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O Anjo da Lágrima
O Anjo da Lágrima
O Anjo da Lágrima
E-book291 páginas4 horas

O Anjo da Lágrima

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Sobre este e-book

Conta a lenda que um pequeno anjo, cansado da pasmaceira celestial, quis conhecer mundo. Veio, viu, e não gostou. Bateu asas e, pouco depois, estava às portas do céu. Deus, porém, impôs uma condição:
⸻ Só reentrarás no paraíso se da Terra me trouxeres uma lágrima pura.
E o anjo voltou à Terra. 
Uma lenda feita romance.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento31 de jan. de 2023
ISBN9791222076737
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    O Anjo da Lágrima - M. Branco de Matos

    I.

    ARIEL

    1.

    Há sete dias e sete noites que Ariel não concilia o sono. A nuvem em que se deita parece-lhe mal acolchetada, talvez não seja do mesmo algodão em rama de que são feitas as nuvens dos outros anjos, parece feita da estopa que sai da espadela dos linhos ou do folhelho dos milheirais barbudos do alto Minho: ocasiões havia em que esquentava, ou era ele que sentia que esquentava. Outras vezes parecia que esfriava e as asas do pequeno espírito, que não eram nem tão longas como as dos mais crescidos nem tão espessas como as asas dos adultos, deixavam-no a descoberto e sem agasalho desde a cintura. Umas vezes era como se os fiapos soltos do bragal noturno lhe fizessem cócegas, outras vezes parecia que a sua nuvem se tornava áspera e rugosa, muito incómoda até, se tivermos em conta tratar-se de um anjo de tenra idade, sensibilidade extremamente apurada permeável às rugosidades dos fiapos incómodos cuja aspereza destoava, obviamente, das amenidades celestes. Perturba-lhe o sono aquela história que há dias lhe contaram: o caso do demónio que apareceu em forma de sapo num recanto do paraíso. Será possível que o maligno tivesse entrado no paraíso? Efabulou a noite inteira, e teve medo. As insónias são nefastas por natureza. No entanto, poderão trazer algum proveito a quem as saiba aproveitar, a quem por exemplo seja filósofo ou tenha o dom da veia artística. Dizem que as musas noturnas propiciam aos insones um entretenimento saudável em momentos de profícua inspiração, ou elucubrações fantásticas em madrugadas plenas de congeminações criativas. De muita utilidade poderão ser tais noites mal dormidas a quem for dotado de, digamos a expressão, três «coisas que juntas se acham raramente» – tríade basilar que subjaz a toda a inspiração filosófica e à inventiva ou manifestação artística, a saber: imaginação capaz de espevitar e florear o talento criativo, técnica apurada imprescindível ao saber-fazer, e o bom gosto pelo qual o que é bom se distingue do que é mau e ambos se diferenciam do medíocre que, em arte e em quase tudo, é o pior resultado.

    No caso do pequeno anjo Ariel, porém, nada disto acontece. Há três dias que as noites lhe são penosas. Sem ponto de referência a que se possa arrimar porque nasceu e sempre viveu no paraíso, lugar único e de superior qualidade, incomparavelmente perfeito, mas onde não há escola que ensine técnicas de bem moldar a matéria-prima a que recorre o artista no ato criativo. Ariel é anjo, nada mais. E, se falarmos da livre imaginação, ainda que este de quem aqui falamos tenha a fantasia à solta, como de facto tem, e mais espevitada até do que é habitual naquela sua idade e condição, Ariel, adolescente e sempre submisso, não poderá aproveitar o silêncio dessas noites brancas para lucubrar, inventar ou produzir seja o que for. Acontece com este anjo o que naturalmente acontece ao encarcerado, ao donato de convento ou a qualquer escolar de internato: sujeito como estes à vigilância apertada e à disciplina dos regulamentos que os comprimem e lhes amputam ou tosquiam as asas da imaginação, confinado aos limites naturais do espaço em que vive e sempre viveu, incapaz se mostra de, fora de si mesmo, criar seja o que for.

