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Um direito do trabalho todo seu
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E-book432 páginas5 horas

Um direito do trabalho todo seu

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Sobre este e-book

O título deste livro é inspiração e homenagem à Virginia Wolff­ e, em especial, a sua obra "Um teto todo seu". O livro de Virginia é uma coletânea de palestras suas proferidas em Universidades norte-amaricanas com reflexões sobre a condição social da mulher e a sua influência na produção literária feminina. Virginia Wolff relaciona a posição atribuída às mulheres à sua dificuldade e aos obstáculos para sua livre expressão, sobretudo a expressão livre de seu pensamento (um pensamento sem amarras, sujeições ou sombras). A autora incentiva as mulheres a escrever e publicar obras de ficção como uma importante estratégia de autonomia e empoderamento.
O Coletivo de Mulheres Advogadas do Direito do Trabalho iniciou o projeto de mulheres publicam artigos científicos em 2020 com o lançamento do livro O direito do trabalho em tempos de cólera. Um Direito do Trabalho Todo Seu é o segundo livro de muitos que ainda pretendemos publicar com artigos escritos integralmente por mulheres advogadas do mundo do trabalho.
"As mulheres têm servido há séculos como espelhos, com poderes mágicos e deliciosos de refletir a figura do homem com o dobro do tamanho natural. Sem esse poder, provavelmente, a terra ainda seria pântanos e selvas. As glórias de todas as nossas guerras seriam desconhecidas." (Virgínia Wolff)
IdiomaPortuguês
Data de lançamento27 de out. de 2021
ISBN9786586030785
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    Um direito do trabalho todo seu - Canal 6 Editora

    AS VOZES QUE TRANSFORMAM A REALIDADE

    Fernanda Caldas Giorgi¹

    No final da década de 1920, a propósito de duas palestras ministradas em faculdades inglesas exclusivas para mulheres, Virginia Woolf escreve ensaio chamado Um teto todo seu. O mote das conferências e, por consequência, do livro, é as mulheres e a ficção. A partir dessa provocação, a escritora escolhe refletir sobre o retrato das mulheres na ficção masculina, a literatura escrita por elas mesmas e as consequências do papel social que lhes é imposto e naturalizado. Ela utiliza de lirismo, ironia e até mesmo de fantasia para descrever a milenar desigualdade que caracteriza o patriarcado. E encerra seu texto exortando as interlocutoras a cultivar a liberdade e a coragem de escrever exatamente o que pensam porque, assim, favoreceriam a arte da ficção e o mundo em geral.

    O ensaio tornou-se um ícone da crítica feminista ao mostrar como os registros históricos são enviesados; como a mulher foi subjugada, encerrada no espaço doméstico e silenciada; como as oportunidades de estudo e de vida foram negadas a quem estava obrigada a deixar as bonecas para casar-se e reproduzir. Quase um século depois, essa descrição é cruelmente conhecida. A violência doméstica e familiar continua a ser um problema estrutural e, no Brasil, a taxa de feminicídio nos coloca entre os cinco países que mais matam mulheres². A dificuldade para conseguir trabalho, ainda que precário, persiste. A defasagem na remuneração também. Os espaços de poder se mantêm restritos, inclusive no movimento sindical, e, por isso, a representatividade prossegue baixa. Esse quadro recrudesce com o recorte de raça.

    Se quiséssemos, por um momento, esquecer o quão distantes estamos do sonho de igualdade para pensar apenas nos avanços sociais acumulados até 2021, seríamos forçadas a ponderar os impactos do projeto político executado pelo atual governo brasileiro e da pandemia do novo coronavírus. É verdade que herdamos muitas conquistas, mas elas não são definitivas. Pelo contrário, exigem luta constante para evitar os retrocessos que temos vivenciado. Desmonte das políticas públicas de fomento à igualdade de gênero e de raça. Discurso oficial discriminatório, oscilando entre apologia ao estupro, exaltação do recato e homofobia. Partilha desequilibrada das responsabilidades familiares, o que foi intensificado pelo distanciamento social necessário ao combate da propagação da Covid-19 – por exemplo, enquanto a produção científica das mulheres caiu a dos homens aumentou³.

