia um ponto comum em todos eles, qual seja, o hábito da reflexão sistemática em busca do conhecimento. Concluí então que o hábito de pensar corretamente é uma arte que precisa ser aprendida e aperfeiçoada. E que não pensar criticamente é próprio de quem só se preocupa com o próprio umbigo (uma das artimanhas do ego), o que explica de onde vem a indiferença, a alienação, a acomodação, coisas que costumam caracterizar o comportamento do homem em suas relações com seus semelhantes.

    Meu primeiro editor não sabe, mas a ironia da sua indagação acabou por despertar em mim a fome pelo conhecimento da alma humana. Ao mesmo tempo em que suscitou meu encantamento com a arte de pensar. É disso que trata o presente ensaio. Ou seja, trata dos caminhos que devemos percorrer para desenvolver essa arte essencial. Nesse sentido, este livro pretende oferecer caminhos para que o leitor possa criar o seu próprio método de reflexão, visando praticar o pensamento crítico. Os comentários que faço ao longo do texto acerca da obra dos grandes pensadores servem de ponto de partida para esta tarefa. Portanto, não se trata de uma leitura de lazer, mas de uma leitura para o exercício da reflexão crítica. Assim, sugiro que este ensaio seja lido em doses homeopáticas. Sem pressa. Livre dos grilhões de ideias pré-concebidas.

    POR QUE PENSAR E REFLETIR

    Não é preciso que o leitor esteja familiarizado com a linguagem filosófica para aproveitar o conteúdo deste livro. Muito pelo contrário, o texto se destina particularmente àqueles que de certo modo precisam se familiarizar com esse tipo de leitura, mas nunca tiveram a oportunidade de fazê-lo. Portanto, este livro direciona-se a leitores comuns, pessoas alfabetizadas, inteligentes e sensíveis que buscam aperfeiçoar seu modo de pensar, sem tecnicismos ou exegese. Com que objetivo? Para conhecer como é a vida na essência, como ela é por dentro. Neste sentido a filosofia se assemelha à poesia, pois também pode ser encarada como uma forma de arte. O poeta tcheco Rainer Maria Rilke, defende que o objetivo do poeta não é explicar o mundo, mas vê-lo por dentro. Portanto, o poeta se assemelha a um cão que não deseja atravessar o mundo com o olhar, à maneira de um sábio, mas se instalar dentro do mundo como se aninha em sua poltrona. Rilke também costumava dizer que a poesia é a língua dos deuses. Como os deuses não falam, cabe à poesia falar por eles. A poeta contemporânea francesa Carol Ann-Duffy disse certa vez que a poesia é a música da condição humana. Em minha opinião, se isso é verdade, então a filosofia é a partitura que dá consistência a essa música e que permite transmitir a arte do compositor. Mas se o prezado leitor, como eu, não tem talento para a poesia ou para a música, resta-lhe, portanto, a filosofia, para que possa poetizar em forma de conceitos filosóficos, ao mesmo tempo em que ouve a música do seu pensamento.

    Minha tarefa neste ensaio pode ser resumida lembrando o esplêndido poema do século XVIII, The Rambler, do escritor e crítico literário inglês Samuel Johnson (1709-1784), diz ele: A tarefa de um autor é ensinar o que não é sabido, ou recomendar verdades conhecidas, tornando-as mais belas, seja para permitir que uma nova luz ilumine a mente, abrindo a perspectiva de novas cenas, ou para variar a aparência e a situação de objetos comuns, a fim de lhes conferir nova graça e atrativos mais marcantes, espalhar flores sobre regiões que o intelecto já percorreu, a fim de que ele seja tentado a retornar e rever coisas pelas quais passara às pressas ou de modo negligente. Este é um dos objetivos deste livro, promover releituras para espalhar flores pelo caminho que pode levar a uma compreensão mais abrangente acerca do mundo e do homem. O escritor modernista brasileiro, Oswald de Andrade (1890-1954), via a poesia como a alegria da ignorância que descobre. Oswald era um crítico feroz da mediocridade e da ignorância. Ele acreditava que os escritores, tanto quanto os filósofos, são trabalhadores desamparados que têm como tarefa primordial saber o que querem, onde estão, para onde vão e como devem agir. Ou seja, escrever ou filosofar é antes de tudo uma Praxis, um ato de coragem e engajamento na luta contra a mediocridade que domina o mundo. Foi o que pensei ao assistir à fala de Edgard Morin na TV.