    Por tudo quanto se acaba de congeminar acerca das aborrecidas insónias que o anjo Ariel suporta há várias noites, incapaz de invenção ou lúdica recreação, inútil se reconhece e inábil em tudo, nomeadamente em questões de composição de uma obra de arte: uma peça de música, por exemplo, cuja apreciação crítica não viesse a diminuir o autor que a concebeu nem a envergonhar o seu precetor e mestre que, no caso, é o arcanjo Gabriel. Ariel sabe que não poderá esperar de suas noites brancas mais do que incómodo, enfado e saturação. Passa a maior parte do tempo a cismar em coisas ruins, que o perturbam e não o acalmam, o afastam da tranquilidade e serenidade espiritual que em geral se vive no paraíso: ora se imagina atirado ao ar, o que muito o aflige porque se vê em queda sobre um abismo de fogo como aquela história dos anjos maus de que já ouvira falar, muito pela rama embora, e que ele sonhava a seu modo, ora imagina mundos fantásticos para lá daquela sua locanda ou residência que era uma espécie de camarata onde dormiam ele e outros espíritos adolescentes, os anjos mais pequenos, seus companheiros. Esta última noite, porém, sentiu dentro de si uma força estranha, original, quase criminosa: gostaria de saber, por exemplo, que mundos haveria para lá deste habitáculo, como era por dentro o mundo das estrelas e, principalmente, como se comportariam uns seres estranhos feitos de matéria de que um dia lhe falou um anjo mais velho, e que habitavam um mundo utópico completamente diferente daquele que era o seu. O veterano anjo Macabiel dizia poder haver fora dali seres inteligentes, mas sem asas, e Ariel perguntara inocentemente ⸺ Como é possível haver alguém que seja inteligente e não tenha asas? ⸺ E acrescentou: ⸺ E, se o forem, de que lhes serve a inteligência se não podem voar?

    Havia noites em que permanecia cismado na ideia estúpida duma eternidade ociosa e vazia, desengraçada e sem fim. Era isso que lhe provocava um certo desconforto interior – viver nesta monotonia eternamente, sem nada para fazer ou desfazer. De repente, acordava deste cismar ou do sonho que estava a ter e, tão lúcido como se se visse ao espelho, perguntava a si mesmo por que razão teria nascido ele com feitio tão revel, com tantos problemas interiores, tão fora do comum dos anjos do céu.

    Na verdade, Ariel cedo soube que não era um anjo vulgar. Sentia-se diferente dos mais. Além disso, começava a ter consciência de que se ia tornando um espírito cada vez mais crítico. Cismava sobretudo nisto – em que se ocupariam os anjos durante a eternidade? Nunca os vira fazer coisa que se visse. Era o que mais o inquietava. Que fariam durante tanto tempo? E ele, que nada sabia fazer, em que é que ele próprio se ocuparia quando deixasse de brincar ao anjo mentiroso, ao demónio apanhado ou às quatro estrelinhas do céu? Certo é que os anjos habitam a casa de Deus onde, livres de perigos e de fomes, nada falta. Também é verdade que todos os dias Ariel se vai deliciando a ouvir o coro celeste que a todo o momento entoa melodias sublimes como aquelas com que os mais velhos desde sempre louvam o criador. Ele próprio passou a fazer parte do coro dos Pequenos Cantores do Deus. Cantar era alguma coisa, mas era pouco. À sensibilidade deste anjo que propende para a inventiva, sempre repugnou a ideia de ociosidade – um desperdício, aquele permanente farniente do paraíso onde tudo está feito, onde nada há a melhorar porque tudo é perfeito, nada a concertar porque nada se rompe, nada se corrompe nem estraga. Para um espírito jovem como Ariel, viver nessa pasmaceira sem aventuras nem desventuras era uma agonia, um definhamento. Esta cisma era recorrente: ia e voltava, importuna-o sem cessar, e desta vez falou em voz audível.