    O pêndulo da memória, que oscila entre as assimetrias que teimam e nossas conquistas, confirma a pertinência da tese central do ensaio de Virginia Woolf. Para escrever ficção, as mulheres precisam de dinheiro e um teto todo seu. Ao longo ‘do livro, a romancista vai muito além da ficção e até mesmo da questão de gênero, afirmando que, para produzir, as pessoas precisam de condições materiais como saúde, tempo para contemplar, autonomia para pensar, liberdade para discordar, confiança para falar e reconhecimento. Sem condições e oportunidades, ou as obras-primas não nascem ou são invisibilizadas. Há citações lapidares nesse livro, que me permito compartilhar⁴:

    As peças de Shakespeare, por exemplo, parecem completamente suspensas quase que por si sós. Mas quando a teia é puxada meio de lado, enganchada pela borda, rasgada na metade, é que se lembra que elas não são tecidas em pleno ar por criaturas incorpóreas; essas teias são o resultado do sofrimento de seres humanos e estão inteiramente presas a coisas materiais como saúde, dinheiro e a casa onde se mora.

    (...) é impensável que qualquer mulher nos dias de Shakespeare tivesse tido o dom de Shakespeare. Porque um gênio como o de Shakespeare não surgia entre as pessoas trabalhadoras, sem educação formal, servis. Não nascia na Inglaterra entre os saxões e os bretões. Não surge hoje entre as classes trabalhadoras. Como, então, poderia surgir entre mulheres cujo trabalho começava, de acordo com o professor Trevelyan, pouco antes de deixarem o berço, e ao qual eram impelidas pelos pais e obrigadas pelo poder da lei e dos bons costumes? Ainda assim, gênios desse tipo hão de ter existido entre as mulheres, da mesma forma que hão de ter existido entre as classes trabalhadoras. Vez ou outra uma Emily Brontë ou um Robert Burns se inflama e comprova essa presença. Mas com certeza nunca foi colocada no papel. Quanto, porém, lemos sobre o afogamento de uma bruxa, sobre uma mulher possuída por demônios, sobre uma feiticeira que vendia ervas ou mesmo sobre um homem muito notável e sua mãe, então acho que estamos diante de uma romancista perdida, uma poeta subjugada, uma Jane Austen muda e inglória, uma Emily Brontë que esmagou o cérebro em um pântano ou que vivia vagando pelas ruas, enlouquecida pela tortura que seu dom lhe impunha. Na verdade, arrisco-me a dizer que Anônimo, que escreveu tantos poemas sem cantá-los, com frequência era uma mulher.

    Inspiradas nesse clássico, o Coletivo de Mulheres Advogadas do Direito do Trabalho reúne-se, uma vez mais, para publicar artigos científicos elaborados por mulheres que se dedicam à advocacia. E, assim, honram duplamente o chamado de Virginia Woolf. De um lado, escrevem para dar vida e voz às mulheres que nos antecederam, pavimentando um mundo melhor. De outro, publicam textos sobre o Direito do Trabalho como instrumento de promoção de dignidade, o que está intimamente atrelado à geração de condições materiais para que toda a humanidade seja livre e respeitada para criar.

    O Coletivo, o projeto de escrever no feminino e este livro são, portanto, a materialização de uma luta milenar feita no plural e na crença de que é possível transformar a realidade, porque, afinal, essa é uma construção como outra qualquer⁵.

    Recebam essa obra como um convite para existir e resistir. Afinal, a verdade é que nos reconhecer como seres humanos significa saber que sempre haverá novas lutas e desafios, mas pelo menos avançamos⁶.


    1 Advogada, sócia da LBS Advogados e diretora do Instituto Lavoro. Especialista em Direitos Humanos do Trabalho e Direito Transnacional do Trabalho pela Universidad de Castilla-La Mancha.

    2 Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil (Flacso/OPAS-OMS/SPM, 2015)

    3 A propósito, vejam: Estudo desenvolvido pelo grupo Parent in Science sobre os efeitos da pandemia na produção científica das mulheres brasileiras; resumo informativo divulgado pela ONU Mulheres sobre os impactos e as implicações da pandemia para mulheres e carta manifesto do Coletivo de Mulheres da Fiocruz (páginas acessadas em 15/06/2021).

