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Experiência Estética Da Arte No Cinema Pós-Moderno
Experiência Estética Da Arte No Cinema Pós-Moderno
Experiência Estética Da Arte No Cinema Pós-Moderno
E-book700 páginas9 horas

Experiência Estética Da Arte No Cinema Pós-Moderno

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Sobre este e-book

O cinema, na passagem da modernidade para a pós-modernidade, fica no interlúdio entre arte e estética, patrimônio contemporâneo da Indústria Cultural que, querendo ou não, precisa apostar hoje mais no ontológico do que no existencial. A cena moderna do crime foram os Cahiers du Cinéma, colocando na arena Truffaut e Godard, patenteando a paixão pelo cinema diante de uma estética tecnológica, cujo único álibi na pós-modernidade é a subjetivação. Entre o amor absoluto e relativo pelo écran como portal do infinito, origem e destino da humanidade entram no jogo cabalístico do pós-humano e da pós-verdade anunciada em 2001. De lá para cá, o discurso errático do neoliberalismo condiciona a experiência estética numa espécie de oráculo condicional.
Esta coletânea convida a interpretar num horizonte de perspectivas estéticas parasitárias, de fagocitação, polarização, corrupção, negação e banalização, para reivindicar histórias sem fim feitas de frames, ligadas ao ethos musical e às interrupções insensíveis do real. Provocações do disruptivo na nova ordem audiovisual obrigam a considerar reinvenções artísticas, afeições narrativas aquém do mundo do espetáculo e além das fronteiras do preconceito. Salvaguardando os princípios da ética e da estética no cinema arte.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento23 de jan. de 2023
ISBN9786525039428
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    Experiência Estética Da Arte No Cinema Pós-Moderno - Juan Droguett

    Introdução

    O fio de Ariadne no novelo crítico da modernidade

    Juan Droguett

    Este breve ensaio introdutório à coletânea Experiência estética da arte no cinema pós-moderno tem como objetivo anunciar o capítulo de abertura. No intuito de compreender como a arte se transformou em uma referência explícita da cinematografia. Uma metalinguagem que permite examinar, analisar e interpretar a arte da imagem em movimento.

    Para isto, se faz necessário explicar a estrutura prevista para sua realização, seus desdobramentos e as prefigurações nos resultados finais. Considera-se que a arte no cinema corresponde a um olhar especular e refratário. De um dispositivo de representação imaginária no qual um diretor de cinema com sua câmera pensa como essa imagem em movimento pode traduzir e transformar uma pintura, escultura ou uma arquitetura estática em uma experiência estética de caráter cinematográfico.

    Igualmente, trata-se da história pela busca de metáforas visuais que selem o processo de criação ou da posta em cena ficcional de obras artísticas. Trata-se do resultado de pesquisa que traça diferentes linhas criativas do cinema sobre a arte com especial atenção às ideias decisivas de tradução das artes visuais, identificando experiências do poético, retórico e ensaístico, pontos de inflexão acerca do cinema-ensaio ou experimental sobre a arte.

    Nesse sentido, o capítulo inicial do Organizador serviu de parâmetro para que os autores estabelecessem um Estado da Arte sobre o paradigma: a Arte no Cinema, destacando questões essenciais ao momento crítico da passagem da modernidade à pós-modernidade. Contudo, a característica fundamental que define esse período histórico-artístico no qual se centra a origem: o Racconto, desenvolvimento e destino da melíflua relação dos meios artísticos ocorre durante o período das chamadas vanguardas artísticas.

    Cabe um esclarecimento imprescindível: as influências mútuas, apontadas nesta compilação entre o cinema e as artes plásticas, podem responder a fatores contemplados conscientemente pelos artistas, sendo nestes casos, produto de um enorme potencial visual, expressivo e plástico da arte cinematográfica.

    Deste modo, o ensaio divide-se em três partes fundamentais: na primeira estabelece-se a trajetória histórica na qual o cinema colhe referenciais artísticos no tratamento dos temas que sustentam sua origem moderna; na segunda procura-se entender, do ponto de vista do pensamento, a crise da modernidade na passagem à pós-modernidade; deixando para o final a discussão acerca dos resultados que situam o cinema pós-moderno no eixo da posta em cena na atualidade.

    Sendo assim, o fio de Ariadne cede lugar ao novelo labiríntico da pós-modernidade na qual tem lugar a crítica da razão sensível e a inclinação à dispersão, multiplicidade e fragmentação. Sensível à diferença, pluralidade, morte do sujeito e do autor; à intertextualidade e exaltação da subjetividade.

    O fio de Ariadne ‒ Épica conquista do cinema-arte

    Um enunciado revolucionário marcou a história germinal do cinema e da arte. De um lado, a invenção moderna que vincula a imagem-movimento ao tempo ancestral do mito na tentativa de conquistar um sonho, desejo imaginário de projeção que transcende os limites do puramente humano. O encantamento veio da encenação teatral diante da tela-Espelho: distanciamento e proximidade da câmera; intrusão e direito narrativo do autor; morte e sobrevivência do sujeito espectador. Este último, efeito do mito original, impulsiona o corpo-aparelhagem do cinema no rito cinematográfico consentido sua posterior desenvoltura social até os dias de hoje.

    Entre as novas reedições desses mitos e ritos, da ciência e da tecnologia contemporâneas, a arte cinematográfica situa-se no âmbito da Estética. A estética do cinema envolve diversos campos de interesse. Junto à epistemologia, ontologia, metafísica, lógica e ética, seu lugar natural encontra-se na Teoria Crítica do Pensamento. No entanto, a natureza mesma do seu objeto de estudo, a linguagem audiovisual, e os efeitos de sentido provocados sobre o espectador fazem desse campo de estudos algo propício para a fluidez e a interação comunicativa.

    De modo alternativo e, por sua vez, também moderno, a estética do cinema tem sido entendida como conteúdo reflexivo do pensamento que se expressa cinematograficamente por meio de uma filosofia implícita dos diretores, na análise de sequências, na semiótica do cinema, na retórica do cinema, na narratologia cinematográfica, nas teorias do cinema, nas teorias da adaptação, nos estudos do som no cinema, no cine-fotografia, nas teorias da montagem, nas teorias da posta em cena, na teoria dos gêneros ou na dimensão estética através da forma cinematográfica.

    Portanto, uma estética do cinema abrange uma reflexão histórica a respeito da natureza do cinema e sobre a experiência sensível do espectador. Essa reflexão encontra-se explícita ou implicitamente nos filmes de alguns diretores e pesquisadores, é o caso dos autores desta coletânea.