    Um grande pensador contemporâneo, o francês Paul Ricoeur (1913-2005), revela em seus livros a tarefa sutil da filosofia que, segundo ele, é buscar nos trabalhos dos grandes filósofos aquilo que o nosso pensamento isoladamente não é capaz de alcançar. O meu texto pretende induzir o leitor a pensar com e sobre os grandes pensadores, para que possa pensar para além deles. O leitor quer um exemplo?

    Há duzentos anos a civilização ocidental está alicerçada na crença do casamento perfeito entre crescimento econômico, justiça social e democracia política. Mas a questão ecológica, a explosão demográfica e as crises fiscais e monetárias, colocaram em xeque essa crença. Como será o futuro com a escassez dos recursos naturais? O que fazer para não inviabilizar a vida no Planeta? Sabemos que mesmo que haja constante crescimento econômico, o benefício desse crescimento não poderá ser usufruído pela maioria das populações, pois não haverá espaço para todos consumirem os bens produzidos para as classes mais abastadas. Quem defende que isso é possível está iludindo os desavisados. A candidata às eleições presidenciais na França, Marine Le Pen, dirigindo-se a um grupo de refugiados tunisianos, disse em alto e bom som: Vocês não cabem na França!. Discussões ideológicas à parte, o que ela quis dizer é que não há nem mesmo como garantir o futuro para os próprios franceses, quanto mais garantir oportunidades para imigrantes sem nenhuma qualificação profissional. A taxa de desemprego entre os jovens na zona do Euro já supera os 20%. Na Itália, Espanha e Portugal o problema não é menor. Trata-se de uma questão que não aflige somente os franceses, mas a Europa como um todo. Portanto, estamos diante de um fenômeno abrangente e complexo. Não podemos ficar alheios a essas questões.

    No Brasil vivemos momentos difíceis. Ao que tudo indica as consequências da pandemia ajudou a exacerbar nossas contradições. A sociedade brasileira está dividida entre aqueles que querem a preservação da democracia e os que conspiram contra ela. Estamos diante de um quadro que requer muita reflexão em busca de respostas que ajudem a evitar a cisão da sociedade, o que pode trazer consequências funestas para todos nós. São questões polêmicas que precisam ser pensadas e repensadas por aqueles que não se contentam em aceitar a realidade sem um mínimo de reflexão. Não pensar sobre essas questões é colocar em risco a sobrevivência da própria democracia, o que pode produzir dissabores e arrependimentos. Proponho que o leitor pense sobre essas questões, pois este é um bom exemplo de como a filosofia pode ser aplicada ao cotidiano. Não se trata de tomar partido disso ou daquilo, mas de praticar o pensamento reflexivo para não ser ludibriado pelos mercadores de ilusões. Não estou falando de fazer política, seja de direita ou de esquerda, mas de pensar criticamente em busca de soluções construtivas, conscientes e responsáveis.

    Voltemos ao ponto de partida deste ensaio. Afinal, qual o caminho a percorrer diante de tantas estradas que levam à arte de pensar? Todos nós temos o hábito de pensar, mesmo que superficialmente. Mas será que sabemos mesmo usar o pensamento para produzir ideias, mudanças e transformações? Em outras palavras, será que sabemos pensar criticamente? Quais os grandes pensadores da humanidade e quais de suas obras refletem a incansável busca humana pelo conhecimento? Conhecimento é sinônimo de sabedoria? Como chegar ao saber genuíno? E quanto ao critério de verdade? Qual a sua importância para a produção de um conhecimento legítimo? Como distinguir o verdadeiro do falso? O que é a mente? Temos almas não-físicas? A arte de pensar é um privilégio para poucos ou pode ser aprendida por todos aqueles que buscam compreender a vida? A resposta para essas e outras perguntas pode ser encontrada percorrendo a obra dos grandes pensadores da humanidade, notadamente aqueles que se dedicaram à tarefa de decifrar outra arte igualmente fascinante, a arte de pensar refletidamente.

