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Coelhos na Cartola e Nada na Manga
Coelhos na Cartola e Nada na Manga
Coelhos na Cartola e Nada na Manga
E-book204 páginas3 horas

Coelhos na Cartola e Nada na Manga

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Sobre este e-book

Coelhos na Cartola e Nada na Manga é um livro de contos. Encontramos várias figuras femininas com seus segredos e desejos; mãe e filha lutando contra caminhos ínvios; um homem solitário e deprimido que chega ao fim da linha para viver uma nova vida; dois velhos amigos que discutem constantemente as suas divergências, até que a morte os une; uma mulher que encena (ou talvez não) o seu desaparecimento; três casais surpreendentes; quatro amigos que entram pela noite dentro numa aventura que mais parece um sonho… São histórias de pessoas comuns, diferentes entre si, pessoas que não se conhecem, aqui reunidas, talvez por algum toque de magia. Pessoas que conseguem ser extraordinárias, ou viver momentos inusitados, se circunstâncias, acasos, ou decisões o permitirem. Algumas histórias correm bem, outras não. Não conhecemos qualquer destas personagens, mas em todas as histórias sai um coelho da cartola. Curiosamente, esse nós conhecemos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de abr. de 2023
ISBN9791222083476
Coelhos na Cartola e Nada na Manga

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    Pré-visualização do livro

    Coelhos na Cartola e Nada na Manga - Helena Filipe Monteiro

    Agradecimentos

    Ao escritor e jornalista Modesto Navarro pelos preciosos conselhos;

    À Margarida Monteiro Botelho da Silva pela leitura atenta, crítica, e ajuda na revisão;

    À Isabel Filipe Monteiro por ser a primeira leitora descomprometida.

    FIM DE TARDE

    Natália não quer dar a entender, mas fica radiante sempre que a Sandra lhe bate à porta, ao fim da tarde, e lhe diz que vai com ela passear o cão. Uma vez por outra, Natália já lhe tem perguntado se quer ir, mas de um modo geral espera que a Sandra se ofereça. Não quer ser intrometida, não quer que ela lhe diga que sim por delicadeza, e que vá contra vontade. Natália pensa sempre que pode ser uma companhia aborrecida para a rapariga. Perguntar não é o fim do mundo: se quer, quer; se não quer, não vai…, mas Natália é assim mesmo, e espera que à hora do costume seja a Sandra a tomar a iniciativa para irem as duas dar a volta ao quarteirão com o Bobi pela trela.

    Bate tudo certo: Natália é um nome bonito para uma senhora de quase setenta anos, que combina com o seu corpo farto e com o seu rosto de traços finos. Sandra é um nome aceitável para uma rapariga de vinte e cinco; na época em que nasceu e que foi baptizada estava na moda – teve sorte por não lhe terem chamado um par de nomes estranhos – e combina com o seu estilo pequeno burguês bastante composto. Bobi – o grande clássico da raça canina – é nome adequado para cão de uma senhora de idade; nada de nomes extravagantes, nada de modernismos, nada de nomes de pessoas em animais. O animal é pouco simpático, casmurro até, não faz habilidades nenhumas, mas é uma companhia. Curiosamente, o Bobi não é da D. Natália, é de uma vizinha que não tem tempo nem paciência para bichos domésticos – não se entende então porque é que o quis – e que tratou de passar a responsabilidade à pessoa que se disponibilizou a aceitá-la. A D. Natália aceitou-a, e passou a ser uma boa desculpa para sair de casa, mesmo que não lhe apeteça, forçar-se a tirar as pantufas e o robe, fazer uma caminhada, mover-se.

    A dizer a verdade, Natália nem precisava desta desculpa, não é propriamente uma velha corujenta, até é bastante sociável e bem-falante. É um pouco solitária, sim, mas convive com outras pessoas, assim elas apareçam. Não sai muito, mas também não vive metida em casa. Sai para ir às compras, à missa… e claro, para passear o cão. Assim, os fins de tarde são menos tristes. E percebe-se como é uma mulher doce, porque os seus olhos riem de alegria quando a Sandra se oferece para lhe fazer companhia. E a Sandra, que não faz frete nenhum, lá tem as suas razões para querer ir com ela. Embora jovem, não se lhe conhecem muitas amizades, e, quando chega do trabalho, nem sempre sabe o que fazer ao tempo. Veio do interior há alguns anos para estudar e melhorar a vida, não tem família chegada em Lisboa – só uns primos que moram do outro lado do rio –, estudou até ao 12º ano e agora trabalha num escritório onde é funcionária de contabilidade e tesouraria. Vive num quarto alugado no prédio da D. Natália. É só descer a escada.

