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A DAMA DA LIBERDADE - A história de Marinalva Dantas, a mulher que libertou 2.354 trabalhadores escravos no Brasil, em p
A DAMA DA LIBERDADE - A história de Marinalva Dantas, a mulher que libertou 2.354 trabalhadores escravos no Brasil, em p
A DAMA DA LIBERDADE - A história de Marinalva Dantas, a mulher que libertou 2.354 trabalhadores escravos no Brasil, em p
E-book480 páginas19 horas

A DAMA DA LIBERDADE - A história de Marinalva Dantas, a mulher que libertou 2.354 trabalhadores escravos no Brasil, em p

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Sobre este e-book

A DAMA DA LIBERDADE é o epíteto que daremos para Marinalva Dantas, coordenadora de um grupo do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) que, desde 1995, tem dedicado sua vida à causa da libertação de escravos no Brasil. Klester Cavalcanti tem acompanhado o trabalho dela desde o início e conseguirá não apenas fazer um perfil da poderosa mulher, como trazer ao debate a questão ainda persistente do trabalho escravo nos dias de hoje neste livro-reportagem. As ações de Marinalva lembram as de filmes norte-americanos, com mobilização da polícia federal, tiroteio com capangas de fazendeiros, descoberta de pessoas presas em fazendas e casas (muitas vezes acorrentadas). Como não poderia deixar de ser, Marinalva é uma dessas personalidades públicas desconhecidas do grande público que vivem ameaçadas de morte. A publicação de sua história de luta e apego às causas libertárias pode comover o público.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de mar. de 2023
ISBN9788582401972
A DAMA DA LIBERDADE - A história de Marinalva Dantas, a mulher que libertou 2.354 trabalhadores escravos no Brasil, em p

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    A DAMA DA LIBERDADE - A história de Marinalva Dantas, a mulher que libertou 2.354 trabalhadores escravos no Brasil, em p - KLESTER SEVERO CAVALCANTI DA SILVA

    1

    De frente com o medo

    O disparo ecoou mata adentro. Marinalva sentiu o coração acelerar e o corpo todo gelar. Outro tiro. E mais outro. Sua única reação foi agachar, na intenção de se proteger. Entrou em pânico. Só pensava que não queria morrer ali, numa fazenda no meio da Amazônia. Olhou para os lados, assustada. Seus colegas também estavam nervosos. Alguns deles falavam com ela, aos gritos. Podia ver seus lábios se movendo, mas nada escutava, além de um silêncio abafado. Era como se alguém estivesse tapando seus ouvidos com toda a força do mundo. Ouvia apenas a própria respiração, pesada, ofegante. Nunca sentira nada parecido. Precisava recuperar a calma e voltar ao trabalho. Havia uns cinco minutos, dois agentes da Polícia Federal que faziam parte da sua equipe tinham entrado no matagal, no encalço de um fugitivo. Ela não sabia quem era o autor dos disparos. Mas tinha uma sensação lancinante de que a situação ficaria ainda pior na tarde daquele domingo, 15 de fevereiro de 2004.

    Auditora fiscal do Trabalho, Marinalva Dantas estava com 49 anos, mas a pele morena, o rosto praticamente isento de rugas e os longos cabelos negros conferiam-lhe aparência de uma mulher de 40 anos ou menos. Era dela a responsabilidade de comandar a operação que tinha como objetivo libertar 52 escravos de uma fazenda no município de Marabá, no sudeste do Pará. E o homem a quem os policiais perseguiam era Gilmar Souza, funcionário da Fazenda Macaúba. Com um revólver calibre 38 sempre preso à cintura, Gilmar realizava um trabalho imprescindível para o proprietário da Macaúba, o pecuarista e empresário Altamir Soares da Costa, dono de fazendas, serrarias e carvoarias da região. Ele era o encarregado de aliciar trabalhadores, com falsas promessas de bons salários e uma vida melhor. No mundo da escravidão contemporânea, o personagem que realiza essa tarefa, fundamental no processo, é chamado de gato. Sem a atuação dele, não haveria escravos. Gilmar não era apenas o gato. Na Macaúba, ele também aterrorizava os agricultores, com juras de morte àqueles que tentassem fugir. O revólver na cintura e os relatos de que Gilmar atuava, ainda, como pistoleiro serviam para dar credibilidade às ameaças – assim, nenhum dos cativos ousaria arriscar-se numa fuga – e tornavam sua captura ainda mais importante.