    Cabe salientar que o método de análise se converte em um elemento fundamental deste trabalho de crítica, passando necessariamente pelo crivo artístico da linguagem interpretativa, e ultrapassando questões relativas à análise instrumental. Neste sentido, a estética converte-se em uma experiência pessoal sobre a arte cinematográfica que passa pela formação e reconhecimento do crítico no campo da produção de pesquisador, analista e intérprete das ciências humanas e sociais.

    Por esta razão, assinalam-se a seguir as principais tradições de pesquisa sobre estética no cinema, produzidas nos últimos anos no âmbito acadêmico que servirão para retomar a metáfora do fio e situar os três momentos deste ensaio.

    Antes de passar ao esquema ilustrativo das pesquisas acadêmicas, vale fazer uma advertência: na sequência das coletâneas publicadas até agora tem-se considerado a experiência estética do cinema, um modo geral de imersão no conteúdo dos filmes, particularmente revelador do objeto de estudo e da metodologia subjacente a eles, permitindo o exercício indutivo, dedutivo e experimental, que pode ser observado tanto na problematização quanto na hipótese formulada pelos autores nas suas propostas de pesquisa, estudo e análise.

    Sendo assim, o objeto de estudo pode ser formulado a partir do questionamento do filme e fazê-lo extensivo à estética cinematográfica, uma vez comprovada a hipótese.

    (*). No quadro acima fica em destaque o propósito desta coletânea. Considera o cinema como arte e o analisa do ponto de vista estético, estabelecendo uma série de categorias a partir das próprias revelações do objeto de estudo.

    Retomando o fio da tradição moderna do cinema-arte, devem-se também considerar os modelos matriciais do cinema: a literatura milenar, o teatro grego e a fotografia como registro real no celuloide ou a declinação do dispositivo da câmera escura. Tais modelos envolvem o processo de criação artística e os efeitos que o cinema é capaz de produzir, enquanto representação audiovisual da realidade.

    Desta forma, o cinema se oferece à modernidade um sistema de representação capaz de mediar junto à pintura, poesia, música, escultura, arquitetura, dança e ao teatro, a hegemonia e universalidade das Belas Artes. Neste terreno da pesquisa e investigação estética existem duas vertentes: o estudo derivado das limitações do cinema e outra derivada de suas capacidades atreladas à técnica envolvida nesse processo.

    Um dos estudos mais conhecidos dessa primeira vertente é Film als kunts O cinema como arte, de Rudolf Arnheim, escrito em 1904, quando o cinema ainda era mudo¹. Para Arnheim (2012) são justamente as limitações para reproduzir a realidade percebida o que faz do cinema uma forma de arte, isto é, a proporção dos objetos, a percepção do espaço, o peso do olhar, a manipulação do tempo e do espaço por meio da montagem; quer dizer, uma realidade estética possui certa autonomia diante de um referente que sempre é algo construído convencionalmente.

    Nessa linha, uma versão mais sofisticada desse pensamento cinematográfico encontra-se nas obras de Barry Salt Film style and technology: History and analysis de 1983 e Moving into pictures: More on film history, style and analysis de 2006. Este historiador de filmes de origem australiana tem estudado a evolução da técnica que faz possível o cinema; essa evolução é uma história daquilo que abrange as possibilidades expressivas da arte cinematográfica.

    Uma outra linha de pesquisa consiste em estudar as capacidades específicas do cinema. Alexander Sesonske (2003) examina junto a cientistas engenheiros as possibilidades geradas pela existência dos efeitos especiais, também chamados CGI: Computer Generated Images². Recentemente, David Bordwell (2013), considerado um dos principais teóricos e historiadores de cinema dos Estados Unidos, tem abordado diversos aspectos da análise e compreensão da narrativa fílmica. Sob o título de estilística fílmica explora a percepção crítica do estilo cinematográfico na sua evolução no decorrer do século XX. Considera três momentos-chave: a versão clássica ou padrão da história do cinema; a versão crítica de André Bazin e a versão moderna e estruturalista de Noël Burch³.

    Esse professor da Universidade de Wisconsin e sua mulher Kristin Thompson (2006) analisam a natureza da linguagem cinematográfica desde uma perspectiva neoformalista, método analítico extraído do formalismo russo, enfatizando características estruturais da comunicação audiovisual⁴. Em ambos os casos, a pergunta central da experiência estética do cinema é pelas condições históricas, técnicas, formais e estruturais que permitem um estudo diacrônico ‒ algo relativo à compreensão de um fenômeno factual na sua evolução no tempo ‒ dos elementos estéticos da arte.

    Outra linha de pesquisa, que desde o nascimento do cinema causa debate, é sua relação com a realidade causal. Essa discussão gerou duas grandes tendências nas Teorias do Cinema: a tradição realista e a tradição formalista. Para estes últimos teóricos, a imagem é uma realidade em si mesma, até certo ponto independente da realidade que se percebe e experimenta no mundo real. Principal postura dos teóricos europeus das décadas de 1920 a 1950, como o psicólogo alemão da Gestalt, o já mencionado Rudolf Arnheim; o filósofo húngaro Béla Bálázs e os diretores russos da montagem e narratologia, herdeiros do formalismo russo tanto no cinema quanto na literatura, cujo precursor e referente é Serguei Eisenstein.

    A postura complementar a essa vertente é a dos teóricos chamados realistas, para quem a imagem é um registro fiel da realidade. Essa tradição foi desenvolvida brilhantemente por Siegfried Kracauer na Alemanha e por André Bazin na França. O princípio é que a realidade se redime graças aos recursos técnicos do registro audiovisual, tematizados pela visão do diretor e a profundidade de campo. Exemplos claros são o cinema de Jean Renoir e Orson Welles, convertidos em um projeto teórico de longo alcance que segue sendo forte influência até os dias de hoje.

    Cabe sublinhar a abundante e variada herança artística vista nos filmes dos intrépidos cineastas alemães. O cinema levado a cabo na República de Weimar, ao qual se lhe outorga o qualificativo de expressionista, evidenciou uma maior tradição plástica e iconográfica proveniente tanto da arte de vanguarda quanto das tradições do passado, sobretudo da pintura do século XIX. No entanto, a vanguarda cinematográfica russa e o cinema surrealista francês também se mostram permeáveis à dita influência. Neste sentido, resulta interessante a revisão feita por Eisenstein da iconografia religiosa tradicional no Encouraçado de Potemkin. De igual modo, chama a atenção o fato de que o cinema surrealista não só se nutre de imagens plásticas procedentes do próprio repertório do movimento, mas que também o faça da arte tradicional que tanto abominavam seus membros.