    Este ensaio busca ajudar o leitor a compreender como e porque esses grandes pensadores se debruçaram sobre essa tarefa e qual o propósito de todo esse conhecimento. Ao final e ao cabo, espero poder contribuir para que o leitor possa fazer a sua própria leitura crítica.

    A famosa frase proferida pelo filósofo racionalista René Descartes, sintetiza o propósito deste ensaio: Penso, logo existo. Somente o ser humano é capaz de aprender a pensar e usar este aprendizado a seu favor. Mas a frase poderia ser invertida para que pudéssemos ver a questão sob outro prisma filosófico. Assim, diríamos: Existo, logo penso. No Discurso do Método, René Descartes propõe a prática da arte de pensar, afirmando: Eu sempre tive um imenso desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso, para ver claro nas minhas ações e caminhar com segurança nesta vida. Para Descartes (1596-1650), a filosofia é o estudo da sabedoria, conhecimento perfeito de todas as coisas que os humanos podem alcançar para o uso da vida, a conservação da saúde e a invenção das técnicas e das artes. Ainda segundo ele, o pensamento é uma atividade do espírito. O filósofo Platão também tinha uma crença semelhante, pois dizia que é preciso ir além das aparências para chegar à essência das coisas. Sócrates dizia que o pensamento reflexivo leva o homem ao bem viver.

    Conforme afirmou um dos mais importantes filósofos modernos, Maurice Marleau-Ponty (1908-1961), a verdadeira filosofia é aquela que ajuda o homem a reaprender o mundo. Como fazer isso? Por meio do hábito de pensar e refletir. Epicuro afirmava que não se deve fingir que se filosofa, mas sim filosofar para valer. Como é possível isso? Pensando, questionando e refletindo sobre o pensado, todos os dias, sempre. É por isso que a filosofia é tão desprezada, pois dá muito trabalho e requer atenção e resiliência.

    Ao mesmo tempo em que usamos a razão para refletir, também experimentamos a sensação. O pensador brasileiro Leonardo Boff afirma que a estrutura central do ser humano não é a razão e sim o afeto, corroborando as teses do filósofo britânico David Hume (1711-1776) sobre a humanização da filosofia. Algumas correntes filosóficas defendem que não há nada que a razão possa produzir, que antes não passe pelas sensações (John Locke). Outras, mais atuais, afirmam ser a linguagem a grande responsável pelo processo do pensamento (Wittgenstein e seguidores). Alguns afirmam que são os fenômenos do mundo que produzem a forma como pensamos e agimos (Husserl e seguidores). Nietzsche dizia que é preciso não dissociar o pensamento de uma prática, pois não existe distinção entre pensar, ser e agir. Ao contrário do que pensava Kant, Nietzsche acreditava que a vida não possui valores morais intrínsecos, pois são os homens que dão significado à vida que, para ele, é semelhante a uma criação artística livre, sem predeterminações. Ou seja, a vida é um imenso campo de infinitas possibilidades, onde autor e obra estão em um permanente processo de autocriação. O filósofo francês Henri Bergson (1859-‘941) defende que o ato de pensar é antes de tudo o ato de intuir. Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, não há nenhuma contradição entre as ideias desses pensadores, são visões distintas que se complementam. É justamente a reflexão sobre essas diferenças que nos ajuda a pensar criticamente.

    Tudo isso nos faz voltar a Descartes, para lembrar que em alguns momentos a filosofia produz ideias de chumbo, e em outros, possui asas. Donde se conclui que a filosofia abrange quase todas as áreas do conhecimento humano, pois é capaz de despertar a sensibilidade dos homens para questões fundamentais acerca de sua existência. Com muita observação, abstração e até mesmo imaginação, porém sem perder a fé na razão e nos sentidos. Mas para isso é preciso ter um espírito livre, como dizia Nietzsche. O filósofo moderno francês, Michel Foucault (1929-1984), acreditava que para filosofar é preciso utilizar uma caixa de ferramentas. Dizia ele: O trabalho de escavação sobre nossos pés caracteriza o pensamento contemporâneo, desde Nietzsche, e neste sentido posso me declarar filósofo. Portanto, temos que ter consciência de que a filosofia, tanto quanto a vida, é um combate constante, uma construção, um exercício pleno de continuar subindo o morro rumo ao pico (o conhecimento), mesmo sabendo que podemos escorregar, cair e ter que começar tudo de novo, conforme revela a alegoria mitológica de Sísifo.