    No momento dos disparos, Marinalva estava dentro da fazenda, entrevistando um grupo de escravizados para entender melhor tudo o que acontecia ali. Naquele instante, o dono da Macaúba já havia sido preso em flagrante e aguardava num dos barracos que serviam de casa para os trabalhadores. O gato, por sua vez, tinha sido algemado pela Polícia Federal (PF) e guiava os agentes ao local em que, segundo ele, o seu patrão guardava várias armas. Como Gilmar demonstrava disposição em colaborar e era franzino – tinha 1,60 metro e não pesava mais do que 50 quilos –, os policiais acharam desnecessário mantê-lo algemado. Não foi uma boa ideia. Mesmo com grandes áreas de floresta devastada para dar lugar ao pasto, ainda havia nacos de selva amazônica no entorno da Macaúba. Foi para um desses pedaços de mata fechada que Gilmar correu ao primeiro descuido dos policiais. Os agentes seguiram atrás dele, mas a floresta favoreceu o fugitivo, que conseguiu escapar. Os tiros que assustaram Marinalva tinham sido disparados pelos próprios policiais, na tentativa de intimidar Gilmar e fazê-lo desistir da fuga.

    Ao menos, foi essa a versão contada pelos agentes quando retornaram ao local onde o grupo estava, perto dos barracos dos escravos. Para Marinalva, não era impossível que o gato tivesse sido executado pelos policiais. Essa ideia a perturbava. Por mais cruel que aquele homem fosse, merecia ser julgado por seus crimes. Ele tinha tanto direito à vida quanto os escravos que ela lutava para libertar. Com essa preocupação em mente, Marinalva resolveu entrar no mato à procura de Gilmar. Não iria sozinha. Levou consigo dois policiais federais e o procurador do Trabalho Marcello Ribeiro Silva, que também fazia parte da equipe, como representante do Ministério Público. A cada passo, sentia seus pés afundarem na terra encharcada pelas chuvas dos dias anteriores. O tênis preto já estava que era só lama. A barra da calça, imunda. Começava a escurecer. Os últimos raios de Sol do dia tinham dificuldade para vencer a copa das árvores. Ela apertava os olhos na tentativa de enxergar algo no meio daquele labirinto verde. E nada. Marinalva, o procurador e os dois policiais ficaram quase 15 minutos dentro do mato, mas não viram ninguém. O gato conseguira fugir.

    – Ele parecia tão inofensivo – disse um dos policiais, ainda dentro da mata.

    – É nisso que dá confiar nesse tipo de gente – emendou o outro.

    Ela se limitou a olhá-los com reprovação. Já recuperada do susto e indignada com aquela situação, caminhou até o barraco em que Altamir da Costa, o dono da fazenda, estava. Dedo em riste, encarou o homem temido por todos na região:

    – O senhor está vendo o que o seu empregado fez? Se ele tem coragem de desafiar dois policiais federais, fico imaginando que tipo de atrocidade ele pode ter cometido com esses pobres coitados que trabalham aqui!

    Altamir não falou palavra. Sentado num banco de madeira, apenas mirou Marinalva com uma expressão vazia nos olhos, como se não se importasse muito com nada daquilo, e abaixou a cabeça. Como um dos escravos já havia lhe falado onde Gilmar morava, ela chamou o procurador Marcello Ribeiro, dois policiais federais e partiu na caçada ao gato, que ignorava o fato de Marinalva saber a localização da sua casa. Por isso, imaginou que Gilmar poderia ir para lá, com a intenção de se esconder ou de buscar alguma arma. Ela, o procurador e os dois agentes pegaram uma das quatro picapes do grupo e seguiram pela estrada de terra, totalmente enlameada. O restante da equipe – mais cinco auditores, três policiais e a delegada federal Larissa Magalhães – permaneceu na área da fazenda onde ficavam os barracos para dar segurança aos trabalhadores e impedir uma eventual fuga de Altamir da Costa. A presença do procurador do Trabalho e da Polícia Federal era crucial para dar força e segurança aos auditores. Eles sabiam que, em operações como aquela, o risco de um ataque de capangas do fazendeiro é sempre alto.

    Em pouco mais de 15 minutos, Marinalva, o procurador e os dois policiais já estavam na casa de Gilmar. Tinham percorrido uns 5 quilômetros de carro e outros 500 metros caminhando, mata adentro. O gato morava numa cabana de madeira, mas não estava lá quando a equipe chegou. Havia apenas uma família de escravos, formada por um agricultor, sua mulher e duas filhas, de 5 e 3 anos. O homem tinha 34 anos, cabelo preto e comprido, abaixo dos ombros, e barba farta. Já fazia 3 meses que não recebia seu salário. Entre as tarefas que ele e a esposa tinham de executar na fazenda, estava a limpeza da casa de Gilmar e a organização do quarto de 4 metros quadrados utilizado como armazém. Era ali que o gato guardava as mercadorias que seriam vendidas aos trabalhadores. Essa é uma das formas de manter os agricultores cativos e que gera o que os auditores chamam de servidão por dívida, um dos mecanismos que configuram o trabalho escravo moderno.