    Um outro ponto relevante do cinema moderno está relacionado com o cinema de autor. Em 1951 André Bazin fundou a revista Cahiers du Cinéma em Paris, e em 1957 ele mesmo publicou o célebre artigo La politique des auteurs. Pedra angular de uma combinação feita mais tarde com textos de outros colaboradores da revista – François Truffaut, Éric Rohmer ‒ autor de um importante estudo sobre Hitchcock ‒ e Jean-Luc Godard, entre outros. Todos eles defendiam a importância de diretores, como Robert Bresson, John Ford e Orson Welles. Postura que teve muita ressonância nos Estados Unidos no trabalho do crítico Andrew Sarris⁵.

    Hoje em dia, após as críticas pós-estruturalistas, a noção de autor elaborada por Roland Barthes, Jacques Derrida, Michel Foucault, entre outros, ainda resulta inevitável se referir ao papel indiscutível do diretor cinematográfico no processo de criação. Isto, segundo Katherine Tomson-Jones (2008), se deve a três motivos: por conta de um argumento ontológico, pois um diretor é responsável em primeira e última instância pelas características estéticas de um filme; por conta de um argumento interpretativo, no qual o autor propõe uma visão unitária que integra o trabalho de todos os que intervêm na criação do filme; e por conta de um argumento avaliativo, que supõe a existência de um autor como referência útil para interpretar o filme em sua total abrangência.

    Convém neste ponto lembrar que dessa discussão sobre autoria, na década de 1950, os críticos franceses pareciam defender simultaneamente dois tipos diferentes de filmes norte-americanos. Essas tendências estavam representadas, por um lado, pelo cinema de Howard Hawks, caracterizado pela ação, pelas regras de gênero do cinema clássico e uma aparente neutralidade narrativa, e, por outro, pelo cinema de Alfred Hitchcock, caracterizado por brincar com as estratégias do suspense narrativo, a preocupação por produzir um estilo próprio, pela continuidade estilística e formal na passagem de um filme para outro⁶.

    No entanto, alguns desses críticos se definiam a si mesmos como um híbrido de ambos e a favor do cinema norte-americano de autor, radicalmente distinto do cinema francês das décadas anteriores.

    Contudo, deixando de lado o embate teórico do cinema e retomando o fio condutor, o elemento mais notório da influência do cinema nas artes é o Movimento. Impõe-se como a mais importante reflexão no âmbito da estética cinematográfica. Apesar de não aparecer na modernidade nenhum procedimento inovador em relação à sua representação nas artes, após a invenção do cinema, observa-se um notável aumento do número de obras que aspiram a isso ‒ fundamentalmente no âmbito futurista, mas também por meio de certas derivações do cubismo e de outras vanguardas ‒ a partir de tal acontecimento.

    Deste modo, não se pode falar de uma influência direta do cinema nas artes no que se refere à qualidade, mas sim na quantidade. É inquestionável a proliferação de esculturas e pinturas que aspiravam representar esse movimento, ainda que fosse por métodos tradicionais. Depois que o cinema o consegue de forma plena, graças a sua própria essência mecânica, e, claro, e graças à fascinação pelo dinamismo que imperou nas últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX, nas quais se passou a considerar algo próprio do fenômeno cinematográfico. Neste mesmo sentido, o curioso efeito da luz direcionada ao qual se tem recorrido com fluidez ao longo da História do Cinema; o traço deixa-se ver em uma obra tão carismática como a Guernica de Picasso.

    O mesmo aconteceu com a cor, destacando-se no começo o uso do branco e preto em filmes, e não só em desenhos e rascunhos preparatórios, como havia ocorrido na pintura tradicional. O emprego das cores que banhavam por completo os quadros traz o caso do azul, especialmente frequente e significativo. É emblemático o exemplo desta virada do cinema na trilogia das cores consagrada por Krzysztof Kieślowski: a liberdade é azul; a igualdade é branca; e a fraternidade é vermelha.

    Da mesma forma, outros aspectos ligados à luz e à cor: sombras e transparências, também se revelaram devedoras do cinema em determinados pressupostos ligados aos efeitos especiais; o das sombras que agem como personagens independentes e ameaçadores; assim como, certas transparências que parecem ser devedoras das sobreimpressões fílmicas. Enquadramentos e angulações procedentes da linguagem cinematográfica deixaram também um traço indelével na pintura.

    Certamente, houve insignes precursores nesse terreno, Degas, por exemplo, mas também o fato de que durante os primeiros decênios do século XX proliferaram de forma chamativa quadros nos quais os corpos de seus protagonistas ficavam taxativamente cortados nas suas bordas, assim como outros que exibiam inclinações surpreendentes. Nestes casos, a possível influência da fotografia precisava ser igualmente completada com uma reflexão sobre a mecanização do mundo.

    Obras protagonizadas por fragmentos corporais ‒ olhos, bocas, dedos ‒ ou por rostos representados em tamanho nunca visto antes na grande tela, converte-os em familiares para o espectador da época fisgado pela via imaginária dos sonhos. Algo tão essencialmente cinematográfico como a montagem também passava com surpreendente naturalidade ao âmbito das artes plásticas. Collages cubistas e fotomontagens, tanto dadaístas quanto construtivistas, além de certas pinturas surrealistas de Max Ernst, fizeram eco da própria essência da montagem: cortar e colar.

    Neste sentido, essa sorte de montagem interna que reinava nos filmes, como nos do mágico Georges Méliès, parece haver influenciado notavelmente em tais experiências. Em última instância, e também em relação à montagem como fonte de inspiração, ainda que desta vez unido a outros fatores, artistas, como Picasso, Dali e o próprio Ernst, deixaram testemunho da importante dívida que mantiveram com a linguagem cinematográfica neste ponto.

    Referências cinematográficas mais explícitas, por vezes anedóticas, que povoaram obras plásticas das vanguardas modernas são a presença ou citação de personalidades do cinema, sobretudo atrizes e atores de Hollywood, ou personagens de ficção impulsionados ao imaginário coletivo pela sétima arte.

    O traço moderno das vanguardas tem deixado um traço iconográfico indiscutível, principalmente surrealista. Deste modo, resulta especialmente chamativo o caso do cinema fantástico pós-moderno, tanto o de ficção científica quanto o do gênero de terror, no qual o surrealismo plástico revela-se incontestável e fonte generosa de visualidade.

    Quando se fixa a atenção nas artes plásticas das últimas décadas, observa-se que as homenagens ao cinema das velhas vanguardas em forma de cita ou de presença se colocam ao mesmo nível das tipologias visuais. E, em ambos os casos, o cinema expressionista alemão se impõe de forma categórica sobre o resto das vanguardas cinematográficas à hora de fascinar artistas contemporâneos.

    Antes de entrar naquilo que define a arte cinematográfica pós-moderna, não se pode dizer, a modo de conclusão desta primeira parte, que o cinema haja revolucionado a pintura, ou a arte de um modo geral, mas sim que tem influenciado significativamente nela, desde o preciso momento do seu alumbramento.

