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A Pedra do Tempo
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A Pedra do Tempo
E-book435 páginas6 horas

A Pedra do Tempo

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Sobre este e-book

Ano 2017. Leandro Costa Dimas é assolado por sonhos misteriosos que rapidamente se transformam em pesadelos. Seguindo um mapa com 22 anos, chega à remota Malaquita, órfão de passado e futuro.
Uma pedra. Duas pulseiras, uma dele, outra de alguém cuja existência ele nem sequer imagina e não tem consciência do quão dependentes estão um do outro. Uma ligação inesperada num duelo desigual. Leandro segue em busca de respostas, mas as perguntas e os dilemas adensam-se.
Sempre acompanhado por uma flor que lhe proporcionou paixão e encanto, quando chega a Malaquita vê-se envolvido numa miscelânea de sentimentos que podem romper com o seu jardim de anos.
Esperançosamente, esforça-se por chegar a um destino inimaginável, cujas consequências serão arrebatadoras. Para todos os envolvidos. E poderá uma simples pedra ser a resposta de tudo?
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de mar. de 2023
ISBN9791222083469
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    Pré-visualização do livro

    A Pedra do Tempo - Cristiano Sá

    Agradecimentos

    Ao outro autor que comigo partilhou as aventuras, as indecisões, os momentos mais alucinantes e os mais tenebrosos do livro que preencheu as páginas da nossa vida durante a escrita do nosso primeiro livro.

    À nossa família que sempre nos apoiou e aos nossos amigos que sempre estiveram lá para responder a perguntas inusitadas, sem saber para o que serviriam, mas que agora fazem todo o sentido.

    Um agradecimento especial também, claro, a todos os leitores, aqueles que vivem connosco esta história como sendo também deles, aqueles que conseguem imaginar cada recanto dos locais ilustrados, cada detalhe das personagens, cada perspicácia do narrador.

    E ao Tempo, aquele que teima em passar muito rápido, aquele que nos permitiu chegar até aqui.

    Obrigado a tantos e a todos os outros que passaram pela nossa vida e que de alguma forma serviram de inspiração para tudo aquilo que encontram nesta obra.

    Prólogo

    ⸻ Outra vez!? ⸻ Brada a idosa ⸻ Outra vez? Sessenta anos que demoraste a voltar…

    Entretanto, farão sessenta anos que me marcaste… ⸻ Grita, em direção a uma pedra que irradia a cor verde e amarela ao centro, pousada sobre um fontanário de granito, no meio de um parque deserto. ⸻ Quem é que queres ajudar agora? ⸻ Madalena Calluna deu grande ênfase à palavra ajudar. ⸻ As lendas rezam-te boa, mas não nos trazes nada além de desespero… Essa malfadada cor de esperança não podia ser mais enganadora… Mais traidora… E depois dissipas-te, desapareces sem deixar rasto, ficando apenas uma marca irreversível no meu corpo ⸻ aponta para uma mancha castanha que lhe pinta parte da face ⸻ e na minha alma!

    Neste momento, a idosa só é capaz de se manter de pé graças à sua indispensável bengala preta.

    ⸻ Ajuda essa pessoa! Suplico-te. É tempo de tudo se resolver… Já chega de calamidades nesta terra…

    Madalena senta-se num dos cinco bancos disponíveis naquele local, cuja relva já está numa altura consideravelmente maior para o tamanho aconselhado para um parque. A idosa fita a pedra preciosa, um triângulo verde em todos os ângulos e arestas, mas de núcleo amarelo, para onde discursou até então, sentindo-se delirante mas, simultaneamente, com mais sobriedade possível, já que no passado ela sofreu por conta daquele objeto aparentemente inanimado.

    E, neste preciso momento, um corvo negro decide beber naquele fontanário granitoide, que se enchera devido às chuvadas recentes, alheio a tudo o que se passa à sua volta.

    Capítulo I ⸻ Nevoeiro

    Acordei a pensar naquela expressão latina, tantas vezes incompreendida, Carpe Diem, de traduções vagas Aproveita o Momento ou Vive o Agora, mas haverá exceções? Poderão o passado e o futuro conviver sobrepostos? Leandro está prestes a descobrir a resposta nesta viagem que agora começa.