    A receita é simples: tudo o que o lavrador precisa comprar para viver e para trabalhar – calçados, ferramentas, comida – é vendido pelo empregador, que mantém uma mercearia na própria fazenda. Sem liberdade de sair para outros lugares e isolados geograficamente – o supermercado mais próximo sempre fica a dezenas de quilômetros de distância –, não resta outra alternativa aos trabalhadores a não ser comprar o que precisam das mãos do homem que os explora. Invariavelmente, os produtos são vendidos a preços duas ou até três vezes acima do valor de mercado. Na Fazenda Macaúba, por exemplo, 1 quilo de açúcar custava o dobro do preço cobrado nos supermercados de Marabá, a 150 quilômetros de distância. Se quisesse trabalhar de botas e luvas – como deveria –, o peão teria de pagar por elas. Até a enxada, que obrigatoriamente usaria na labuta, tinha de ser comprada. Marinalva sempre comparava essa realidade dos escravos ao universo corporativo. Ela costumava destacar que seria o mesmo que uma empresa exigir que o funcionário compre o próprio computador e aparelho de telefone do escritório. Ou se um restaurante obrigasse o cozinheiro a pagar pelo fogão e pelas panelas do estabelecimento.

    Tal procedimento contraria a Legislação Trabalhista do Brasil e aprisiona o trabalhador, já que o fazendeiro que pratica esse tipo de ilegalidade tem como regra atrasar o pagamento dos agricultores, obrigando-os a contrair dívidas. E nenhum peão pode ir embora enquanto não pagar o que deve ao empregador. Nos relatórios apreendidos na Fazenda Macaúba, a equipe de Marinalva encontrou registros de lavradores que estavam sem receber seus salários havia quase dois anos. Como o débito nunca será menor do que o crédito – graças aos preços exorbitantes –, o trabalhador estará sempre devendo ao patrão. A maior parte deles devia o equivalente a três meses de ordenado. O caso mais grave era o de Antônio Francisco Vieira, que, segundo os relatórios de Gilmar, tinha uma dívida de R$ 2 mil na mercearia da fazenda. Nas prateleiras de madeira do armazém improvisado na casa do gato, havia de tudo: açúcar, arroz, sabão em pó, café, cigarro. E não podia faltar o produto mais consumido pelos escravos brasileiros: cachaça. A bebida, como Marinalva já tinha aprendido em seus quase dez anos libertando pessoas pelo país, é a melhor companheira para aqueles que perderam a esperança de ter suas vidas de volta.

    Com as irregularidades da fazenda devidamente comprovadas – sua equipe anotava e fotografava tudo –, a auditora desistiu de continuar procurando Gilmar e decidiu voltar ao local onde o restante do grupo a esperava. Precisava concluir a operação, o que significava, entre outras coisas, tirar os agricultores daquele lugar e obrigar o fazendeiro a pagar todos os salários devidos. Mesmo com tração nas quatro rodas, a picape sofria para superar alguns trechos da estrada de terra coberta de lama. Até que o carro atolou. Naquele fim de mundo, não havia telefonia celular. Eles teriam de tirar a picape do atoleiro sozinhos. Procuravam pedaços de madeira para utilizar como alavanca, quando Marinalva percebeu dois veículos vindo à sua frente. Os faróis estavam acesos, forçando-a a apertar os olhos, com agonia, na tentativa de ver quem estava dentro do primeiro carro. Não conseguiu. Ouviu o ronco pesado de um motor às suas costas. Olhou para trás e viu um trator se aproximando. O coração ficou acelerado. Sentiu muito medo de estar no meio de uma emboscada. Mais uma vez, temia pela própria vida. Seu receio tinha fundamento.

    Havia pouco mais de duas semanas – no dia 28 de janeiro de 2004 –, três auditores fiscais do Trabalho tinham sido assassinados no município de Unaí, em Minas Gerais. Eratóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Lage e Nelson José da Silva foram mortos a tiros durante uma operação de combate ao trabalho escravo na Fazenda Bocaina, onde o crime ocorreu. De acordo com as investigações da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, os mandantes do assassinato foram os irmãos Norberto e Antério Mânica, donos da Fazenda Bocaina, grandes produtores de feijão e pertencentes a uma das famílias mais poderosas da região – Antério seria eleito prefeito da cidade em outubro daquele mesmo ano. O caso, conhecido como a chacina de Unaí, teve repercussão em todo o Brasil e ainda estava muito vivo na mente de Marinalva, que conhecia João Batista Lage, um dos auditores assassinados no exercício da profissão. Por tudo isso, ela sentiu que sua vida estava em risco, ao perceber o bloqueio formado pelos carros e pelo trator. Não queria ser mais uma vítima dos fazendeiros escravocratas do século 21.

    Quanto mais os veículos se aproximavam, mais acelerado batia o seu coração. A região da boca acima do lábio superior – o chamado bigode – começou a suar. Isso sempre acontecia quando ficava muito nervosa ou sentia medo extremo. Passou o dedo indicador direito para enxugar o buço e sentiu as pernas perderem as forças. Não podia morrer ali, naquele momento. E muito menos daquela maneira: a tiros, no meio do mato. A luz dos faróis dos carros ficava cada vez mais intensa. Começou a se sentir enjoada, meio tonta. Veio, então, uma dor de barriga aguda. Apoiou-se na carroceria da picape, como quem se escora em algo para não cair. Ninguém percebeu. Estavam todos preocupados com os veículos que se aproximavam. A dor de barriga só piorava. Sentiu o corpo todo arrepiar. Ela não aguentava mais. Pegou o rolo de papel higiênico que sempre levava no carro e foi para dentro da mata. Não sem antes dar um importante aviso à sua equipe:

    – Ninguém olha para cá!