    Justamente, as velhas vanguardas artísticas demonstraram uma permeabilidade a tais influências, comparáveis às que houve na década de sessenta ‒ exclusivamente no nível iconográfico e de citações metalinguísticas ‒ como a Pop-Art. De modo que podemos afirmar que a relação Cinema-Arte se enquadra no período das vanguardas históricas modernas e tem sido um dos fenômenos mais intensos, frutíferos e reveladores da arte contemporânea.

    Para entender a essência da crítica-cultural contida em Diferença e repetição de Gilles Deleuze (2018), Michel Foucault articulou um modelo de análise inspirado na antiguidade mitológica, uma interpretação aberta e catastrófica sobre o projeto de modernidade sem deixar incólume a motivação artística⁷.

    Ariadne, a princesa cretense, à espera do ateniense Teseu, que cansado e fadigado regressava do labirinto, corta o novelo salvador que indicava a saída. Enforca-se e abandona a seu destino o filho do rei Egeu que havia derrotado o Minotauro. O anterior leva a Ariadne ‒ afirma Foucault ‒ a um escarpado despenhadeiro, às profundezas, à perdição, ao caos, ao nada; perde-se no abismo, no decorrer do tempo vácuo, na execução reiterada de atos sempre idênticos, sem sentido. Ela morre irrevogavelmente uma e outra vez; Teseu cai na repetição infinita do seu caminho sem origem, sem meta, de uma frágil e destruidora autoconfiança. O laço de sobrevivência está rompido, de forma deliberada e violenta.

    Como alegoria, é essa imagem a que prova o novo pensamento pós-moderno. Igualando uma encenação teatral e a nova percepção ou perspectiva estética. Entendida como performance ‒ ação, arte e participação. Neste sentido, o corpus dos capítulos a seguir explora a ruptura do fio de Ariadne entre a modernidade e a pós-modernidade, um marco de referência para vislumbrar traços do cinema pós-moderno.

    Na perspectiva editorial da coleção Cinegrafias, Juan Droguett abre a coletânea traçando um estado da arte da interface cinema e arte no seu viés produtivo, teórico e metodológico. Considerando, o efeito artístico da representação audiovisual dentro da chamada era da complexidade, na qual o sujeito-espectador se debate entre o conhecimento, a tecnologia e a corrente artística pós-moderna.

    Nesta perspectiva, o corpus do texto apresenta os seguintes ensaios:

    Roberto de Oliveira propõe um olhar de reconhecimento do cinema moderno distinguindo as artes do espaço e do tempo em filmes relacionados à arquitetura, escultura, música, fotografia e teatro, recriando desta forma o caráter sublime do cinema-arte na tentativa de compreender uma certa liberdade do cinema contemporâneo.

    Lucia Santaella nos situa no intermezzo entre a arte e a estética para entender o cinema como arte a partir da incorporação do entretenimento e da Indústria Cultural, confrontando assim a estética artística e midiática para nos apresentar sua versão sobre a estética tecnológica da cinematografia pós-moderna.

    Giselle Gubernikoff remete-nos à arte da montagem, valendo-se das vanguardas artísticas e falando do pioneirismo de Griffith, e de outros que incursionaram na linguagem cinematográfica, da Escola Soviética e da especificidade da montagem artística; do cinema ontológico de André Bazin e das origens no surrealismo do cinema pós-moderno.

    Leda Tenório da Motta nos instiga revelando a intimidade da correspondência entre Truffaut e Godard para falar de um crime, o da arte literária na voz dos fundadores dos Cahiers du Cinéma e da virada estética da Nouvelle Vague, atribuindo à adaptação do romance literário na posta em cena, o caráter de álibi aos diretores politicamente corretos.

    Juan Droguett retoma o clássico de Stanley Kubrick 2001, uma odisseia no espaço para decifrar na chave da crítica cabalística os pormenores dessa saga artística com mais de cinquenta anos de existência diegética que ainda provoca aos interessados na estética visual, sonora e narrativa a recriar as origens e destino da humanidade.

    Aguinaldo Pettinati nos convida a descer às profundezas de O Poço, um filme complexo acerca de um futuro distópico, mas não muito distante da realidade vivenciada em tempos de crise; no eixo do interesse sociológico o discurso errático do neoliberalismo condiciona a estética de uma plataforma pós-humana.

    Francisco Barbuto dá razões do porquê abdicar do estruturalismo quando se trata de abordar uma estética parasitária, mostrando-nos que a fenomenologia no filme Parasita se revela como um caminho para decifrar a estrutura orgânica do espaço poético e de uma estrutura econômica, política e social ausente.

    Lucilla da Silveira Leite ilustra a partir de Com amor van Gogh o pós-impressionismo do pintor holandês, sinalizando a única forma de se conectar emocionalmente com ele pelo viés da arte; sua história feita de frames esteticamente alcança momentos de beleza graças à emblemática figura da arte moderna redescoberta na pós-modernidade.

    Juan Droguett explora o conceito estético de fagocitar a realidade na experiência de produção ambivalente da autoficção em Dor e Glória de Pedro Almodóvar; por meio da intertextualidade presente no enredo, fruto das transcrições literárias, icônicas e dramáticas que propõe uma estética da fagocitação no cinema pós-moderno.

    Beatriz Ramsthaler em parceria com Juan Droguett nos tecem a trama da dramaturgia nas origens do cinema brasileiro, atribuindo a esse gênero um componente de emoção popular no contexto do fenômeno de massas e da cultura das mídias, problematizando dessa forma na égide das políticas públicas a negação da arte.

    Fábio Diogo traz uma distopia do cinema brasileiro para desentranhar dela as raízes antropológicas da violência no protagonismo coletivo de Bacurau, construindo assim uma estética que passa pelo interesse colonizador do estrangeiro e da não aceitação ideológica dos gêneros que corrompem a verdadeira identidade do povo brasileiro.

    Caio de Carvalho semiotiza na perspectiva greimasiana os pressupostos da originalidade da arte na fusão do audiovisual, no percurso narrativo de seus afazeres estéticos; do plano vívido, das imperfeições do cotidiano e do banal doméstico, até alcançar o ethos musical nas flutuações do sensível e do inteligível no cinema.

    Marcelo Matos perambula por Roma de Alfonso Cuarón para nos oferecer uma versão poética sobre seu romance familiar nostálgico, da cor que vai se perdendo em intensidade, mas não do coração nem do olhar translucido de uma mulher tranquila mesmo quando o real a assombra e a castiga na sua condição de mulher.

    Francisco Etruri nos desbrava antecedentes do gênero do faroeste, popularizado pelo dualismo apresentado na acepção moral do protagonismo e pelo advento da modernidade no processo civilizatório e progressista de um território sem lei, que tem encontrado na pós-modernidade novas reinvenções artísticas.