    Como filosofar é pensar criticamente, esta disciplina se torna essencial para aqueles que priorizam o saber, mas que não abrem mão de compreender os fatores que afetam o cotidiano das pessoas. Infelizmente meu primeiro editor talvez nunca tivesse refletido sobre tudo isso. Não por alienação ou negligência, mas por absoluta falta de conhecimento. O problema é que essa é a característica da maioria das pessoas no mundo utilitarista e consumista em que vivemos. Pensar é perder tempo. Como tempo é dinheiro, para que pensar?

    O sociólogo contemporâneo Zygmunt Bauman (1925-2017) aborda magistralmente essa questão em seus livros, alertando para o mecanicismo da vida moderna e a indiferença do homem em relação à reflexão e ao pensamento crítico. Bauman chama atenção para o fato de que no mundo de hoje tudo que é sólido desmancha no ar. Ou seja, as relações humanas e o comportamento são líquidos, pois estão submetidos a um permanentemente estado de mudança e transformação. Os críticos de Bauman costumam atribuir um certo grau de pessimismo aos seus livros, porque revela a impossibilidade do homem contemporâneo conseguir superar suas contradições. Creio que não se trata propriamente de uma visão pessimista, mas de uma abordagem pautada pela reflexão crítica que leva a uma tomada de posição em relação à nossa atitude passiva diante da complexidade dos fatos sociais nos dias de hoje. Creio que a dificuldade que normalmente temos ao lidarmos com este fenômeno contemporâneo, se deve ao fato de que costumamos utilizar análises simplórias para tentar compreender fenômenos complexos. Se os acontecimentos se interpõem e se entrelaçam, devemos utilizar o pensamento complexo na tentativa de compreendê-los. Mas não é isso que costumamos fazer. O mundo não é mais uma aldeia global como afirmava Marshall McLuhan (1911-1980) em O Meio e a Mensagem, mas uma cadeia de aldeias que se influenciam e interagem.

    Outro pensador contemporâneo importante, que dedicou suas reflexões ao tema é o historiador inglês Tony Judt (1948-2010), que resume suas preocupações na seguinte afirmação: Somos chamados hoje para um combate: Precisamos resgatar o pensamento crítico e abandonar o comodismo intelectual. A filósofa norte-americana Martha Nussbaum, da Universidade de Princeton, alerta para essa verdadeira catástrofe da modernidade quando diz: Não precisamos de máquinas treinadas tecnicamente (os computadores de última geração), precisamos de pessoas que sejam capazes de pensar claramente, analisar um problema e imaginar algo novo. Ou seja, precisamos de pessoas com espírito livre que estejam treinadas para exercer o pensamento complexo visando apontar novos caminhos para velhos dilemas humanos.

    O filósofo alemão Friedrich Nietzsche resumiu a tarefa primordial da filosofia propondo o seguinte: Se o teu destino é pensar, então venera este destino como se venera um deus, e sacrifica-lhe o que de melhor tiveres, o que mais amares. Vemos, portanto, que para ele o ato de pensar é o ato de fé, desde que a filosofia esteja a serviço de releituras que contribuam para o entendimento do mundo, mesmo que para isso precisemos nos sacrificar. Nietzsche intuiu que não se pode desprezar mais de dois mil anos de reflexão filosófica, porque isso seria um crime deliberado contra a inteligência humana. Mas também alertou para o ranço da crença nos ídolos da cultura ocidental.