    De cócoras e com a calça jeans abaixada até os tornozelos, ouviu quando os dois veículos pararam e desligaram o motor. Fez o que tinha de fazer e voltou à estrada de terra. Tão aliviada estava, que ser executada por pistoleiros de um fazendeiro nem lhe parecia mais algo tão ruim assim. Jogou o rolo de papel dentro da picape e retomou o comando da situação. Seus passos firmes afundavam na lama, na direção dos carros que haviam acabado de parar e que mantinham os faróis acesos. Ao chegar mais perto, Marinalva viu duas picapes, das quais desceram uma mulher e cinco homens. Era a esposa do dono da fazenda com alguns capangas. Ela usava uma calça jeans, camisa de botões e botas de couro. Os cabelos eram lisos e castanhos, com fios grisalhos em quantidade suficiente para que parecesse ter entre 50 e 60 anos. Após fugir dos policiais na selva, o gato Gilmar tinha ido direto à sede da fazenda, comunicar à patroa que seu marido acabara de ser preso sob acusação de manter trabalhadores em regime de escravidão. Indignada com a situação e preocupada com o esposo, a mulher queria tirar satisfação com os auditores e com os policiais.

    Marinalva percebeu que ao menos dois dos sujeitos tinham revólveres presos à cintura. Olhou para os policiais federais que a acompanhavam e fez um leve sinal com a cabeça para que se aproximassem. Antes de, como intentava fazer, chegar perto o bastante para abordar a mulher, ouviu-a vociferar:

    – Quem são vocês? O que estão fazendo na minha propriedade? Onde está o meu marido?

    – Calma, minha senhora. Uma pergunta de cada vez – revidou Marinalva, com a voz segura e serena, uma de suas características mais marcantes.

    – Calma, coisa nenhuma! O caseiro disse que meu marido está preso. Ele é um homem de bem…

    – Nós duas sabemos que Gilmar não é caseiro da fazenda. E seu marido está preso, sim. E vai continuar assim até acertar a situação dos trabalhadores – ela disse, com as mãos na cintura e demonstrando estar calma demais para uma situação como aquela.

    – Onde ele está? Onde está Altamir? – perguntou, com a voz menos alterada, a mulher do fazendeiro.

    – Está num dos barracos, à nossa espera.

    – Ele está nos barracos dos peões?

    – Sim. Mas o restante da nossa equipe está lá. Seu marido está seguro.

    – Eu quero vê-lo.

    – Claro. Pode nos seguir até lá. Mas, antes, precisamos tirar o nosso carro desse atoleiro – respondeu Marinalva, apontando para a picape no lamaçal.

    – Isso não é problema. O nosso tratorista viu que vocês tinham atolado e veio para cá exatamente para isso.

    O trator que havia parado atrás do veículo do grupo passou de ameaça a salvação. Amarraram uma extremidade de uma corda na traseira do carro e a outra no trator. Não demorou 20 segundos. Livres do atoleiro, Marinalva e sua equipe retornaram ao local onde Altamir da Costa tinha ficado. Eram seguidos de perto por apenas uma picape, a que levava a mulher do fazendeiro e dois capatazes. Quando chegaram à área dos barracos dos escravos, Altamir estava no mesmo lugar em que Marinalva o havia deixado: sentado num banco de madeira. Quem não o conhecesse poderia imaginar que se tratava de um dos seus peões. Nascido no Piauí, Altamir estava com 54 anos e parecia um típico caboclo amazônico: pele morena, rosto redondo, olhos escuros, nariz largo e cabelos pretos e lisos. Com o rosto perfeitamente barbeado e óculos de grau quadrados, mantinha a barriga grande demais para o seu 1,72 metro de altura. Ao ver a mulher descendo do carro, levantou-se do banco e, acompanhado por um policial federal, caminhou na direção dela. Abraçaram-se rapidamente e trocaram algumas palavras contrariadas.

    A operação havia sido exitosa. Mas já passava das 22 horas e a equipe ainda estava no meio do mato. Marinalva queria acelerar o processo. Sob suas ordens, todos se organizaram para deixar a Fazenda Macaúba e pegar a estrada de volta a Marabá. Os auditores já haviam providenciado um caminhão da própria fazenda para levar os trabalhadores à cidade. Altamir foi numa das picapes da Polícia Federal. Sua mulher, ainda revoltada com tudo aquilo, seguiu no próprio veículo. Na outra picape da PF, os agentes levaram documentos, cadernos onde eram anotadas as dívidas dos agricultores, agendas e computadores apreendidos na fazenda, além das armas que encontraram no local: três espingardas e dois revólveres do gato Gilmar, que continuava sumido.