    Vitor Hugo Ferreira vai aos bastidores de Birman, obra-prima de Alejandro González Iñárritu que nos deixa em evidência o drama de um ator consumido pelos vícios do cinema e do teatro, representando uma estética da condição humana; muito aquém do mundo do espetáculo e muito além da vida.

    Tania Andrade Moraes e Silva nos faz imergir em 1917 e percorrer as trincheiras de um plano sequência único, de uma guerra sem precedentes na qual contrastam momentos da experiência estética de paz e, outros, que nos levam ao horror visceral da guerra, fruto dos efeitos vertiginosos do audiovisuais pós-modernos.

    Carolina Kallas nos sugere uma crônica alegórica para a interpretação do filme Mãe de Darren Aronofsky, baseada na intertextualidade ancestral, consentida pelo próprio diretor em uma fruição de cenas, obrigando o espectador a inflexionar o correlato narrativo bíblico no eixo do tempo passado, presente e futuro simultaneamente.

    Ana Maria Zampieri resgata a humanidade de Freddy Mercury em Bohemian Rhapsody dos constrangimentos do biopic para mostrar como sua ambivalência sexual ecoa na experiência do gozo estético provocada pela música, demonstrando com isso a abertura às novas formas de amor na contemporaneidade.

    Rafael Tosi nos convida a desfrutar do entretenimento com Jogador Nº1 de Steven Spielberg, entrelaçando a transgeneracionalidade por meio de uma experiência de imersão ontológica, sensorial e simulada que leva o espectador a se colocar diante da iminência de um final ecológico cataclismático.

    Paulo e Eduardo Giglioli embalam em Era uma vez em Holywood para recriar de modo popular a conturbada década dos anos de 1960, com um piscar de olhos irônico e sarcástico ao mais puro estilo Tarantino, revelam-se os bastidores da uma produção cinematográfica decadente, diante do novo protagonismo.

    Juliano Ferreira Gonçalves recorta do filme Coringa de Todd Phillips, o arquétipo do palhaço que ri, interpretado por Joaquim Phoenix, para traçar uma trajetória dessa figura legendária nas transposições oriundas da literatura e do teatro advindas ao cinema.

    Elisangela Miras intimida a conhecer A casa que Jack construiu do provocativo Lars von Trier, a versão mais grotesca do mito associado ao serial killer criado pelo cinema norte-americano, um jogo perverso cujo final épico se consome no inferno da Divina Comédia.

    Oferecemos a seguir uma série de capítulos sobre a invenção que nasceu moderna e que logo se fez contemporânea: o cinema pós-moderno. Enfatizando o âmbito artístico desta a Sétima das Belas Artes. Hoje, grande crisol da consciência coletiva.

    O cinema pós-moderno do qual trata esta coletânea é a reação lógica contra o projeto de modernidade, da Ilustração. Contra a visão ingênua de que a razão era o fundamento único que podia gerar felicidade e progresso humano. Isso, considerava a supremacia da ciência para dar à humanidade uma organização racional, apostando na ciência e na tecnologia, pensando que com elas teríamos prosperidade, tranquilidade e abundância. A pós-modernidade é em primeiro lugar uma reação estética. Orienta-se para o abstrato, simbólico, novo e efêmero. E, nela, surgem duas vertentes: uma mais conservadora que busca um retorno ao passado; a outra, anarquista, dissolvente, destrutiva, real.

    Fica o convite a percorrer os distintos marcos que definem o cinema pós-moderno na égide da repetição e da diferença, sem esquecer do fio condutor de Ariadne que, nas Considerações Finais ou resultados, garante o destino aberto de uma História sem fim.

    Referências

    ADORNO, Theodor e HOKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

    ARNHEIM, Rudolf. Cinema como arte. As técnicas da linguagem audiovisual. Niterói/RJ: Muiraquitã, 2012.

    BAZIN, André. «De la politique des auteurs». In : Chaiers du cinéma, nº 70, abr. 1957.

    BORDWELL, David. Sobre a história do estilo cinematográfico. Campinas/SP: Editora da UNICAMP, 2013.

    BORDWELL, David and THOMPSON, Kristin. Film Art: An introduction. New York: McGraw-Hill, 2006.

    BURCH, Noël. La lucarne de l’infini. Paris: Edition Nathan, 1991.

    DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. São Paulo: Paz & Terra, 2018.

    FOUCAULT, Michel. Outros espaços. In: Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.

    SALT, Barry. Film style and technology: History and Analysis. London: Starword, 1983.

    SALT, Barry. Moving into pictures: More on film history, style, and Analysis. London: Starword, 2006.

    SESONSKE, Alexander. The Criterion Collection. Harvard Film Studies. Author Spotlight about Renoir, 31/12/2003. Disponível em:< https://www.criterion.com/current/author/53-alexander-sesonske>. Acesso em 24/06/2021.

    THOMSON-JONES, Katherine. Aesthetics and film (Bloomsbury Aesthetics) Paperback. Oberlin/Ohio: Continuum, 2008.

    WHITE, Hayden. Meta-História. A imaginação histórica do século XIX. São Paulo: EDUSP, 2008.


    ¹ Arnheim afirma na introdução desse livro, de inícios de mil novecentos, que entende o cinema como uma forma cultural pura, e não como um simples espetáculo. Esta tese provocativa, ainda numa primeira época do cinema, fala das virtudes do cinema como arte, fruto das próprias limitações do meio: a ausência do som, da cor e a falta de profundidade tridimensional, convertidas pelo cinema mudo em uma nova e distinta expressão artística, capaz de produzir uma ilusão imperfeita da realidade. Porque se trata de uma imagem em duas dimensões que, além do mais, altera a percepção com enquadramentos, movimentos de câmera e montagem. Consequentemente, a introdução de certos meios mecânicos em um segundo momento, o autor alemão da Gestalt, analisa as normas estéticas que regulamentam a combinação de diferentes elementos, como palavras, imagem e som, produzindo um maior realismo, mas também a perda de valor artístico.

    ² Alexander Sesonske é um cientista nuclear que captura tanto o espírito quanto a habilidade de seu amigo Jean Renoir com erudição meticulosa, análise penetrante com uma sensibilidade rara e um estilo de escrita simples, atingindo uma eloquência visual, inovando a literatura do cinema. Ele desenha uma década de amizade com o cineasta francês, incluindo numerosas citações inéditas que iluminam os fatos de sua vida trabalho e a natureza de sua arte.

    ³ Noël Burch (1991) tem uma obra: La lucarne de l’infini ou A claraboia do infinito que já no título enuncia a experiência estética do autor do chamado cinema primitivo em um confronto explícito aos lugares comuns ao redor da genealogia da linguagem cinematográfica. Capaz de integrar neste caso a vitalidade da análise textual à imprescindível inscrição desses textos no contraditório fluxo da história, sobretudo nessa passagem da modernidade à pós-modernidade do cinema.