    Hegel defende algo semelhante quando propõe em sua filosofia sistemática que levemos em conta o conjunto de todo o saber humano acumulado ao longo de séculos de reflexão filosófica. Seu objetivo é buscar a verdade por meio de uma síntese sobre os múltiplos aspectos do saber humano. Mas por outro lado, acreditava que ao interpretar a história da filosofia, estava gerando uma forma de não fazer filosofia. O que ele queria dizer com isso? Hegel via a filosofia com uma prática dialética capaz de levar o homem a se libertar da opressão da ignorância voluntária. O filósofo Hans-Georg Gadamer (1900-2002) entendeu essa afirmação, mas alertou para o fato de que ao interpretarmos algo estamos também interpretando a própria interpretação, e que toda investigação no campo da história da filosofia é ela mesma filosofia.

    O filósofo contemporâneo brasileiro Sérgio Augusto Sardi, resumiu de forma brilhante o que Nietzsche e Hegel (1770-1831) queriam dizer. Para ele, pensar é um ato radical de amor à vida, quando então as crises se tornam momentos de passagem e o desejo de viver intensamente cruza com o desejo de pensar profundamente... é em vista de uma realidade concreta que se torna urgente pensar e, além disso, pensar sobre como pensamos ou sobre como ainda necessitamos aprender a pensar. Creio que o comentário de Augusto Sardi por si só resume o que entendo por pensamento complexo, a única forma que temos de entender a miríade de caminhos os quais o homem deve percorrer se quiser conhecer o verdadeiro saber e compreender a realidade que o cerca. Isso dá muito trabalho? Dá trabalho sim, mas é extremamente gratificante. Quando eu praticava yoga, certo dia eu estava deprimido e triste quando cheguei à aula e meu professor indagou: Porque você está assim hoje?. Respondi que estava muito desiludido com as pessoas e com os acontecimentos a minha volta. Ele me respondeu da seguinte maneira: Parabéns! Se você está desiludido é porque perdeu a crença nas coisas ilusórias. Agora você está no caminho da sabedoria. Nunca mais esqueci essa reflexão.

    O filósofo francês André Compte-Sponville, no livro O que é a filosofia, nos diz: Filosofar é pensar de preferência a conhecer, questionar de preferência a explicar... não é um saber a mais, mas uma reflexão sobre os saberes disponíveis, que visa menos à ciência do que à sabedoria, menos a aumentar nosso conhecimento do que a pensá-lo ou a ultrapassá-lo, interrogando-se sobre o conjunto do real, sobre o ser ou sobre o absoluto (metafísica), sobre o que nós podemos saber (teoria do conhecimento), sobre o que devemos fazer (moral), sobre o que podemos viver (ética, política, arte, estética) ou esperar (fé). Vemos aqui que estamos diante de outra forma de compreender a importância uso do pensamento complexo em filosofia.

    É nesse contexto que se insere o presente ensaio, que deve ser visto como uma breve interpretação acerca da evolução do pensamento humano, objetivando estabelecer pontes entre as diversas formas de pensar. Para lembrar que apesar de sermos seres finitos e limitados por nossa própria condição humana, somos detentores de amplas possibilidades de conhecimento, pois temos o privilégio de aprender a pensar corretamente. Para reconhecer que por meio de nossa singularidade podemos alcançar o universal, a totalidade, para que possamos conhecer a vida e o mundo por dentro.