    Marinalva ficou até todos os lavradores embarcarem na carroceria do caminhão. Sentia-se feliz por ver aqueles 52 brasileiros sendo libertados depois de tanta agonia. Alguns deles sorriam como crianças. Outros choravam de alegria, como se não acreditassem que o inferno acabara. Um dos peões, conhecido por todos como Negão Bandeirante – um sujeito de quase 1,90 metro, negro, cabelo raspado e corpo musculoso –, pegou nas mãos de Marinalva e, olhando-a com ternura e incredulidade, perguntou: "É verdade que nós vai embora, doutora?". Comovida diante daquele homem tão forte e tão indefeso, ela respondeu apenas com um leve sorriso e acenando a cabeça em sinal de positivo.

    No relatório da missão que apresentaria ao Ministério do Trabalho, ela destacaria os pontos mais graves de tudo o que encontrara na Fazenda Macaúba. O fato de os trabalhadores dormirem em barracos com coberturas de plástico e sem proteção lateral ou em cabanas de palha foi citado no primeiro ponto do relatório. Os agricultores tinham, ainda, de beber a água barrenta de um córrego no meio do mato, no qual os bichos também matavam a sede. Sem acesso a banheiro, eram obrigados a fazer suas necessidades na selva. A carne que comiam ficava ao relento, em pedaços de madeira, e estava sempre infestada de moscas. A coloração escura, quase preta, dos pedaços de carne impressionou auditores e policiais. Além de tudo isso, havia o atraso e o não pagamento dos salários, a vigilância armada, que tira do indivíduo o direito constitucional de ir e vir, a jornada de trabalho desumana – de até 15 horas por dia, de domingo a domingo – e o esquema da servidão por dívida.

    Para concluir o cardápio de irregularidades, nenhuma das 52 pessoas libertadas tinha a Carteira de Trabalho assinada e havia, ainda, a presença de dois adolescentes – de 14 e 16 anos – e de uma menina de 11 anos entre os escravos. A garota, Domingas dos Santos, trabalhava na fazenda como doméstica e babá do filho da cozinheira, Danúbia Barbosa – a adolescente de 16 anos. Quando chegou ao barraco da cozinheira, Marinalva viu uma cena que a deixou tão emocionada quanto indignada. Domingas caminhava de um lado a outro, sobre o chão de terra batida, com um bebê de 2 anos no colo. A auditora enxergou, nos braços da garota, sua neta, Gabriela, que à época tinha a mesma idade que o filho de Danúbia. A auditora sentiu-se péssima, com um peso no coração que nunca experimentara. Encontrar crianças cativas sempre causava-lhe profunda agonia. Deparar com um bebê vivendo naquelas condições doeu-lhe ainda mais. Que futuro poderiam ter? Aos 11 anos, Domingas já havia sido tragada pelo mundo da escravidão contemporânea. E o bebê de 2 anos parecia fadado ao mesmo destino. Ao menos, para esses os dias de cativeiro estavam prestes a acabar. Tudo isso levou Marinalva a ressaltar, num dos tópicos do seu relatório:

    Constatamos a exploração de mão de obra infantil, na pessoa de uma criança de 11 anos, analfabeta e que trabalhava como empregada doméstica e babá do filho da cozinheira. Um menino de 14 anos realizava tarefas insalubres e penosas, roçando pasto, numa idade em que é proibido qualquer tipo de trabalho.

    Previsto no Artigo 149 do Código Penal Brasileiro, o crime de trabalho escravo é punido com reclusão, de dois a oito anos, e multa. Para complicar ainda mais a situação do dono da Fazenda Macaúba, o Artigo 149 define que a pena é aumentada de metade, se o crime é cometido contra criança ou adolescente. Por isso, Marinalva e a delegada Larissa Magalhães já tinham decidido o que fazer com Altamir da Costa. Da sua fazenda, ele seria levado diretamente à Superintendência da Polícia Federal em Marabá, onde seria lavrado o auto da prisão em flagrante. Antes, no entanto, era preciso tomar todas as providências em relação aos 52 trabalhadores que haviam acabado de ser resgatados.

    A primeira coisa a ser feita era encontrar um lugar para hospedar todo aquele povo. Afinal, eles, como os demais integrantes da equipe, precisavam de um local para tomar banho, comer, descansar. Com tanta gente para acomodar, não foi possível colocar todos no mesmo lugar. Acabaram sendo hospedados em sete hotéis de Marabá. Alguns, ao ver os quartos em que iriam dormir, chegaram a comentar com os auditores que nem se lembravam da última vez em que haviam utilizado uma privada e deitado numa cama – na fazenda, só usavam redes ou esteiras de palha. E nem precisariam pagar por isso: os gastos com hospedagem e alimentação ficariam a cargo do fazendeiro que os explorara durante tanto tempo.