    4 Trechos compilados a partir de um exemplar do livro Um teto todo seu, de Virginia Woolf, publicado pela editora Tordesilhas em 2014, 1ª edição.

    5 Citação extraída do livro O país das mulheres, de autoria da escritora nicaraguense Gioconda Belli. Obra ficcional publicada em português em 2011, que versa sobre uma utopia feminista.

    6 Idem.

    A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NÃO PODE SER CHANTAGEADA

    Isabel Cristina de Medeiros Tormes¹

    Resumo: O capítulo objetiva contextualizar, a partir da obra autobiográfica de Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo, por meio da qual a autora escancara suas vicissitudes, agonias e aflições, a negação de direitos humanos e sociais, com impacto ainda mais violento na vida de pretas e pretos pobres. Os relatos estampados no livro têm início em julho do ano de 1955, chegando a janeiro de 1960. Decorridos mais de sessenta anos, o retrato pintado pela catadora de lixo em recicladas folhas de papel se faz contemporâneo, propício e convidativo à reflexão, se realmente no Brasil existe um Estado Democrático de Direito, ao qual se incorporam os direitos insculpidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e se há efetivamente o princípio da dignidade da pessoa humana, de modo a garantir os valores sociais previstos na Constituição.

    Palavras-chaves: Quarto de Despejo. Direitos Fundamentais. Desigualdades Sociais. Declaração Universal Dos Direitos Humanos. Estado Democrático de Direito.

    1. INTRODUÇÃO

    No livro Quarto de Despejo, a autora, catadora de restos descartados em lixos, habitante da favela Canindé, na cidade de São Paulo, escreve, de meados de julho de 1955 ao início de 1960, o seu cotidiano pela configuração de um diário.

    Seus escritos e relatos, no contexto histórico e político do país, têm início no governo de Getúlio Vargas (1951 a 1954) e termina no de Juscelino Kubitschek (1956 a 1961) – o governo do estado de São Paulo na época encontrava-se nas mãos de Adhemar de Barros.

    Essas três figuras políticas, em várias passagens do livro, são mencionadas por Carolina de Jesus, que vivia num ambiente de segregação socioespacial e racial, sobretudo, desumano, pois absolutamente adverso e hostil.

    Carolina de Jesus, por meio de seu texto, contundente e legítimo, é capaz de construir o desenho fiel (bom que se diga que o faz pelo contexto e visão de quem é marginalizada), a realidade social, econômica e política do país.

    Sua obra é uma verdadeira reconstrução histórica da década de 1950, anos marcados por várias transformações sociais, econômicas e políticas, cuja compreensão é importante passo para a apreensão da própria biografia da sociedade brasileira.

    Evidentemente, nada substitui a experiência vivida, no entanto, da leitura da obra de Carolina de Jesus, é possível constatar o quanto muito pouco mudou.

    Carolina de Jesus consegue expressar em sua obra os dilemas de uma sociedade excludente, desigual conflituosa e, paradoxalmente, hodierna. A obra apresenta, sem dúvida, uma visão crítica da realidade da mulher preta e pobre.

    É a partir das mazelas retratadas nessa obra atemporal, que se pretende discutir o papel de um Estado Democrático de Direito. Conquanto escrito na década de 50, é manifesta a contemporaneidade de Quarto de Despejo, diante de tantas Carolinas de Jesus, que atualmente sofrem e resistem às tiranias de gênero, raça e classe social.

    Tudo isso, nada obstante a existência de garantias previstas na Constituição Federal de 1988, notadamente, os valores sociais do trabalho, a dignidade da pessoa humana, a melhoria das condições sociais do trabalhador e a função social da propriedade (artigos 1º, III e IV, 7º, caput, e 170, III e VIII); a Convenção 98, que entrou em vigor no plano internacional em 1951 e, no Brasil, em 1953 (Decreto n. 33.196, de 29.6.53); e, soberanamente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

    Nesse contexto de tantas ameaças e vilipêndios aos direitos fundamentais garantidos especialmente na Carta Magna, a veracidade de uma suposta democracia nunca fez tanto sentido em ser radicalmente e ferozmente discutida, e os relatos de Carolina nunca foram tão atuais.