    ⸺ Como é possível haver alguém que passe a imensa eternidade sem uma invenção ou aventura, sem uma ideia, uma asneira que seja? ⸺ Não disse isto por estas ou outras palavras. O pequeno anjo não as saberia dizer, nem os espíritos comunicam através de sensações, auditivas ou outras. Mas era como se as dissesse quando a noite caía ou quando a insónia lhe acicatava a mente e lhe soltava a imaginação. Depois, caía em si e dizia de si para consigo: «Perfeito é tudo o que Deus criou e tal como Deus criou. Nada se lhe poderá acrescentar porque tudo está completo. Nada se inventa porque não há carências». E tinha razão: o ato criativo é sempre motivado por alguma necessidade. Toda a invenção é fruto duma carência. Nessa noite adormeceu em paz mas ao acordar ouviu uma voz que lhe disse «Tempos virão em que nada possuirá quem nada inventar». O anjo não entendeu porque, neste contexto, falar em tempos que virão é apenas um modo de falar, mera efabulação, nada mais. No paraíso onde toda a gente se rege pelo conceito de eternidade não há sucessão de tempos, nem aparelhos que o meçam ou determinem o estado das coisas: nem ampulhetas de areia nem relógios de água, nem clepsidras nem gnómones como os dos povos primitivos que encontraram a noção do tempo a partir do sol porque dia após dia o vêm nascer, subir e morrer. Mas ali não há nascer nem morrer: a luz é perene e a vida é eterna. Absurdo seria pensar na divisão dos dias em horas, da divisão das horas em minutos, dos minutos em segundos. Sendo o paraíso estância luminosa e intemporal, inútil será pensar em estabelecer uma relação entre passado, presente e futuro pela marcação das sombras sobre a pedra ou pela cronometração dos ponteiros do relógio. Falando-se de eternidade, muito para lá do conceito de anos-luz, para além de perceks e doutras inimagináveis unidades astronómicas para medição do tempo e do espaço, outros serão os parâmetros cronológicos com que nos possamos entender porque tudo aqui se deverá medir em evos – parcelas da eternidade que eternidades são também. Não sabe disto o anjo Ariel, mas há nele uma permanente sombra de insatisfação.

    Se as noites de insónia são longas para quem as sofre, piores serão para quem não tenha aquelas ditas qualidades de que possa resultar a invenção ou, tendo-as, não as empregue a fantasiar, a imaginar por exemplo outros sons, outras cores, outras formas, outros mundos diferentes daquele em que se vive. Aventura fascinante, mas perigosa. Ariel terá muito tempo, tempo desmedido para fantasiar quimeras. Durante as longas horas dessas noites brancas, tempo haverá para tecer a sua teia recordando casos de que ouvira falar – por exemplo, aquela guerra de que por vezes falavam os anjos mais velhos, mas só entre eles, como que à socapa, por meias palavras e por sinais que poucos entendiam. O anjo passou longas horas das grandes noites antigas recordando ou imaginando a guerra civil entre anjos bons e anjos maus, as duas fações da população angélica, em que o resultado fora uma derrota pesada das forças insubmissas e rápido restabelecimento da ordem pública. Resultado: os anjos de Deus permaneceram no céu, onde estavam e, como acontece sempre, os sublevados foram expulsos do paraíso. Falava-se disto muito à socapa, por entre dentes, mormente se à conversa assistiam os mais novos. O pequeno Ariel que isto ouvira, fantasiava à sua maneira essa guerra terrível de que falavam como se tal fosse segredo de Estado. Por vezes, a imaginação incendiava-se sem controlo e o próprio Ariel se transformava em guerreiro armado ao lado do arcanjo Miguel em luta contra os anjos de Lusbel.