    Com os agricultores devidamente alimentados e instalados, foi a vez de auditores e policiais pararem para comer. Deixaram Altamir da Costa na Superintendência da PF e foram a um restaurante da cidade. Estavam todos mortos de cansaço. Não era para menos. Haviam começado o expediente às 6h30 da manhã, quando saíram do hotel a caminho da Fazenda Macaúba, e o relógio dourado de Marinalva já marcava 22h15 – quase 16 horas ininterruptas de trabalho. E ainda precisavam voltar à Superintendência para lavrar o auto da prisão em flagrante de Altamir. Esse processo, eles sabiam, não levaria menos do que três ou quatro horas. Numa conversa durante o jantar, Marinalva, a delegada Larissa Magalhães e o procurador Marcello Ribeiro decidiram que apenas eles teriam de retornar ao trabalho, para finalizar o processo da prisão do fazendeiro. O restante da equipe foi liberada para seguir ao hotel e descansar.

    Por volta das 23 horas, estavam de volta à Superintendência da PF. Altamir da Costa tinha a companhia da esposa, que não saíra do seu lado desde a chegada a Marabá. Para lavrar o auto da prisão em flagrante, era imprescindível o depoimento de testemunhas. Marinalva e o procurador assumiram esse papel, enquanto a delegada Larissa coordenava tudo. O acusado também foi ouvido pelos policiais. O processo foi ainda mais lento do que imaginavam. Só conseguiram sair da PF às 5h45 da matina, com o dia já clareando. Mas tinha valido a pena. A equipe de auditores conseguira chegar ao valor total que o fazendeiro pagaria aos trabalhadores que mantinha em regime de escravidão: R$ 106 mil, incluindo indenização por danos morais e todos os salários atrasados, com direito a férias, décimo terceiro e FGTS. Apesar das reclamações da mulher e do filho de Altamir – Enário da Costa –, que acompanhavam todo o processo, o valor foi estabelecido e, como o procurador Marcello Ribeiro fez questão de deixar claro, não era negociável. Para garantir que Altamir pagaria sua dívida, o procurador ainda solicitou à Justiça o bloqueio das contas do fazendeiro. A delegada Larissa Magalhães, por sua vez, providenciou tudo para que o empresário fosse levado da Superintendência da PF à penitenciária de Marabá.

    Marinalva deixou o prédio da PF satisfeita com os resultados do dia. Estava exausta. Só pensava em tomar um banho e dormir. Ao passar pelo saguão do hotel, porém, viu os funcionários montando as mesas para o café da manhã. Lembrou que estava sem comer havia mais de sete horas. Devorou um pão com manteiga e queijo e tomou um copo de leite quente com café, sem açúcar. Adoraria comer uma tapioca, feita na hora pela cozinheira do hotel. Mas o cansaço predominou sobre o desejo. Vinte minutos depois, já estava de banho tomado e jogada na cama. Olhou para o relógio, só para saber quanto tempo teria de descanso antes de retomar o trabalho – queria acordar às 11 horas. Eram 6h40 da manhã. Ela passara mais de 24 horas na labuta, com paradas apenas para se alimentar. Inspirou fundo, enchendo os pulmões o máximo que pôde, e soltou o ar lentamente, como se quisesse expulsar toda a fadiga do corpo. Aquele era o tipo de cansaço que lhe fazia bem. O cansaço que vinha acompanhado da certeza do trabalho benfeito. Do orgulho de ter resgatado mais 52 brasileiros da escravidão.

    * * *

    A mulher forte e incansável, que, naquele momento – início de 2004 –, já havia dedicado mais de oito anos da sua vida a libertar homens, mulheres e crianças pelo Brasil, em nada lembrava a menina pobre e indefesa que foi um dia. Seguisse os rumos que o destino parecia ter traçado para ela, Marinalva Cardoso Dantas poderia perfeitamente ter se tornado uma das vítimas do sistema escravocrata que tanto combatia. Filha de um motorista de ônibus e de uma dona de casa, Marinalva nasceu em Campina Grande, interior da Paraíba. Veio ao mundo às 11 horas da manhã do dia 26 de maio de 1954, uma quarta-feira quente demais para dar à luz uma criança. Creuza da Silva, a mãe, estava com 19 anos quando teve aquela menina grande e forte – o bebê nasceu com 52 centímetros e 3,2 quilos. Já era seu terceiro filho. O primeiro, Inaldo, nasceu seis meses após Creuza completar 15 anos. Aos 17, deu à luz Íris. Dois anos depois, nasceria Marinalva. Teria, ainda, três anos mais tarde, Marileide. Assim, aos 22 anos, Creuza era mãe de quatro crianças. Inaldo e Íris haviam nascido na casa da família, pelas mãos de parteiras tradicionais da comunidade. Para dar à luz Marinalva, Creuza pediu para ser levada à Maternidade Pública Elpídio de Almeida, que tinha sido inaugurada havia três semanas. Queria ter o terceiro bebê num ambiente mais limpo e seguro. Gostou tanto da experiência, que fez o mesmo quando do nascimento da última filha, Marileide.

