Vidas rasteiras
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Vidas rasteiras - Alberto Pucheu
ALBERTO PUCHEU
Vidas Rasteiras
Copyright © 2020 Alberto Pucheu
Copyright © 2020 Editora Bregantini
Todos os direitos reservados pela Editora Bregantini. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem autorização prévia da editora
PROJETO EDITORIAL Daysi Bregantini
CONSULTOR GRÁFICO Marcelo Nocelli
PROJETO GRÁFICO E DESIGN Fernando Saraiva
REVISOR Arthur Lungov
E-BOOK Marcelo Augusto Boujikian
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Bibliotecária Cibele Maria Dias CRB-8/9427
Pucheu, Alberto
Vidas rasteiras / Alberto Pucheu. -São Paulo :
Editora Bregantini, 2020.
ISBN 978-65-86596-06-9
1. Poesia brasileira I. Título
20-45152
CDD: B869.91
CULT EDITORA
Praça Santo Agostinho, 70 – 10o andar, Paraíso
São Paulo, Brasil • CEP 01533-070
11 3385 3385 • 11 9 9998 9728
Sumário
vidas rasteiras
por amor
em off
poema para a catástrofe do nosso tempo
Ao longo da história do pensamento, duas perguntas parecem se entrelaçar – o que é isso, a filosofia? O que é isso, a poesia? – numa intrincada relação de interdependência. As duas questões estão, de maneira elíptica, ligadas ao trauma, aqui no sentido do acontecimento, do espanto, da busca incessante pelo entendimento. Da procura desse segredo nasce a ideia de que a experiência de pensamento é uma tentativa de dizer o mundo pela linguagem, poética ou filosófica, artística ou teórica.
A poesia que Alberto Pucheu nos apresenta em vidas rasteiras faz essa tentativa compartilhando poesia e filosofia. O livro se inscreve nesta intersecção. Cada palavra, cada verso, cada enjambement, cada poema estão marcados pelo trauma, mas também pelo desejo de trazer este trauma para a linguagem. O resultado é espantoso.
Do ponto de vista formal, vidas rasteiras permanece fiel ao que há de melhor no corpus da obra de Pucheu. Do ponto de vista das inquietações que produz, é um testemunho poético-filosófico do nosso tempo e do que é, afinal, o contemporâneo.
Carla Rodrigues
vidas
rasteiras
tensionando a vida em cabos de aço
estendidos
do extremo norte
ao sul das américas
pontuando os vazios
e as imensidões
que atravessam
e os atravessam
buscando saídas
da morte
em barcos inflados
sobrecarregados
de perdas
pelo mediterrâneo
em campos
de refugiados
onde apesar de tudo
ainda tentam
sobreviver
por todos os lados
são os Estados
os exércitos as polícias
as bombas as balas
as fronteiras as moedas
as línguas as cercas
eletrificadas os muros
as discriminações
a morte qual será o som
desses cabos
tensionados
desses aços
desses mares
desses cactos
espetados por ponteiras
de ferro
a espetarem-nos
qual será o som
do espetado
qual será o som
do que espeta
nessa guerra sem fim
cada vez mais acirrada
qual será o som
dessas vidas
rasteiras miúdas
mimosas
mesmo que frágeis
tentando vingar
tentando se vingar
tentando
se fazer
valer tentando
se adequar
ao que encontrar
pelo caminho
tentando se desviar
para não
se ferir qual será
o som dessas vidas
montanhosas
cruzando continentes
com seus
excessos
cruzando continentes
pelas montanhas
com suas
carências
qual será o som
dessas vidas
marítimas
cruzando oceanos
em botes infláveis
superlotados
prestes
a naufragarem
qual será o som
dessas vidas
afundadas
precárias
grunhindo
entre o excesso
e a falta
na beira
de bares
essas vidas
indígenas
desterradas
desaldeadas
tornadas pobres
mendigas
mulheres
desempregadas
sem conseguirem
pagar
seus aluguéis
suas roupas
suas comidas