    Entendem-se lindamente, e em certos momentos quase parecem da mesma idade. Brincam com o pouco simpático Bobi, seguram a trela à vez – ora segura uma, ora segura a outra –, ele puxa-as, e lá vão elas de rompante… Riem e divertem-se. Por vezes, encontram alguém conhecido na rua, conversam um pouco, e vão mais felizes para casa. É assim. São coisas simples de que as pessoas precisam para se sentirem melhor.

    Por acaso e por maneira de ser, nenhuma delas gosta de mostrar que depende do afecto dos outros. Mas quem é que não depende? E quem é que não gosta? E a verdade é que uma jovem também pode apreciar a companhia de uma senhora idosa. Às vezes, os jovens surpreendem. E é até comovente perceber como a Sandra – tal como a D. Natália – espera ansiosamente por aquele passeio do fim da tarde. Gostava que a D. Natália fosse da sua família, que as unisse qualquer grau de parentesco, que fosse qualquer coisa sua, mas também nunca lho disse. E se calhar não é preciso, no fundo, ambas sentem o mesmo.

    A solidão e a necessidade de afecto são de todas as épocas e batem a todas as portas.

    Os fins de tarde passam por todos nós.

    ADELLE UM DIA SONHOU

    … Quando acabar de pagar a casa, vou fazer uma viagem; quando tiver tempo, vou fazer ginástica; quando tiver paciência, começo a ler um livro; quando puder, vou visitar a minha mãe….

    Esta é uma oração que muitas pessoas rezam, e Adelle sabia-a de cor. Era o rosário com as suas contas, e repetia a lengalenga para ela e para quem a quisesse ouvir, embora já poucas pessoas lhe dessem ouvidos. Às vezes, como se lhe desse jeito, mas não fizesse muita questão, parecia dizer também: quando me estiver a faltar o ar, vou respirar; quando já não for necessário, decido-me a viver.

    Adelle não foi sempre assim e não conseguia identificar como é que os quandos se agarraram como lapas à sua vida. A mãe, por exemplo, era candidata a uma visita sua desde há muito, que nunca se concretizava porque Adelle não tinha tempo… E assim ia ficando, adiando… Não era amarga, era apenas indiferente. Mas tinha alguns desejos e umas pequenas ambições inconfessáveis.

    E um dia…

    … Um dia teve um sonho deveras estranho. Sonhou que trabalhava num lugar de dimensões espaciais, ao mesmo tempo pessoal e acolhedor; ideal e idealizado, porque aquilo não existia, nem nos filmes. Este lugar de sonho era um espaço muito amplo, com vista para um rio largo e imponente, que em vez dos habituais armários e secretárias em tons de cinzento, tinha mobiliário com cores vivas, de formas muito bonitas e elegantes; em vez de um ambiente obscuro e sombrio, acentuado pela indiscrição das lâmpadas fluorescentes, tinha muita luz natural, que, em certos momentos do dia, era coada por persianas, que lhe davam uma atmosfera de intimidade.

    Nada o género de escritório tristonho, marcial, monótono. Nada o género de local de trabalho que, apesar da tristeza instalada, até passa despercebido às pessoas – defendem-se instintivamente, achando normal que os locais onde se trabalha sejam assim –, porque se pensassem com frequência nos bunkers onde passam grande parte da sua vida, morreriam de tédio.