    O filósofo francês contemporâneo Baudrillard, chega a afirmar que não existe o universal, apenas a singularidade. E que é a partir dela que podemos compreender os fenômenos que nos rodeiam. Mas, conforme nos alertou Kant, devemos estar atentos aos limites do próprio ato de pensar (limites da razão). Portanto, devemos estar atentos às diferenças existentes entre o conhecimento puro (proveniente da intuição pura) e aquele resultante da experiência empírica, advindo do resultado dos dados externos a nós (os fenômenos) que são captados pela sensibilidade. Assim, tudo que é puro A Priori não passa pelas sensações. Quando observamos uma cadeira, por exemplo, nossa sensibilidade e entendimento captam o fenômeno que está diante de nós (a cadeira). Portanto, temos uma representação construída pelo sujeito da ação de observar a cadeira. Por esse processo concluímos a existência daquela cadeira tal como a observamos. Mas quando imaginamos a ideia de cadeira, o que ocorre é uma intuição que pode ou não ter relação com o objeto imaginado. Para Kant, existem duas faculdades produtoras de conhecimento, a sensibilidade e o entendimento. A sensibilidade se compõe de um conjunto de sensações submetidas às intuições de tempo e espaço. Por sua vez, o entendimento atua por meio de categorias, utilizando-se da nossa capacidade de imaginação e da intuição pura do tempo. Desse modo, o entendimento atua sobre as sensações por meio do uso das categorias. O resultado desse processo mental é a representação que temos dos fenômenos observados. Tudo que sentimos existe no tempo, não no espaço. Existe internamente, não externamente. O entendimento por si mesmo não é capaz de alcançar a realidade, alcança apenas a sensibilidade que produz a representação. Portanto, para Kant, o sujeito somente se conhece enquanto fenômeno. Ou seja, não há conhecimento de uma essência em si mesma, como queria Platão, pois tudo é fenômeno sujeito às sensações. Daí o alerta que ele faz quanto às reais possibilidades da razão enquanto produtora de conhecimento. Afinal, até onde podemos confiar na razão?

    Para Kant, à sensibilidade cabe receber as representações oriundas da realidade e transformá-las em intuição. Ao entendimento cabe conhecer o objeto por meio dessas representações. O conhecimento se dá por meio da intuição e dos conceitos, que se complementam. Nas palavras de Kant, pensamentos sem conteúdos são vazios, intuições sem conceitos são cegos. Podemos, portanto, pensar sobre qualquer coisa, materiais ou não, a isso Kant denomina ideias transcendentais da razão. O conceito de transcendental em Kant se refere aos princípios a priori, (aquilo que não advém da experiência concreta, a nossa estrutura subjetiva) tanto da sensibilidade quanto do entendimento, pelos quais nos é dada a capacidade de conhecer. Mas isso por si só não constitui conhecimento, pois este deve levar em conta a experiência. Ou seja, o conhecimento somente ocorre quando há o encontro entre a experiência exterior e o dado racional interior. Mas todo o nosso conhecimento começa com a experiência. É por isso que ele chegou a afirmar que a Metafísica é uma ilusão, pois não está sujeita à experiência empírica. Portanto, para Kant a Metafísica pensa, mas não conhece, ou seja, ela estende o conhecimento para além da experiência sem, contudo, se configurar como conhecimento. Sobre isso afirmou: Todo conhecimento das coisas provenientes apenas do entendimento puro ou da razão pura não passa de ilusão; só na experiência há verdade. Não concordo com isso pelo simples fato de que estamos diante de um reducionismo intelectual. E todo reducionismo é no mínimo parcial e limitado. Não se trata de negar a importância da experiência, mas de lembrar que nem tudo pode ser alcançado por meio dela. Um exemplo? A intuição acerca de uma possível ocorrência que foge ao escrutínio da razão. Ou a sensação de que algo fora do nosso controle possa acontecer em determinada circunstância. Ou seja, não há experiência possível quando estamos diante do imponderável, do inusitado, do improvável. Tudo isso parece muito complicado? Não é bem assim.

    Tanto quanto Parmênides (510-445 a.C.) havia feito séculos antes, Kant colocou o homem no centro do estudo da filosofia. Mas ao contrário do primeiro, Kant alertou para os limites da capacidade humana de conhecer. O sociólogo francês Edgar Morin, em sua obra O Paradigma Perdido: a Natureza Humana, pergunta: O que é o homem? E responde: Sabemos todos que somos animais da classe dos mamíferos, da ordem dos primatas, da família dos hominídeos, do gênero homo, da espécie sapiens ... um ser de uma afetividade intensa e instável, que sorri, chora, um ser ansioso e angustiado, um ser ébrio, extasiado, violento, amante, invadido pelo imaginário, um ser que sabe que existe a morte e que não pode acreditar nela, um ser que secreta o mito e a magia, um ser possuído pelos espíritos e pelos deuses, um ser que se alimenta de ilusões e quimeras, um ser subjetivo cujas relações com o mundo objetivo são sempre incertas, um ser submetido ao erro, um ser úbrico que produz desordem ... somos obrigados a ver que o Homo Sapiens é também Homo Demens". Mesmo após esta constatação, Morin ainda acredita nas possibilidades humanas, pois é o único ser que tem a capacidade de pensar reflexivamente.