    2. CONTEXTO HISTÓRICO E POLÍTICO

    O panorama político do país dos anos 50 é delineado por Carolina de Jesus em seu diário, fazendo severas censuras aos políticos e governantes do país. E não o faz por acaso. Em apertada síntese, Getúlio Vargas, citado na obra, inicialmente, foi chefe do governo provisório, depois, em 1934, presidente eleito indiretamente².

    Por último, a partir de 1937, tendo sido deposto pelos militares em 1945, novamente foi eleito presidente em 1950, desta feita pelo voto direto, tendo cometido suicídio em 1954³.

    Durante sua governança, promoveu a industrialização do país ao passo que, com objetivo de obter o apoio político dos trabalhadores, o fez materializando seu plano, com a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943⁴.

    Nada obstante, o segundo governo de Vargas foi um período adverso e de grande crise política, mercê da rígida oposição ao seu projeto político-econômico, pela alta da inflação e do custo de vida, marcado por greves e manifestações⁵.

    Vale lembrar que um dos temas do projeto de Vargas foi a nacionalização dos direitos de exploração do petróleo, o que levou à criação da Petrobras. Vale lembrar, também, que Vargas foi acusado de comunista (o que em verdade nunca foi) por ter nomeado João Goulart para o Ministério do Trabalho⁶.

    Outro político, citado no contexto do diário de Carolina de Jesus, é Juscelino Kubitschek. Eleito presidente do Brasil em 1955, seu governo foi marcado por seu Plano de Metas, com o slogan 50 anos em 5, por meio de um projeto intenso de modernização econômica e industrialização, incluindo a instalação de indústrias estrangeiras no país, o que colaborou, em certa medida, para a geração de empregos⁷.

    Por outro lado, os altos gastos de Juscelino contribuíram para o endividamento do país e alta da inflação. Outro ponto extremamente negativo foi a ausência de investimentos em educação e produção de alimentos, o que criou graves problemas que estouraram na década de 60⁸.

    Sim, pois, a par de um período de otimismo associado a grandes feitos em matéria de desenvolvimento econômico do país, certo é que não atingia a grande massa da população, como muito bem colocado em Quarto de Despejo e restou demonstrado nas eleições em outubro de 1960⁹.

    Baseado em um discurso moralista, que varreria a política brasileira de toda a imoralidade, Jânio Quadros foi eleito presidente, cujo governo foi eivado de medidas devastadoras, marcado por atritos com o Congresso Nacional, inclusive, com seus próprios pares de partido¹⁰.

    Além disso, sua governança foi caracterizada por aumento no custo de vida e medidas típicas de um moralismo pueril. Importante relevar que sua política externa, denominada Política Externa Independente, na qual o país realinhava suas relações com os Estados Unidos e abria o caminho para negociações diplomáticas com a União Soviética, acabou por desagradar fortemente aos seus aliados conservadores, o que acabou por dar ensejo à sua renúncia à presidência ainda em 1961¹¹.

    Ainda, sob o contexto histórico, importante destacar que de 1945 a 1964, na chamada Quarta República, tem-se a Constituição de 1946, que foi elaborada e promulgada no governo do presidente Eurico Gaspar Dutra e trouxe consigo alguns poucos avanços em questões democráticas para o Brasil. Estagnada, entretanto, em outras questões sociais e trabalhistas, como por exemplo, exclusão dos analfabetos do direito ao voto e dos trabalhadores rurais das esparsas conquistas introduzidas em prol da classe trabalhadora urbana.¹²

    3. MULHER PRETA, POBRE, MÃE DE TRÊS FILHOS, SOLTEIRA, MORADORA DA FAVELA CANINDÉ.

    Carolina Maria de Jesus foi criada num espaço de espoliação urbana de pessoas pretas e pobres, que se manifesta gerando o processo de favelização.¹³ Nesse cenário, ela relata que a democracia está perdendo adeptos e o País está enfraquecendo. E tudo que está fraco, morre um dia¹⁴

    A trajetória de Carolina de Jesus, até sua morte, transcorrendo por relações de gênero, etnia e condição social, foi absolutamente singular. Segundo José Carlos Meihy e Robert Levine, traduziu-se em: [...] luta cotidiana de uma mulher de cor, pobre e desprovida de favores do Estado, de organismos sociais, de instituições e até de amigos.¹⁵

    Carolina de Jesus fala por todas e todos, pelos sobreviventes, conquanto jogados à própria sorte, ao desenhar o Quarto de Despejo como uma referência metafórica que traduz a posição da favela e de seus moradores em relação à cidade, revela a miséria do povo, o descaso e negligência dos agentes públicos com os que vivem às margens da sociedade, em situação de verdadeiro abandono.