    Nada disso. O lugar de sonho de Adelle tinha cor, luz, muito espaço, conforto, elegância e bem-estar. Onde é que já se viu isto? Um lugar assim para trabalhar só mesmo em sonho! Era digno de deuses trabalhadores, não de pessoas vulgares como ela. Sendo parecido com o paraíso, talvez seja num lugar assim que Deus despacha. Adelle, a indiferente, teve uma pequena curiosidade e um assomo de humor…

    Mas não foi só a grandeza e a beleza do que viu que a impressionou. O que em primeiro lugar a fez magicar foi o ter sonhado – facto que só por si era estranho e praticamente inédito –, pois quase nunca tinha sonhos, ou pelo menos não tinha memória deles. Sonhar, e conseguir recordar-se, deixou-a intrigada. Este acontecimento aparentemente banal deveria ter um significado que lhe escapava… E depois achou surpreendente o tema do sonho. A funcionária de uma pequena empresa sonhou acidentalmente com o seu local de trabalho. Porquê? Ela era uma funcionária menor, uma administrativa de recados, de fotocópias, de requisições e de aborrecimentos. Porque é que sonhou com uma secretária enorme, onde todos os objectos se podiam sentir à vontade? Uma secretária que mais parecia uma planície ou um vale com cavalos à solta… Logo ela que tinha uma secretária acanhada, que não dava nem para pôr um solitário com uma flor. Gostaria de ter na secretária um solitário com uma rosa… Mas que secretária?! O que ela tinha era uma mesa, uma mesinha! Uma secretária grande, vejam só, ela que era uma tarefeira de aborrecimentos.

    No fundo, talvez desejasse, sem o saber, ser uma grande executiva, de decisões importantes, daquelas que têm mesas enormes, polidas, sem tralha que atrapalhe a reflexão. Uma empresária daquelas que se viram para um lado e para o outro nas cadeiras que giram agilmente nas rodas, muito expeditas e muito elegantes nos seus tailleurs. Nunca se tinha dado conta de que isto pudesse ser objecto de desejo. E talvez não fosse, talvez tivesse acontecido por mero acaso. E como se sabe, os sonhos nem sempre fazem sentido ou são entendidos…

    Naquela manhã, antes de se levantar, esteve durante um grande bocado a pensar em tudo aquilo. A memória recente devolveu-lhe de novo a imensidão do rio visto através das enormes janelas do seu gabinete. Levantou-se inebriada pela amplitude – aquele espaço mostrou-lhe uma medida que ela não conhecia – e, ao dirigir-se à cozinha, ainda sem ter olhado pela janela, pressentiu a escuridão lá fora e sentiu o espaço apertar-se.

    Quando chegou à cozinha, confirmou as piores expectativas: chovia miudinho, e o céu estava morrinhoso e leitoso. Adelle sentiu um arrepio de Inverno no coração, e instintivamente encolheu-se, porque aquele tempo oprimia-a. Como é que iria passar o dia, um dia como aquele, depois de uma noite de sonho? Como é que iria entrar no open space cubicular onde trabalhava – que ficava ainda mais pequeno e com uma tristeza inclemente nos dias de sombra – depois de ter sonhado com a liberdade?

    Olhou através da janela, e a visão embaciada (dos olhos ou dos vidros?) mostrou-lhe o cenário de monturo e habitações precárias que tinha à frente de sua casa, envolvido por um imenso cinzento. Além do arrepio que já sentira antes, sentiu o incómodo de nunca sonhar e de adiar a sua vida constantemente. Pela primeira vez desde há muito tempo, desde que (não) se lembrava, lamentou não fazer uma viagem, não ler um livro…

    A viagem da noite para lá da realidade deixou-a baralhada. Uma executiva com tailleur… Ela, coitada, vestia habitualmente umas sainhas e umas blusinhas, compradas sem entusiasmo nas lojas de bairro ou nos hipermercados onde costumava ir. E não se entusiasmava com as compras, não tanto por falta de dinheiro – não que tivesse muito, mas tinha o suficiente –, mas por desinteresse, porque achava que não tinha ninguém a quem agradar, e estava habituada a vestir-se de forma simples e económica. Era uma mulher simples e económica, funcionária de aborrecimentos e mulher de decepções. Não era amarga, era apenas indiferente. E pela primeira vez desde há muito tempo, desde que (não) se lembrava, sentiu a falta que faz sonhar e percebeu a falta que faz transformar os desejos e as tais ambições inconfessáveis em motivo de entusiasmo e não em ladainhas recitadas à-toa.