    Terrível constatação? Eu acrescentaria que somos seres quase sempre ridículos, pois somos frágeis e limitados por nossa própria condição humana, mas também somos extremamente arrogantes e presunçosos. Mas, por outro lado, somos inteligentes e sensíveis, o que nos transforma em seres extremamente paradoxais. É por isso que o nosso Planeta corre o risco de entrar em colapso, devido ao egoísmo e arrogância ancestrais, em detrimento de nossa inteligência. Essa é uma prova de que a racionalidade às vezes é usada de forma equivocada. Kant tinha razão. E era isso que Sócrates queria dizer ao afirmar: Só sei que nada sei. Mas apesar de toda a nossa limitação, ainda assim nos resta o pensamento crítico, esse maravilhoso dom que somente os seres humanos possuem e que nos permite continuar buscando compreender o porquê das coisas. Edgard Morin não é um pensador pessimista, muito pelo contrário. Apesar de ter mais de noventa anos de idade, está mais lúcido e combativo do que nunca. Contrariando a tese do escritor e filósofo húngaro Arthur Koestler (1905-1983) , de que o homem não tem solução possível por ser dotado de um cérebro que carrega um lado racional-lógico capaz de mudar o planeta por meio da tecnologia, e outro lado incapaz de dominar os instintos individuais destrutivos, Morin incita os jovens a olharem para o futuro com confiança, pois ainda tem esperança em uma Nova Via para o ser humano, para que possamos conviver em uma civilização planetária marcada pela solidariedade e a inteligência criadora. Ingenuidade?

    Além de Edgard Morin, outros pensadores também se dedicaram a tentar responder a uma questão fundamental. Afinal, o que é o homem? O escritor e poeta português Fernando Pessoa (1888-1935), no livro Reflexões sobre o homem, nos diz: O homem é um animal irracional, exatamente como os outros. A única diferença é que os outros são animais irracionais simples, o homem é um animal irracional complexo. É esta a conclusão que nos leva à Psicologia Científica, no seu estado atual de desenvolvimento. O inconsciente é que dirige e impera, no homem e no animal. A consciência, a razão, o raciocínio, são meros espelhos. O homem tem apenas um espelho mais polido que os animais que lhe são inferiores. Sendo assim, toda a vida social procede de irracionalismos, sendo absolutamente impossível (exceto no cérebro dos loucos e dos idiotas) a ideia de uma sociedade racionalmente organizada, ou justiceiramente organizada. A única coisa superior que o homem pode conseguir é um disfarce do instinto, ou seja, o domínio do instinto por meio de um instinto reputado superior. Esse instinto é o instinto estético. Toda a verdadeira política e toda a verdadeira vida social superior é uma simples questão de senso estético e bom gosto. A humanidade, ou qualquer Nação, divide-se em três classes sociais verdadeiras: os criadores de arte; os apreciadores de arte; e a plebe. As épocas maiores da humanidade são aquelas em que sobressaem os criadores de arte. Mas não se sabe como se realizam essas épocas porque ninguém sabe como se produzem homens de gênio. A história da humanidade é algo, no fundo, inteiramente fútil, não se percebe para que há; e só se percebe que tem que haver. A plebe só pode compreender a civilização material. Julgar que quer ter automóvel e ser feliz é o sinal distintivo do plebeu. O homem não sabe mais que os outros animais; sabe menos. Eles sabem o que precisam saber. Nós não sabemos. Ufa!!

    Corroborando tudo o que Fernando Pessoa disse, porém com um enfoque mais político, o filósofo francês Herbert Marcuse (1898-1979), no livro Algumas implicações sociais da tecnologia, afirma: "O homem renuncia à sua liberdade sob os ditames da própria razão. O aparato ao qual o indivíduo deve ajustar-se e adaptar-se é tão irracional que o protesto e a libertação individual parecem, além de inúteis, absolutamente

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