    Contudo, como explica Fernanda Rodrigues de Miranda:

    A uma mulher negra, pobre e semialfabetizada não fora dado o direito ao discurso literário, mas tão somente o da legitimidade da voz para denunciar um estado de coisas que, de resto, incomodava a muitos na época dos anos dourados: a proliferação das favelas na cidade onde o capitalismo apresentava maior grau de desenvolvimento do país.¹⁶

    É nesse modelo que a história de vida de Carolina de Jesus está inserida no contexto social e político de um período mal alcunhado de Anos Dourados. Paradoxalmente, fome, miséria, doenças, ausência de moradia digna (enfim, a falta de insumos básicos à existência humana), estão presentes em toda a obra e são reveladores da existência cotidiana de uma mulher preta e pobre e habitante da favela, como se extrai dos trechos abaixo:

    [...] no dia 24 de julho de 1958 - Como é horrível levantar de manhã e não ter nada para comer. Pensei até em suicidar. Eu suicidando-me é por deficiência de alimentação no estômago. E por infelicidade eu amanheci com fome.¹⁷

    No dia 20 de julho de 1958 - "Era 1 hora quando eu ia recomeçar a escrever. O senhor Alexandre começou a bater na sua esposa. A Dona Rosa interviu. Ele dava pontapé nos filhos.¹⁸

    [...] No dia 22 de julho de 1958 - Saí pensando na minha vida infausta. Já faz duas semanas que não lavo roupa por falta de sabão. As camas estão sujas que até dá nojo. [...] Creio que devo andar com um cartaz nas costas: se estou suja é porque não tenho sabão [...]¹⁹

    [...] No dia 25 de agosto de 1958 - não havia papéis nas ruas porque apareceu um homem para catar.²⁰

    Essas alusões constantes em toda narrativa acabam por escancarar o racismo estrutural, o patriarcado, as desigualdades sociais, opressões e violências de gênero, raça e classe social e a ausência completa de agenda política voltada para essa realidade.

    O trabalho invisível, precário e absolutamente informal e ausência de oportunidade de trabalho revelam que a desigualdade de raça e classe criam diferenças em qualidade de vida entre as pessoas, particularmente entre as mulheres, dependendo da cor da sua pele e do cenário em que vivem, limitadas à exclusão do acesso a bens e oportunidades sociais, em termos educacionais e profissionais²¹

    Da experiência vivida por Carolina de Jesus, percebe-se que a discriminação racial e, por conseguinte, a intolerância dela decorrente, revela-se de maneira distinta para mulheres (mulheres e meninas) e, seguramente, é um dos vetores à degradação de sua condição de vida, à pobreza, à violência, às mais diversas formas de discriminação e à restrição ou negação de seus direitos humanos.

    Quando o tema se volta às vítimas de violações de direitos humanos, as mulheres pretas, ainda, permanecem no podium, ocupando o primeiro lugar.

    4. UM SALTO: DE 1960 A 2021 – O BRASIL EM 2021 E A CULTURA DA VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS.

    Constam na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) diversos artigos que tratam da dignidade humana desde o trabalho ao lazer, perpassando por todas as esferas de desenvolvimento do indivíduo.

    Trata-se de um documento que surge em 1948 como um compromisso de impedir que a barbárie viesse a triunfar outra vez, como uma reação global às odiosidades que marcaram as duas grandes guerras mundiais.

    Nas palavras de Martinez Quinteiro ela liberta todos os povos de governos arbitrários ao converter em direito positivo, de modo mais abrangente e sistêmico, os direitos da humanidade. Não à toa, inicia-se com a contundente afirmação que todos os seres humanos são livres e iguais em dignidade e direitos.