    Adelle concluiu, então, que vivia em tons de cinzento, e a cor não lhe agradou; e também percebeu que a claridade recente que viu no sonho estava a deixá-la atordoada. Ao mesmo tempo que fazia esta constatação tão simples, tornou-se uma ilustração possível da alegoria da caverna.

    Vá-se lá saber porque é que um sonho – inesperado, sim, mas como muitos outros, com os tais lugares e pessoas que não existem, que não se entendem, ou que não se encaixam – pode despertar sentimentos escondidos ou esquecidos… Talvez porque no sonho houvesse muita luz.

    Adelle afastou-se da janela com os olhos ainda embaciados – pela humidade que havia lá fora e por aquela que havia dentro de si – e não se sentiu em grande forma. Enquanto preparava o leite para aquecer, olhou-se e sentiu outro arrepio. Viu o robe de turco já desfiado que trazia vestido, os chinelos gastos que ia arrastando nos mosaicos da cozinha… e veio-lhe novamente à cabeça a secretária… e a executiva de tailleur (achou curioso ter pensado primeiro na secretária e só depois na executiva e no tailleur). A executiva não estava no sonho, imaginou-a depois… Seria ela própria? Que ideia!…

    E se comprasse uma mesa maior para a cozinha ou para a sala? Tinha dinheiro, o marido emigrante não se esquecia de fazer a transferência bancária todos os meses, e ela também recebia o seu ordenado, pequenino, à medida da empresa e da funcionária, mas era o seu ordenado. E se comprasse também um fato completo? Não era preciso uma coisa muito cara, mas podia introduzir essa novidade no seu vestuário…

    Estava envolvida nestes pensamentos, quando começou a sentir um calorzinho nas faces. Como tinha acabado de beber o leite quente com cacau e de comer um pedaço de pão com manteiga, não percebeu se esta sensação agradável se devia ao pequeno-almoço, se aos devaneios. E que importava isso?

    Enquanto lavava a escassa loiça, lamentou não ter filhos a atrapalharem-lhe a manhã: Vai-te vestir…, Vai comer os flocos…, Eu depois é que levo uma desanda do chefe se chego atrasada…, e outras coisas do género…; ou um marido mal-humorado a resmungar uma arenga qualquer (não, mal-humorado não era preciso, o marido e a arenga já bastavam). Sorriu, e os olhos voltaram a embaciar-se, por causa daqueles pensamentos, e porque, ao olhar novamente através da janela, em vez de um rio belo e imponente, viu caixotes de lixo por despejar (os homens não teriam passado na noite anterior?), a lojeca da frente, mais as casitas e o monturo. O coração acusou este cenário, envolvido pelo estado de espírito equivalente no cinzento. Aquele dia não ia ser fácil… Foi para a casa-de-banho arranjar-se.

    Habitualmente, não se demorava muito com a higiene diária: tomava duche, lavava os dentes, a cara, e punha um pouco de creme. Havia dias – quando estava muito frio ou quando simplesmente não lhe apetecia –, em que dispensava o banho, mas era raro; sentia algum ânimo com a água a escorrer-lhe pelo corpo e com o cheiro do sabonete. Depois, a escolha da toilette também não costumava dar-lhe dores de cabeça, até porque não tinha muito por onde escolher, e menos para variar: saias, blusas, dois ou três pares de calças, três pares de sapatos para cada estação, uns casacos de malha para os dias mais frescos e um casaco comprido, que tinha há sete anos, para os dias de muito frio. Só no Verão é que não precisava deste casaco, e como as outras peças não diferiam muito nem na cor, nem no tecido, nem no modelo, dir-se-ia que eram as mesmas para todas as estações.

    Adelle, a económica. Adelle, uma mulher simples de aborrecimentos e de interesses. Todavia tinha um luxo que constituía o ponto alto do curto ritual de todas as manhãs: gostava de usar perfume e abusava desta extravagância na dose certa, tanto quanto a medida de uma conhecedora permite: em quantidade suficiente para ser notado, mas sem exagero para não se tornar invasivo. Sendo uma mulher sem quaisquer outras sofisticações, bem se podia chamar extravagância a esta; era quase um contra-senso uma mulher que vestia casaco de malha em todas as ocasiões, usar um perfume caro, comprado por opção e usado com convicção. Adelle era uma mulher contraditória.

    Não tinha filhos, mas naquela manhã

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