    Esta fora a sua sétima noite branca. Ao recapitular palavras ouvidas em farrapos de conversas codificadas, sentiu que algo lhe escapava. A história pareceu-lhe mal contada. Se bem percebera, aquilo teria começado por quase nada, pequena escaramuça entre as altas patentes angélicas em luta por lugares cimeiros: estar mais perto de Deus era a ambição de uns quantos. Uma coisa, porém, lhe pareceu mal explicada. Então o seu espírito crítico veio ao de cima. Por exemplo: não ficou esclarecido se os revoltosos eram maus por sua natural índole maléfica e más tendências genéticas ou se, pelo contrário, passaram a ser maus quando se sublevaram e porque se revoltaram. A sua intuição dizia-lhe que talvez não tivesse sido assim. Sabemos como estas coisas acontecem e como geralmente se processam – questão de precedências, domínio de uns sobre outros, disputa por lugares proeminentes, ciúme, ambição desmedida. Nestas matérias há sempre os atrevidos e os distraídos, depois as coisas agravam-se e, numa deriva insensata, acontece a rutura, segue-se a guerra, vence quem está no poder e tudo volta ao normal. Havia quem dissesse que a coisa tinha sido mais séria: que as patentes superiores pretenderam afastar da linha sucessória o filho do criador e instalar no céu um regime diferente, o que se traduziria, caso vencessem, em dar por finda a monarquia divina, eternamente hereditária, instalar no paraíso a república dos anjos, situação insólita com futuro muito incerto. Diziam outros que os revoltosos estavam era saturados daquela pasmaceira: não seria necessário alterar a ordem nem mudar de regime, queriam apenas inovação, mais dinamismo, bastaria que entrasse uma lufada de ar fresco naquele ambiente bafiento e morno, «imperioso é mesmo acabar com o parasitismo paradisíaco, anacrónico, abnóxio e obnóxio» – palavras textuais de Zéfio. Ariel não entendeu os termos, mas de imediato sentiu uma enorme simpatia pelo lendário arcanjo Zéfio, espírito de grande craveira intelectual, espírito aberto, lúcido ainda e aceradamente crítico, mentor e mestre incontestado das turmas do paraíso.

    2.

    O arcanjo Zéfio não foi sempre este velhinho simpático e mestre incontestado que sorrindo se passeava agora pelas instâncias angélicas como um antepassado dos tempos primevos, tempos da primordial criação dos espíritos. Lenda viva das estâncias celestes, a vida deste patriarca era um mistério cujo segredo acicatava a natural curiosidade dos anjos adolescentes e mais espevitava a fantasia do anjo Ariel, enchendo de fantasmas as suas noites mal dormidas. Falava-se em Zéfio e toda a gente olhava em redor como se o arcanjo fosse uma ressurreição de qualquer antepassado muito antigo. Junto dele havia silêncios e muita curiosidade. Uma coisa de que Ariel nunca tinha ouvido falar, por exemplo, e que só agora soube, foi a misteriosa peripécia que ficou nos anais do paraíso, registada no índice dos arcanos celestes como a lenda mais significativa do éden – o caso do sapo aprisionado. Contavam os mais velhos. O arcanjo Zéfio tivera, desde muito jovem, ideias estapafúrdicas que punham em causa não só a ortodoxia teológica da estância paradisíaca e a sempiterna pax angelorum, mas também fazia abalar os próprios fundamentos do mundo. Só muito por entre dentes é que alguns deixavam escapar a estranheza de o anjo Zéfio não ter alinhado com os anjos revoltosos cujo chefe de fila era o arcanjo Lúcifer, com quem, diziam, ele simpatizava. Miguel e os situacionistas acabaram por marginalizar o dissidente: «Quem não é por nós é contra nós» ⸺ regra de ouro de quem manda. Consentiram na sua reabilitação, que aprovaram a contragosto, apenas por via do célebre caso de o mesmo Zéfio ter aprisionado Satã numa tarde em que belzebu, tomando a figura de um vulgar bufo spinosus como qualquer outro sapo, se infiltrou no éden, nunca se soube como, nem quando, nem por onde, nem para quê. Disseram uns que foi ação de espionagem com vista a futuras incursões de Satã e seus anjos, vencidos e entornados a esmo nas labaredas do inferno, outros viram nessa intromissão uma ameaça ou provocação apenas com vista a desestabilizar, incomodar a paz celestial. Ao certo ninguém soube. O velho arcanjo cedo passou a ser tema de conversas trocistas por parte dos intelectuais de meia-tigela por via do tal caso. Os mais novos só muito tarde tomaram conhecimento, o que se explica pelo facto de no céu, como em toda a parte, a menoridade não ser garante de segredos nem confidências ⸺ por alguma razão se diz que o seguro morreu de velho. Pelo sim pelo não, os mais prudentes, e Zéfio com eles, emitiram opinião cautelosa: coisa boa não seria. Tal incursão satânica por dentro dos domínios paradisíacos deveria ser tida em conta e com as devidas cautelas: talvez visita de inspeção e reconhecimento em teatro de operações futuras, tendo em vista o assalto das hostes satânicas às ordens de belzebu com vista à reconquista do paraíso perdido, donde tinham sido expulsos os anjos satânicos depois da guerra que perderam. Zéfio persistia na ideia de uma incursão diabólica. Ao certo ninguém sabia dizer como as coisas aconteceram, mas todos convieram em que a captura de Satã foi gesto heroico e um ato crucial para a manutenção da segurança local.