    A família era pobre. Muito. O casal e os filhos viviam num bairro da periferia de Campina Grande, numa casa de alvenaria com piso de cimento. Eram apenas dois quartos, separados por uma cortina de estampa florida. Num deles, dormia o casal. No outro, as crianças, que se dividiam entre duas camas. Não havia divisória entre a sala e a cozinha, que, somadas, ocupavam cerca de 15 metros quadrados. O banheiro ficava do lado de fora, a 10 metros da casa, no meio do mato. Não passava de um cubículo de 1 metro quadrado, com privada, mas sem descarga e chuveiro. Para situações de emergência no meio da noite, havia sempre um penico embaixo da cama do casal.

    Água encanada e energia elétrica eram luxos dos quais não dispunham. A água utilizada para beber, cozinhar, tomar banho e lavar roupas e pratos era comprada num armazém do bairro, a 300 metros de distância. Era a própria Creuza quem carregava os latões de 20 litros do local até sua casa, três vezes por semana. Com o dinheiro sempre curto, a água tinha de ser utilizada com muita parcimônia. Banho, só em dias alternados. O líquido que lavava as roupas era reaproveitado para limpar os pratos na bacia de alumínio. Um pote de barro, de 50 centímetros de altura, guardava a água que a família bebia e ficava num canto da cozinha, a 1 metro do fogão a lenha. Não chegavam a passar fome, mas a comida era sempre contada. Os pratos de plástico da casa só viam carne vermelha uma ou, em épocas de fartura, duas vezes por semana.

    A vida poderia ser menos dura para Creuza e os quatro filhos, não fosse o fato de seu marido ter outra família. Quando conheceu aquela morena de 14 anos, cintura fina, cabelos lisos e longos e feições delicadas, Joaquim Cardoso – o pai de Marinalva – já era casado e pai de três filhos. Sua primeira mulher, Dulcina, tinha 24 anos – dez a mais do que Creuza. Joaquim estava com 25 e tinha fama de conquistador. Com 1,84 metro de altura, cabelo preto, bigode farto e nariz afilado – sinais da ascendência portuguesa –, chamava a atenção das moças de Campina Grande, que não estavam acostumadas a ver um homem tão alto por aquelas bandas. Creuza foi uma delas. Com apenas 1,55 metro de altura, ela se encantou por Joaquim à primeira vista. Ele, por sua vez, nunca escondeu que tinha outra família. E a menina, apaixonada, não parecia se importar muito com isso. Até que engravidou, três meses antes de completar 15 anos.

    O nascimento do bebê trouxe o início da crise entre as duas famílias de Joaquim, que moravam na mesma cidade – à época, Campina Grande tinha pouco mais de 50 mil habitantes. Dulcina, a primeira mulher, não aceitava aquela história. Mas acreditava quando o marido dizia que tinha sido apenas um caso. O tempo mostrou que não era bem assim, com a chegada do segundo filho de Creuza, Íris. Quando Marinalva nasceu, dois anos depois, a situação estava muito mais crítica. Dulcina odiava a segunda esposa do seu marido e só se referia a ela como aquela rapariga. Os conflitos entre as famílias viraram rotina. Dia sim, dia sim, Joaquim precisava administrar o ciúme das duas mulheres e dos seis filhos que tinha até então – três de cada uma. Começou dormindo na casa de Creuza duas vezes por semana. Logo, passou para três. Até que estava ficando todas as noites com a segunda família. Só ia ver Dulcina e os outros filhos durante o dia. A primeira esposa não parava de reclamar. A situação tornou-se insustentável. Foi quando ele decidiu que iria trabalhar no Piauí, na cidade de São Raimundo Nonato, um dos polos de trabalho escravo no Brasil, a 950 quilômetros de Campina Grande. A distância entre as duas famílias poderia arrefecer o clima de disputa.

    Joaquim fora convidado por um homem que apareceu em Campina Grande com promessas de bons salários para cabras dispostos a trabalhar de verdade. Por sua experiência profissional, seria um dos motoristas da fazenda. Ao menos, essa tinha sido a proposta que ouviu do contratante. A viagem seria de caminhão. À época com 3 meses de vida, Marinalva foi no colo da mãe, na boleia do veículo. Joaquim e os outros filhos viajaram na carroceria com outros 30 trabalhadores. A maioria era de agricultores indo para uma cidade distante e desconhecida, onde teriam como chefe um fazendeiro igualmente estranho a todos eles. Muito provavelmente – como Marinalva concluiria quatro décadas mais tarde –, eram peões a caminho de fazendas nas quais seriam submetidos à escravidão. Toda a sua família estava correndo esse risco. Por obra do acaso, não precisaram chegar a São Raimundo Nonato para descobrir.