pobres até
virarem
mendigas
moradoras de rua
que ruídos
emitem
essas vidas
doentes
perambulando
pelas cidades
buscando
em algum lugar
uma ancoragem
qualquer
impossível
que ruídos
que sons
são esses
escutados
por quase ninguém
que grunhidos
são esses
a jamais
ecoarem
por outros
ouvidos
por outros
poros
por outras
vidas
mas que quando
se está em um
bar qualquer
num sábado
à noite
do centro
de uma grande
cidade
arruinada
podem emergir
bem ali
ao seu lado
à sua frente
dentro de você
adentrando você
por ser a voz
de uma filha
de potira
que a escuta
perdida
esparramando
mostarda
na mesa
movimentando
os dedos
na pasta amarela
levando-os
à boca
para falar
o que seria
inaudito
contando
que na noite
de ontem
choveu muito
debaixo
da marquise
tendo ficado
toda molhada
encharcada
ensopada
debaixo
de seus
sessenta anos
sem ter conseguido
os R$12,00
para pagar
a pensão
em que dorme
e toma banho
quando raramente
consegue
vender 3kg
de latinhas
para o ferro velho
explicando-me
que 1kg são 45
latinhas
que quem lhe dá
comida
depois de uma hora
da manhã
escondido do dono
é o toninho
um dos garçons
do restaurante
em que estamos
que ele é
como um filho
para ela
que tem leucemia
mas que o médico
disse que ela não vai
morrer disso não
afinal ela é dona laura
filha de potira
ela saiu
de sua aldeia
na amazônia
na fronteira
da venezuela
aos 27 anos
porque chico mendes
fora assassinado
e o cacique
da tribo
e os caciques
das tribos
aliadas
de chico mendes
que tanto ajudou
indígenas
resolveram vingar
sua morte
declarando guerra
de homens
guerreiros guerra
de indígenas aos homens
brancos
guerra perigosa
a tornar perigosa
a permanência
das mulheres
nas aldeias
a levar as mulheres
para o primeiro
exílio a levá-las
para manaus
onde morreram
assassinadas
doentes estupradas
pobres mendigas
pelas ruas becos
docas rios
mas ela
é filha de potira
ela sobreviveu
se mandou
para o rio grande
do norte
para o rio de janeiro
onde ficava
pela central
do brasil
onde jogaram
gasolina nela
enquanto dormia
para tocarem
fogo nela para
matarem ela
indígena pobre mulher
mendiga pela central
do brasil
onde tentaram
estuprá-la
mas ela é filha
de potira
se safou
sobreviveu
se mandou
para são paulo
em cujas ruas
do centro vive
até hoje
amando os gays
amando as travestis
cheia de sonhos
de línguas
estrangeiras
mas por que a senhora
não volta
para sua tribo
eu perguntei
a ela ela me disse
porque meu corpo
é um corpo doente
um corpo vacinado
um corpo
doente minha aldeia
não tem contato
com branco
não fala português
eu falo tupi-guarani
se eu voltar
para minha tribo
meu corpo doente mata
as pessoas de lá
você não está
entendendo
meu irmão
tem cento e dois anos
é o cacique da tribo
minha mãe teve 22
filhos homens
só depois eu nasci
a primeira filha
a única mulher
eu era mulher
do pajé
não posso voltar
para eles
se eu voltar
para a aldeia
eu mato eles
com as doenças
que trago no corpo
já voltei
algumas vezes
nem me sinto mais
muito bem
por lá
eles não falam
português
ela me disse
chorando
tragicamente
desenraizada
de todos os lugares
desenraizada
de todas as pessoas
desenraizada da aldeia
da cidade
de todos os lugares
desenraizada
dela
num bar
de uma grande
cidade
arruinada
onde
pode emergir
bem ali
ao seu lado
à sua frente
aqui
adentrando você
a voz de outro
alguém a voz
de outra mulher
a voz
de dona leila
uma voz igualmente
inesperada
sofrida
pobre
que sem
conseguir pagar
seu aluguel
por 7 meses
encontrou
o movimento
dos sem teto
do centro
conseguindo
morar no hotel
cambridge
ao qual