    O caso aconteceu quando Zéfio, estendido no caramanchel que havia a nascente do espaço edénico, se esforçava mentalmente por sistematizar, de forma coerente e consistente, aquela sua doutrina acerca do âmbito e verdadeiro escopo da criação divina, matéria que por essa altura lhe ocupava o tempo e a mente com pertinácia e obsessão ⸺ doutrina provisória, mera hipótese sobre a utilidade ou inutilidade da criação e sobre a maquinaria da administração geral do universo. Tese não. Teoria, apenas: hipótese que o mestre formulava nesse momento, quando começou por articular tal ideia desta seguinte forma: primo: saber se o criador das coisas visíveis e invisíveis criou ou não, e para quê, as más criaturas ⸺ anjos maus, por exemplo, aqueles espíritos a que chamam diabos, que os há por toda a parte e não são poucos, e se criou também ou não as respetivas derivações satânicas: médiuns, cartomantes, quiromantes, bruxos e feiticeiros, e outros adivinhos; secundo: saber se, lá do assento etéreo donde o Criador rege todo o universo, se sustenta ou não o movimento orbicular das estrelas em suas vertiginosas elipses e se, ainda, ⸺ digamo-lo nós que vivemos nesta era atómica com conhecimento parcial da teoria da relatividade – controla o fabuloso movimento de cada átomo que por dentro dos seres se move e se desintegra segundo leis naturais ⸺ enfim: se o demiurgo absoluto a quem chamam Deus rege ou não a vida de cada um dos seres criados, dinossáurios e dinotérios, mas também a inocente amiba, o vírus mortífero e a duvidosa bactéria, ou se, pelo contrário, não os rege Deus mas os rege Satã, e se o faz por si mesmo ou se por interpostas finitas entidades. Foi neste contexto de concentração mental e de perplexidade doutrinal em se afundava o cérebro de Zéfiro que se deu o caso de que falamos ⸺ a visitação e sequente detenção do batráquio invasor, logo ali tido por espírito maligno disfarçado de sapo. Foi esta a peripécia que fez com que o arcanjo Zéfio viesse a ser reabilitado, homenageado e logo condecorado, subindo assim à categoria dos arcanjos de primeira, venerável e com tratamento de excelência. Mas tudo isto aconteceu, não por mérito nem demérito daquela sua teoria temerária e de duvidosa ortodoxia, reprovável aos olhos dos mais conservadores e pouco interessante à maioria das criaturas, mas somente por via da insólita visão ou aparição e sequente detenção do inimigo.