    Na primeira noite da viagem – que duraria dois dias –, uma vespa entrou no ouvido esquerdo de Marinalva, durante uma parada num posto de combustível. Fizeram de tudo para tirar o inseto. Despejaram água fria no ouvido do bebê, e nada. Água morna também não resolveu. Um frentista chegou a sugerir que derramassem gasolina, mas a mãe logo se adiantou em gritar que não permitiria uma maluquice dessas por nada neste mundo. Tapinhas no ouvido direito, em sentido contrário, tampouco fizeram a vespa sair. E a menina não parava de chorar, agonizando. Foi tão grande o alvoroço, que a família resolveu retornar a Campina Grande. Embarcaram num ônibus que parou no posto algumas horas depois. No fim da tarde do dia seguinte, já estavam todos em casa novamente. Joaquim desistira de ir embora de Campina Grande, independentemente dos conflitos familiares que tivesse de enfrentar.

    O passar dos anos complicaria ainda mais a situação. Com a chegada da quarta criança de Creuza – Marileide nasceu quando Marinalva tinha 3 anos – e o crescimento dos filhos de Dulcina, a disputa entre as duas famílias se intensificou. Motivos não faltavam para tanto. Até os nomes de alguns dos filhos de Joaquim com as mulheres davam espaço a desavenças. Com Creuza, ele tinha Marinalva e Marileide. Com Dulcina, Marinaldo e Marilene. E ainda havia o fato de Dulcina ter dado à luz um menino – Estévão –, apenas dois meses após o nascimento de Marinalva. Seria curto, porém, o tempo que a menina passaria nesse confuso universo. Aos 3 anos, ela ficou doente, infestada de lombrigas. Sem saneamento básico e água encanada no bairro, várias crianças sofriam do mesmo mal. Inclusive seus irmãos. O caso de Marinalva, no entanto, era muito mais grave.

    Além da barriga grande e dura, a garota vivia com febre e estava anêmica. O pior de tudo acontecia quando ela defecava. Devido à enorme quantidade de lombrigas, Marinalva fazia tanta força, que partes do seu intestino saíam pelo ânus. Nesses momentos, o pânico era geral. A menina chorava e urrava de dor. Seus pais e irmãos não sabiam o que fazer. Intuitivamente, a mãe agia exatamente de acordo com o que os especialistas recomendam em casos assim: com muito cuidado, recolocava o intestino da filha para dentro. Os dias passavam e Marinalva não melhorava. Joaquim achou por bem mandá-la para a casa da sua irmã mais velha, Otília, que morava em Caicó, no Rio Grande do Norte, a 220 quilômetros de distância, e tinha condições financeiras para oferecer um bom tratamento médico à enferma. Creuza detestou a ideia. Mas foi convencida pelo marido de que seria melhor para a filha. Ele estava certo.

    Em Caicó, Marinalva não apenas ficou curada das lombrigas, como passou a ter uma vida infinitamente melhor do que a que seus irmãos levavam em Campina Grande. As diferenças entre aqueles dois mundos eram tantas e tão grandes, que, mesmo com apenas 3 anos, ela conseguiu memorizar tudo o que aconteceu nos seus primeiros dias na casa da tia Otília. Antes de ser levada ao médico que a examinaria para tratá-la das lombrigas, foi banhada pela tia. Água em abundância. Sentada numa bacia de alumínio, ela observava, deslumbrada, aquele aguaceiro jorrando por dezenas de orifícios de um objeto branco e redondo que jamais vira. Cuidadosa, Otília não permitia que a água do chuveiro caísse diretamente na menina. Ela usava uma caneca de plástico para tirar a água do balde e despejava, lentamente, sobre a cabeça de Marinalva. E assim, tia e sobrinha passaram mais de 30 minutos se divertindo no banheiro. Mesmo ainda um pouco assustada com aquela mulher estranha, a criança estava adorando passar tanto tempo tomando banho, sentindo a água fria espantar o calorão de Caicó.

    De banho tomado, perfumada e usando o vestido novo que ganhara de Otília, foi levada ao médico. O homem de branco não demorou mais do que 15 minutos para confirmar que a menina sofria de Ascaris lumbricoides. Seguiram para a farmácia, onde comprariam o remédio receitado pelo doutor. Otília aproveitou para furar a orelha da sobrinha. Marinalva chorava e gritava de dor. Mas ficou feliz ao ver o brinco de ouro que ganhara da tia: uma bolinha dourada, pouco menor do que uma ervilha. O vestido que usou para ir ao médico e o par de brincos foram os primeiros presentes que ganhou na vida. Devidamente medicada e morando numa casa com água encanada e saneamento básico, ela logo se livrou das lombrigas. Em menos de um mês, estava curada. Era a hora de voltar para a casa dos pais, em Campina Grande. De acordo com o que Joaquim combinara com Otília, Marinalva só ficaria em Caicó até estar totalmente saudável. Não foi o que aconteceu.

    Com o passar do tempo, tia e sobrinha se afeiçoavam cada vez mais uma à outra. E o pai parecia acomodado com aquela situação. Era menos uma boca para alimentar, menos um problema para

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