    ⁴ Kristin Thompson é uma teórica e autora de cinema estadunidense, cujos interesses de pesquisa incluem a análise formal de filmes, a história dos estilos de cinema e a televisão de qualidade, gênero semelhante ao cinema arte.

    ⁵ Sarris é um crítico de cinema estadunidense, o principal defensor da Teoria política de autores. A autoria é um sistema de valor em relação à ética que reflete o grau de importância de uma ação humana. Neste sentido, é o artista que controla todos os aspectos ligados à produção criativa e ao trabalho colaborativo em equipe; equivale ao criador de uma obra literária. A política de autores teve origem na crítica cinematográfica francesa nos finais da década de 1940. Defendida por André Bazin e Alexandre Astruc, o conceito serviu em princípio para distinguir cineastas da Nouvelle Vague dos realizadores, meros executivos de Hollywood.

    ⁶ Howard Hawks foi um diretor pouco conhecido de cinema clássico estadunidense, produtor e roteirista do período clássico de Hollywood. Sua versatilidade o levou a explorar diferentes gêneros: comédia, drama, filmes de gansters, ficção científica, noir, guerra e faroestes. Uma figura emblemática e criativa de destaque internacional. Com uma vasta produção filmográfica, um dos seus destaques é Scarface de 1932, referência para diretores como Scorsese, Altman, Godard, Carpenter e Tarantino.

    ⁷ O trabalho original de Foucault (2001) Der Ariadnefaden ist gerissen ‒ o fio de Ariadne tem-se rompido. In: Aiesthesis. Wahrnehmung heute oder Perspektiven eineranderen Äesthetik. Na base deste subtítulo em alemão o texto do filósofo francês cobra importância para nós: traduzido, seria algo assim: Percepção hoje ou Perspectivas de uma Nova Estética". Os organizadores dessa coletânea foram Karlheinzm Barck; Peter Gente; Heidi Paris; Stefan Richter, todos eles da Universidade de Leipzing. Para todos os efeitos, usaremos a versão em português que relata o controverso mito citado pelo autor.

    Racconto, desenvolvimento e destino

    da experiência da Arte no Cinema

    Juan Droguett

    André Bazin sintetizou pela primeira vez a revolução do cinema sobre a arte na descoberta da supressão do plano. É com essa abolição que este perde seus limites e adquire as propriedades espaciais cinematográficas, a câmera então pode se movimentar livremente dentro dele, expandi-lo, revelá-lo e dialogar na mesma linguagem. Essa primeira revolução começou com o curta-metragem Racconto da un afresco de 1938, do pioneiro italiano Luciano Emmer, o seu amigo Enrico Gras e a esposa deste último, Tatiana Garuding (Bazin, 2018, p. 231)⁸. A partir de sua estreia em festivais internacionais, o filme ensaiava uma operação de dramatização dos afrescos de Giotto na Cappella degli Scrovegni de Pádua, ponto de partida para uma linha de experimentação que alcançará seu apogeu na França com o curta-metragem do jovem Alain Resnais. Uma segunda revolução da ordem já não espacial, mas temporal, chegaria duas décadas após o Racconto com outro experimento único: Le mystère Picasso de 1956, de Henri-Georges Clouzot⁹. Encena-se pela primeira vez a aparição histórica da arte no palco do cinema, uma experiência estética construída a partir da origem, desenvolvimento e destino do gênero do cinema arte, tal como o assinala o título de abertura.

    Muito além desses dois acontecimentos históricos ilustrativos, importantes precedentes da relação entre a arte e o cinema experimental, uma série de novos caminhos se abrira para essa interface das artes visuais e cinematográficas até alcançar surpreendentes formulações na filmografia contemporânea feitas na perspectiva de diversas experiências dos recursos e suportes multimídia. Das mais variadas sugestões de cineastas, realizadores e roteiristas engajados no viés da História da Arte, assim como a própria experiência do espectador. Este capítulo inicial situa a obra de arte como ponto de partida para a experiência estética no cinema, levando em consideração sistemas híbridos e complexos da recepção das imagens em movimento e indo além do caráter documentário que estas inspiram.

    Desta forma, o capítulo estrutura-se em uma primeira parte na qual se aborda de forma documental as origens históricas do cinema sobre arte, que deram início à inserção deste no espaço reservado às Belas Artes; uma segunda parte na qual se remete às origens teóricas da experiência estética do cinema, entre efervescências e cristalizações, e uma terceira parte, na qual se assinala a matriz teórica dessa experiência que tem como principal objetivo: devolver à arte sua dignidade cognitiva, na medida em que se renova a percepção e o ser humano é capaz de superar as estranhezas do real que o mundo contemporâneo lhe oferece.

    Origens do cinema arte

    O cinema sobre a arte surge como proposta para o mundo a partir do ano de 1945. Uma década depois de algumas experiências germinais, essa tipologia se internacionaliza definitivamente e alcança sua idade de ouro em um momento crucial da história da humanidade: o filme sobre arte converte-se, então, em catalizador de um projeto de reconstrução dos laços europeus através da cultura. Após o fim da Segunda Guerra Mundial começa-se a organizar congressos que reúnem intelectuais em um importante esforço coletivo de reconstrução.

    Peter Bächlin, historiador do cinema é convocado à Basileia junto a escritores, artistas, músicos, cineastas e historiadores da arte para construir uma nova Europa que apostaria na criação de laços internacionais para enfrentar ódios nacionalistas que haviam derivado da inocuidade da guerra. O objetivo de Bächlin era colocar fim ao período de separação e se aproximar com o fim de renovar por meio de congressos antigas relações e produzir um cinema que levasse o selo da responsabilidade social. Depois desse encontro, em mais um congresso realizado em Paris (1948), o meeting passa a se chamar Primeira Conferência Internacional de Filmes sobre Arte.

    Esse congresso trouxe excelentes resultados e passou-se a falar sobre a função que o cinema sobre a arte estava chamado a exercer em um novo contexto internacional, procurando delimitar aquilo que Bächlin havia denominado responsabilidade social do cineasta (Guermann, 2000, p. 16). O cinema não só se converte em instrumento privilegiado de comunicação simbólica entre os países em conflito, dando origem a uma nova dinâmica nas relações bilaterais, mas em um instrumento excepcional para a educação da nova cultura de respeito que começava a se desenhar com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, cuja versão final se assina justamente em dezembro de 1948. Nesse sentido, os documentários sobre a arte serão apresentados explicitamente como suporte para a reconstrução cultural e educativa.