    Ao equacionar, porém, o seu dilema referente à administração do orbe ⸺ se o Altíssimo rege ou não rege toda a natural existência ⸺ o inexperiente Zéfiro não pensou na possibilidade de poder haver terceira hipótese ⸺ um tertio quid que furasse a lógica dilemática da arquitetura argumentativa formulada tão impensadamente quanto impensada foi este falso dilema de os possíveis demiurgos regedores do universo serem apenas dois, ou Deus ou o Diabo, mais ninguém, porque deveria ter considerado, e não considerou, uma terceira hipótese: se nem Deus nem o Diabo regessem coisa alguma. Se, porém, nem um nem outro governam este complexo maquinismo, se nem deus nem o Diabo regem coisa alguma, governando-se cada qual por sua conta e risco, ficarão desprotegidos os mais débeis, sujeitos ao capricho da sorte, e sem defesa os mais fracos face aos energúmenos, às mãos de avulsos espíritos malignos e outros seres maléficos que andam pelo mundo para eterna perdição de boas almas. Sem prejuízo desta pequena falácia ou falência mental – desculpável, se tivermos em conta que Zéfio era nessa altura anjo inexperiente ⸺ o que verdadeiramente se mostrou relevante foi aquilo que, à conta dessa ideia, veio a acontecer: fosse pelo esforço mental que fizera ao tentar acepilhar os fios das referidas lucubrações, fosse por qualquer tontura fugidia que lhe adveio por via do raio de sol que desastradamente tivesse incidido sobre o sobrolho no preciso momento em que Zéfio já desdava o nó górdio da argumentação lógica e dava consistência a todas as suas articulações metafísicas, a visão do filósofo obnubilou-se momentaneamente e, rápido como faísca, um lume lhe zimbrara por dentro da mente, deixando-o ourado e sem norte. Confessara depois esse nobre arcanjo a sua derrota porque fora no exato momento em que já se desentrelaçava sobre a planura da sua mente o intrincado fio da meada com que urdia a sua tese que, forçado o pensamento no último estertor da lucidez, Zéfio viu o que disse que viu ⸺ o sapo:

    ⸺ Olhava-me de viés, obliquamente, provocador, em jeito de desafio, olhos bugalhudos, pálpebras salientes, muito redondas, nem vos conto! ⸺ dissera o vidente aos que o foram encontrar junto ao caramanchão, tombado, combalido, pálido, inane, inerme, um tanto búzio, a segurar por uma guita o batráquio enlaçado pela garganta, estarrecidos ele e o sapo, aturdidos ambos. De olhos vidrados e revirados para os circunstantes, Zéfio dizia e repetia: ⸺ O Diabo! não é senão o Diabo em pessoa.

    O arcanjo Ituriel, bastonário da ordem angelical e responsável máximo pela segurança do éden, inteirado que foi do sucedido, acorreu sem demora ao local da aparição, observou o intruso, analisou, tocou-lhe com o coto do bastão, avaliou a consistência da matéria corpórea e confirmou com a autoridade de quem comanda: ⸺ É o Diabo, sim senhor. Proceda-se em conformidade.

    Conduzido o detido a quem de direito e logo interrogado ⸺ aos costumes disse nada. Foi dali à presença de Miguel Arcanjo, juiz do tribunal divino, que o colocou no prato esquerdo da balança, levantou a espada e lavrou despacho:

    ⸺ É Satã, recebo a acusação.

    Face à gravidade do caso, foi convocado o tribunal plenário constituído por um júri de sete conselheiros a que presidia o próprio arcanjo Miguel. Aberta a sessão, logo foram suspensas as primeiras alegações na sequência dum ponto de ordem enviado à mesa como questão prévia à deliberação sobre o mérito da causa, a requerer exame psiquiátrico do vidente Zéfio, com fundamento no inédito da situação. O incidente levantava e sustentava suspeição sobre o estado mental do filósofo, o que manifestamente beliscava a dignidade do vidente ao levantar suspeição sobre a sua integridade mental. Alterada a ordem de trabalhos, ficou suspensa a discussão acerca da substância da coisa e

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