    Portanto, mesmo diante das intrínsecas diversidades políticas, sociais, econômicas e culturais entre povos e nações, há uma ligação entre homens e mulheres que não pode jamais ser rompida por qualquer outra norma legal: a dignidade da pessoa humana, que se traduz em conceito ético e universal. Assim é que a proteção da dignidade da pessoa humana é a maior conquista social e jurídica da humanidade.

    Fabio Konder Comparato define que a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos podemos ter a certeza histórica de que a humanidade – toda a humanidade-partilha alguns valores comuns, dentre os quais se destaca a dignidade na pessoa humana como razão justificadora dos direitos humanos²²

    Nessa toada, o princípio da dignidade da pessoa humana (art.1º, III, CF/88) determina, portanto, o respeito nuclear dos direitos à vida, à integridade física ou psíquica, à liberdade, à autonomia, à igualdade e a garantia a um mínimo de condições materiais, de modo a não dominar ou subjugar a pessoa humana.²³

    Na mesma esteira, no campo interno, está a Constituição Federal do Brasil de 1988, ao ditar que a dignidade da pessoa humana é princípio fundamental da República (artigo 1º, III) e que a ordem econômica tem por fim assegurar a todos existência digna segundo os ditames da justiça social (artigo 170).

    Tanto é que Ingo Sarlet conceitua dignidade da pessoa humana como:

    [...] a qualidade intrínseca e distinta reconhecida em qualquer ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. ²⁴

    Nesse passo, a dignidade da pessoa humana é fonte que legitima a intervenção do Estado de modo a dar freio à autonomia privada que regula os negócios jurídicos.

    Além disso, a DUDH acaba por positivar o direito ao trabalho fundamentalmente em condições justas e favoráveis, à proteção contra o desemprego, à remuneração igual, justa e satisfatória, à liberdade sindical, a horas de trabalho que permitam repouso, lazer e a férias remuneradas periódicas.

    Sob a mesma ótica, o Artigo 7º, da Constituição Federal, assegura direitos sociais relacionados ao trabalho em trinta e quatro incisos e, em seu caput, à melhoria das condições sociais dos trabalhadores.

    Entretanto, não obstante não possam os direitos humanos ficar à margem de um Estado Democrático de Direito, [...]a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Constituição Federal do Brasil não têm a capacidade real de estabelecer que o estado no capitalismo atenda de maneira mínima aos interesses de toda a população²⁵.

    Na perspectiva do binômio riqueza/pobreza, parte da classe burguesa se apropria do aparelho estatal e o restante, fora desse bloco histórico, fica sem direitos. Isso porque a economia política não assegura a toda a população o acesso formal a direitos estabelecidos nos pactos internacionais e nacional.²⁶

    Tudo levando a crer que a democracia não é mais suficiente para assegurar vida digna em sociedade, a final de contas, todos os governantes estão sujeitos ao resultado final do sufrágio universal e, nessa toada, à vontade do povo.

    E transportando para a realidade de 2021, o que se denota são inúmeras práticas reveladoras da aversão em relação aos direitos humanos por parte da atual governança, marcada por uma política de negacionismo da ciência, da sociologia, da história, o que traz à memória tempos sombrios.

    Aliás, a tortura também é negada, ao passo que sua vedação configura um dos mais basilares campos de aplicação da dignidade da pessoa humana. Outrossim, tentativas de criminalização dos movimentos sociais, ataques ao pensamento crítico e reflexivo configuram-se em formas de negação dos princípios universais pelo atual governo, a despeito daquilo que é demonstrado no artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos: o direito à liberdade.

    O discurso governamental reproduz constantemente uma midiática ideologia de que os princípios fundamentais inscritos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Constituição Federal, como um todo, referendam a existência de um ente macabro e global denominado esquerda vermelha, que deve ser combatida por meio de práticas beligerantes.

    No entanto, foram as formas de articulação de partidos políticos aliada à participação popular do fim da década de 70 e meados da década de 80 que fizeram com que os movimentos sociais chegassem à assembleia constituinte levando às conquistas advindas da Constituição de 1988, a Constituição Cidadã.