    Uma das primeiras manifestações desse novo tempo dos filmes sobre arte, que encarnam já os novos valores, será o curta-metragem belga Le monde de Paul Delvaux, dirigido em 1944 por Henri Storck e sonorizado em 1946 (Heusch, 1994, p. 105). Trata-se de um irado exercício de liberdade criativa, um filme emblemático da associação entre arte moderna e liberdade criativa em contraposição à campanha nazi de associar arte moderna à degeneração moral e à arte dos enfermos mentais; campanha que percorreu a Alemanha como exposição itinerante sob o nome de Arte Degenerada¹⁰. A arte moderna se faz assim emblema da liberdade contra a barbárie e se roda, em 1944, um filme experimental sobre o pintor surrealista Paul Delvaux, um gesto político que reafirma a vontade de resistência frente à homogeneização artística, política e racial.

    Dessa Conferência Internacional de 1948, organizada pela associação Les Amis de l’ Art, surgiu a Federação Internacional do Filme sobre Arte – FIFA, que em 1952 será declarada ONG e passará a receber subvenções oficiais para estudar expressamente esta questão. A Federação estima que o desenvolvimento do filme de arte é susceptível de promover belas obras e de julgar um papel eminente na formação do gosto de todos os povos. Estima-se, por outro lado, que através da obra de arte se conquista um melhor conhecimento do passado de diferentes países e se presta a oferecer uma melhor compreensão internacional. Ela pretende, igualmente, favorecer materialmente a produção e distribuição de filmes de arte e gerar um grande movimento cultural e de educação¹¹.

    Do mesmo modo, as publicações que começam a aparecer, leem-se declarações sobre o potencial do gênero, são cheias de entusiasmo e otimismo pelos novos tempos. O cineasta Marcel L’Herbier (1950, p. 34) escreve que os grandes artistas do passado são civilizadores, e que a transmissão do seu pensamento e obras exercerão uma influência decisiva na instauração de um mundo com novas regras:

    nunca mais que hoje, em que a escuridão materialista põe no espírito humano angustiantes óculos acorrentando o olhar a um presente limitado, têm sido necessários filmes nos quais brilha a virtude da propaganda das Belas Artes como remédio contra o absurdo sempre obsessivo da condição humana (...) Isto servirá verdadeiramente ao progresso da civilização.

    O cineasta e historiador italiano Carlo L. Ragghianti (1953, p X), por sua vez, falará do filme sobre arte como meio de conhecimento, um instrumento incomparável da civilização moderna, e outro historiador da arte italiana, Giulio Carlo Argan (1948, p. 6), reunirá textualmente todas as virtudes acadêmicas, estéticas e sociais na seguinte declaração:

    se o propósito da crítica da arte consiste em entender uma obra do passado com a apreciação de um homem moderno, os filmes sobre arte são de fato crítica da arte; e sim, como acredito, a crítica da arte tem um propósito social, pode certamente se dizer que, do ponto de vista social, os filmes sobre arte são o mais vivo e efetivo sistema de crítica.

    Henri Lemaître (1966, p. 13), responsável pelo estado da arte sobre o diálogo entre cinema e Belas Artes, insistirá em que a cultura é dignidade e, portanto, há de se considerar uma obrigação mobilizar todos os recursos da civilização, esta civilização da imagem, em prol do acesso da humanidade inteira à dignidade espiritual¹². Para conseguir isto, Lemaître (1966, p.25) propunha, em um de seus catálogos oficiais editados pela UNESCO, a criação de algumas referências comuns para o entendimento universal deste formato audiovisual; além de ser coerente com a vocação mesma da arte e das formas técnicas de sua difusão, é também a marca de uma cultura internacional que se deseja de fermento de paz e progresso humano.

    Com isso, as distintas comissões começaram a propor fórmulas de catalogação e de estímulos à difusão, que passavam pelas secretarias de registro de filmes em contato com produtoras dos distintos países, supressão de tarifas aduaneiras, a constituição de uma Cinemateca internacional do filme sobre arte com sede em Amsterdã; mas, antes de tudo, decide-se a publicação de catálogos críticos que desse a conhecer as produções já existentes, para facilitar sua solicitação e acesso em vistas ao uso destes em ciclos e festivais. Conta-se hoje com numerosos catálogos de filmes sobre arte.

    Paralelamente a esse esforço de coordenação e difusão, e tendo aceitado o potencial educativo e cultural do filme-arte para uma nova sociedade, provoca-se um movimento de teorização e posta em prática as diferentes linhas de experimentação cinematográfica. Em um catálogo dedicado à pintura e escultura, Henri Lemaître (1966, p. 60) assume um certo estado da arte dos principais debates ocorridos desde finais dos anos quarenta até início dos sessenta, época crucial na teorização deste gênero fílmico. Lemaître remonta-se aos pioneiros teóricos que refletem sobre o cinema como reunião das artes, desde Élie Fauré e sua teoria do cinéplastique, que previa a ubiquidade espacial e temporal do cinema, no qual o plástico e o dinâmico estariam por fim ligados, ou a teorização do primeiro plano por Bela Balazs, assim como sua ideia de que enquanto o cinema é a reunião de todas as artes anteriores, tudo o que tem sido dito em outras linguagens – artísticas – pode ser expresso pelo cinema com um coeficiente multiplicado de existência e presença.¹³

    Partindo da ideia de Pudovkin da criação de um espaço fílmico independente graças à montagem, Lemaître critica uma espécie de traição o cinema arte de Luciano Emmer, no qual o espaço original da obra pictórica é negado, ao não mostrar nunca a obra completa – o qual destruiria a tradução dramática construída por Emmer – a favor de um novo espaço fílmico que nunca permite apreciar a obra na sua totalidade (Ibid, p. 64). E coloca, enfim, nas teorias de Ragghianti e Bazin (Ibid, p.65-66) o entusiasmo do italiano e o ceticismo do francês, traduções estéticas realizadas pelos distintos tipos de filmes sobre arte.

    Contudo, dois dos principais motivos de discussão em relação ao cinema sobre arte, que provocaram inúmeros debates, apoiam-se em duas oposições práticas: de um lado, o respeito à sacralidade da aura das obras, renegando toda distorção destas, frente à reivindicação de qualquer intervenção sobre as imagens – desde a fragmentação à inscrição de linhas de composição sobre elas –, em prol dos diversos objetivos cinematográficos. De outro lado, o posicionamento a favor de uma vertente poética, que permitia utilizar obras-primas do passado e presente como material expressivo para construir dramatizações de peças líricas, frente à outra vertente crítica e analítica, que defendia uma utilização das imagens mais de acordo com uma utilização pedagógica próxima dos historiadores da arte¹⁴.