    O regime ditatorial militar, que vigorou no Brasil durante vinte anos, começava a apontar sinais de esgotamento, em um processo que culminou com a realização da Assembleia Nacional Constituinte, nos anos de 1987 e 1988 e resultou na atual Constituição Federal.

    Apesar das resistências, o anseio social por ruptura com a ordem vigente projetou-se no processo constituinte mais aberto e democrático da trajetória constitucional brasileira, culminando com o texto cidadão e com ele a conquista de direitos fundamentais, referendados nos princípios da Declaração dos Direitos Humanos.

    Entretanto, decorridas mais de seis décadas da escrita-resistência de Quarto de Despejo, a contemporaneidade das condições de pobreza, fome e precarização do trabalho, retratadas no cotidiano da autora, leva a uma única certeza, algo concreto deve ser feito sob a perspectiva dos direitos humanos. Ao que parece a fraternidade é um valor raro e em franca extinção. O país segue experimentando, em clara evolução, uma violenta crise humanitária, com milhões de vidas ceifadas. E, ao que tudo indica, o quadro pode ainda piorar.

    Trata-se de seres humanos em extremado estado de vulnerabilidade, num cenário onde muitos se perguntam: O que se pode esperar? Há um remédio para toda essa tragédia? Medidas outras, diversas das praticadas pela atual governança, poderiam ter sido tomadas de modo a impedir ou, ao menos minimizar, o número de vitimados e de vidas humanas perdidas pela Covid-19?

    Os brasileiros vivem sob a tutela de um governo que, ao que parece, segue em diretriz oposta à lógica social e política preservadora da dignidade da pessoa humana, em verdadeira ameaça aos direitos fundamentais à vida. Segundo dados da Fundação Getúlio Vargas, em fevereiro de 2021, o Brasil contava com 27 milhões de cidadãs e cidadãos sobrevivendo abaixo da linha da pobreza.²⁷

    O levantamento feito, também aponta que muitas famílias tentam sobreviver com R$ 246,00 (US$ 43,95) por mês.²⁸ Elevadíssimos índices de desemprego e carência total de políticas públicas obstaram o acesso à renda, conduzindo ao mais crítico cenário da pobreza no Brasil nos últimos tempos.

    Mesmo com recentes políticas denominadas de auxílio emergencial, em razão da crise sanitária e econômica causada pelo novo coronavírus, são elas, sem dúvida, insuficientes a fazer frente às necessidades básicas da população mais vulnerável.

    Nada obstante o efeito devastador da Pandemia da COVID-19, com muito mais impacto sobre os mais suscetíveis, agravando ainda mais a condição humana da sociedade, certo é que não se pode atribuir unicamente a ela a precariedade em que vive, melhor dizendo, sobrevive, a maioria da população do país.

    Durante a 108ª Conferência em Genebra, na Suíça, realizada pela OIT (Organização Internacional do Trabalho), o Brasil foi incluído pela entidade na chamada lista suja preliminar, ao lado de 39 países suspeitos, por denúncia de violação das convenções internacionais²⁹.

    A inclusão se deu em decorrência da desobediência à Convenção 98, que trata do Direito de Sindicalização e de Negociação Coletiva, aprovada no ano de 1949, que entrou em vigor no plano internacional em 1951 e, no Brasil, em 1953 (Decreto n. 33.196, de 29.6.53).

    Tem ela como objeto principal a salvaguarda de direitos sindicais e suas organizações, a proteção adequada contra atos de discriminação destinados a atacar a liberdade sindical, aliado a outras práticas discriminatórias em razão de sua associação ou participação no sindicato e, ainda, contra dispensa arbitrária.

    E exatamente por conta do universo de aplicação da Convenção 98, foi que a OIT, já na sua 108ª Reunião, realizada no ano de 2019, entendeu que a Lei nº 13.467 de 2017, mal denominada Reforma Trabalhista, segue em desconformidade com seu principal objetivo ao permitir, por exemplo, por meio do parágrafo único, do artigo 444, a celebração de acordos individuais de trabalho de forma contrária e prejudicial ao disposto em normas coletivas, permitindo que o negociado sobre o legislado valha em todos os

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