    Toda essa experimentação com filmes sobre arte dos primeiros anos será um legado – vampirizado e neutralizado, a maioria das vezes – à televisão; o que levou a uma série de transformações na liberdade, qualidade, financiamento e difusão deste gênero. O papel da FIFA vai se esvaecendo a partir dos anos sessenta, considerando-se os catálogos de 1970 as últimas contribuições importantes do espírito que animou esse projeto de diálogo internacional durante as décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial. No entanto, o ânimo nunca saiu de verdade: desde 1981, o Festival International du Film sur l’Art de Montreal tem herdado inclusive as siglas da FIFA para manter vivo este projeto: o festival temático mais importante do mundo em relação a filmes sobre arte, apresentando há mais de trinta anos uma competição internacional na qual são selecionadas as últimas experiências formais de diálogo entre as artes.

    A sua definição do filme arte é fértil e inclusiva, suficientemente ampla para abarcar os máximos domínios criativos:

    o Festival engloba todas as artes de todas as épocas e de todos os estilos, especialmente nos campos da pintura, escultura, arquitetura, desenho, ofícios da arte, moda, decoração, museologia, restauração, fotografia, cinema – retrato de diretores e atores, rodagem, efeitos –, literatura, dança, música, teatro e artes multimídia¹⁵.

    Teorias do gênero cinema arte – cartografia de efervescências e cristalizações

    Na Itália, um dos maiores países produtores de cinema sobre arte, apareceram as principais propostas de teorização acerca do gênero. Em 1948, ano de criação da FIFA, organizou-se o primeiro Congresso para as Artes Figurativas celebrado no Palazzo Strozzi de Florença. Nele configurou-se uma trilogia sólida do cinema sobre arte, base das linhas posteriores: a ideia de dramatização na pintura de Luciano Emmer e sua equipe, a exigência de respeito à obra de Longhi e Barbaro e o desenvolvimento da análise crítica de Ragghianti.

    1948 será um ano de efervescência internacional, muito além do caso italiano: o primeiro filme de Ragghianti será atual e compartilhará soluções formais com uma das obras-primas do cinema sobre arte da primeira época, Rubens de Storck e Haesaerts, no mesmo ano, celebrada mais tarde por Ragghianti como uma busca análoga à sua, apesar de não compartilhar uma metodologia de análise que o cineasta entende como demasiado dependente das teorias do historiador da arte, o formalista Heinrich Wölfflin. Nesse mesmo ano, Rubens se consagra com o Leão de Ouro em Veneza, e Carpaccio de Longhi e Barbaro com outro Leão de Prata, segundo Scremin (1991, p.18). Na França, Van Gogh de Resnais também nesse ano ganhará o Leão de Ouro e, em 1950, um Oscar¹⁶.

    Na França, André Bazin posiciona-se a favor da tendência livre de Emmer e Resnais, cujo resultado são obras autônomas e não subordinadas, com respeito à opção de Storck e Haesaersts, que é também a de Ragghianti, em parte a de Longhi e Barbaro, e cumprimentará Emmer como o primeiro revolucionário de um filme sobre arte, mais poético que crítico. É uma época de grandes debates sobre as possibilidades do novo gênero e os críticos se lançam a fazer catalogações, imaginando a partir delas futuros caminhos¹⁷.

    Passado todo esse período de experimentação e inquietação, na segunda metade dos anos cinquenta se verão, entretanto, frustradas as tentativas de internacionalização e construção de novas propostas sobre o gênero. Apesar da multiplicação exponencial do número de produções, favorecidas na Itália pelas políticas de ajuda ao documentário – que obrigam a exibir um curta-metragem antes de cada projeção nas salas de cinema –, os produtores se lançam a encomendar massivamente obras de menor qualidade que distanciam os espectadores de tudo o que soa a filme sobre arte.

    No caso italiano, a causa se insere no complexo contexto da produção industrial de uma cinematografia que havia sido praticamente arrasada. Cinecittà tinha sido o maior emblema e o maior centro de produção cinematográfica europeu, destruído em grande parte pelos bombardeios aliados¹⁸. Os norte-americanos ansiosos de conseguir o monopólio do espaço vago para a introdução massiva do seu cinema, com uma lei, como o Decreto de cinco de outubro de 1945, que declarava o fim do anterior monopólio protegido pelo Estado e a abertura do setor de regime de livre mercado, não havia outra saída a não ser aceitar a sugestão. Em 1946, de 850 filmes importados frente a 62 produzidos, 600 vinham dos Estados Unidos. Outra lei posterior, a de 1949, orquestrada por Giulio Andreotti, confirmará essa tendência que, por um lado, superará definitivamente as limitações da censura fascista e levará de fato ao renascimento da indústria, mas, por outro, promoverá um novo tipo de censura a cargo do próprio Andreotti – inimigo do Neorrealismo italiano e sua crítica social –, cujo custo será a degradação de qualidade na produção cinematográfica de modo geral¹⁹.

    Em uma entrevista de 1980 feita a Massimo Gasparini (1995, p. 64), ele deixa claro que todos os debates teóricos dos primeiros anos na Itália pareciam perdidos; declara que estavam fazendo documentários de arte pessoas não preparadas, e que os resultados estavam sendo no melhor dos casos convencionais, e no pior, verdadeiramente depressivos. O inventor do critofilm morreu em 1987, um ano antes do nascimento na França do seriado Palettes de Alain Jaubert Palettes, que supõe o triunfo e grande culminação do filme crítico sobre a arte promovido por Ragghianti; um tipo de filme realizado já com as novas tecnologias da informática disponíveis nos finais dos anos oitenta – sem esquecer a exponencial produção de, entre outras, La Sept, futuro canal Arte. A série alcançará os cinquenta capítulos entre 1988 e 2002, e é na atualidade o máximo referencial de análise crítica da arte por meio do audiovisual – mesmo centrado exclusivamente na pintura.

    Em uma outra direção, algumas das propostas mais criativas e ensaísticas da história do filme sobre arte serão realizadas na Bélgica desde os anos sessenta por autores como Henri Storck, Luc de Heusche e André Delvaux, partindo em Le monde de Paul Delvaux (1944-1946). Por sua parte, Emmer se encarregará de desenvolver uma proposta inicial até as últimas consequências, desabrochando no filme ensaio em primeira pessoa e a França terá pronto outro marco referencial: Le mystère Picasso (1956) de Henri-Georges Clouzot, que Bazin nomeará como a segunda grande revolução do cinema sobre a arte, situada no epicentro do que se conhecerá mais tarde como Nouvelle Vague²⁰.

    Dessa encruzilhada sairão as tendências principais do gênero, no qual se encontram já potencializadas soluções de confronto entre cinema e pintura que têm dado lugar às experiências mais férteis na história do cinema sobre arte. Experiências que vão além da menosprezada biografia

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