    Numa pequena rua de sentido único, perdida na populosa cidade de Vila Velha de Curre, uma atividade anormal destoa da grande banalidade e agitação comuns de uma manhã de quarta-feira. Leandro Costa Dimas, um homem que mora naquela cidade há tantos anos que já lhes perdeu a conta, prepara-se para viajar. A localidade, da qual agora se despede, foi onde criou todas as suas memórias, as suas vivências, as suas recordações e também a sua família. Uma família jovem perfeitamente comum e moderna composta pelo Leandro, pela sua deslumbrante esposa Flora, uma excelente jardineira cujo trabalho é reconhecido como uma das pérolas da cidade e pelo seu alegre cão Léo, um velho amigo que usufrui da sua vida de rei a cada momento. Está apenas proibido de entrar no jardim de Flora, por razões óbvias. Mas voltando a este dia, mais propriamente a esta quarta-feira, dois mil e dezassete anos depois do nascimento de Cristo e a primeira deste mês de março, Leandro sai de casa com uma grande mala recheada de roupa e de alguns bens básicos. Quem visse de fora certamente suspeitaria de problemas no paraíso, mas com a grande azáfama citadina de mais um dia de trabalho ninguém repara em nada. Prepara-se para entrar no carro. Coloca a enorme mala verde na bagageira do citadino, dá um beijo de despedida à esposa que, por entre lágrimas antecipatórias de saudade, com um misto de medo e paixão, lhe pergunta se tem a certeza se o local para onde ele vai é para onde ele tem mesmo de ir. Leandro abaixa a cabeça e não é capaz de lhe dar uma resposta. Flora sabe que ele não tem nenhuma certeza, mas deseja-lhe boa sorte e despede-se do seu grande amor, que também se despede emotivamente dela, abraça o cão e, com os olhos embaçados de lágrimas e dúvidas, entra no carro com esperança de os voltar a ver o mais cedo possível.

    E assim começa a viagem da sua vida aos trinta e três anos de idade, deixando para trás aquela casa bege que se distingue de todas as outras do município pelas suas paredes exteriores serem percorridas por uma hera, que antes ostentava um vigoroso verde, mas que há algumas semanas subitamente começara a perder a cor. E, conforme acelera no seu citadino e a paisagem lhe começa a fugir da visão, só consegue pensar naquele lugar de onde acabou de sair, sem anseios do futuro, sem sequer se importar com ele. Só consegue pensar naquela mulher, a Flora, aquela amiga, amante, esposa, que é o seu pilar e a cola que mantém o seu coração unido todos os dias. Deixou-a a chorar. Aqueles olhos verdes, profundos, em que tantas vezes se perdeu estavam embaçados, com um nevoeiro que cobria toda a sua alma. Ainda não saiu da cidade e já lhe parece que está a uma distância infinita de casa. Ele quer voltar, quer voltar para os braços da sua esposa, quer voltar para aquele ninho de amor que tanto lhe custou a construir e ao qual certamente há de regressar, numa nova fase da sua vida.

    Após sair da cidade, vai entrar na autoestrada, está fragilmente decidido a seguir em frente, apenas com a certeza de que ainda falta tanto para alcançar o seu destino… Num momento de distração, daqueles que não podem acontecer a conduzir, dá por si a olhar o céu e a imaginar formas e animais nas nuvens. Isto aparenta ser uma infantilidade, mas uma cabeça cheia de pensamentos e a monotonia da autoestrada podem levar à necessidade de um escape.

    Olha um cão! Será o Léo? Espera, não pode ser um cão! A cauda é comprida demais. Eu estou a ver coisas. Esquece, vou-me concentrar a conduzir.

    E concentrou-se, como qualquer bom cidadão, durante um momento que lhe pareceu uma infinidade de segundos.

    Era um leão, só podia ser um leão.

    E voltou a olhar para o céu e o leão já se tinha esfumado, já não poderia confirmar. Mas viu, ao longe, uma placa, quase tão branca como a neve, com exceção das letras que se mantinham a preto, a indicar a próxima saída da autoestrada, mas nesse momento a sua voz interior falou, num tom não tão rouco como a sua verdadeira, e disse-lhe para continuar, continuar a sua viagem. Leandro, visivelmente confuso, assumia agora que não gostava desta opção e verdadeiramente queria voltar para a única vida que conhece e, ali, dá por si a encarar o espelho retrovisor, e o seu semblante revela-se num misto de cansaço e de perturbação. É difícil reconhecer a sua própria face. Por um lado, sente necessidade do afeto e da estabilidade que tem em Curre mas, por outro, nunca iria perdoar a si mesmo se não fosse fazer aquilo que acredita que lhe tenha sido destinado e, portanto, com toda a sua garra, exclama para o homem do espelho:

    ⸻ Tenho de fazer isto, tem de ser! Se não for por mim, vou fazê-lo pela Flora, porque lhe prometi que o ia fazer e ela merece que eu não a desiluda.

    Convicto, Leandro vai fazê-lo, mas precisa de se abster destes pensamentos, não quer voltar a pensar em desistir, não pode ser, não faz parte da sua natureza fazê-lo. Então liga a rádio, pode ser que assim se consiga acalmar.

    ⸻ Bom dia… são 9 horas, bem-vindos à rádio nacional. E como sempre, à hora certa, as notícias. Faz hoje dois meses que António Guterres tomou posse como secretário-geral das Nações Unidas. O antigo primeiro-ministro português reafirmou, ao início do dia de hoje, os seus objetivos para um mandato que espera difícil e decisivo para o futuro da humanidade. Combater as alterações climáticas e fazer face à crise dos refugiados são ideias claras que vê como cruciais na longa jornada que todos, sem exceção, vamos enfrentar nas próximas décadas. À margem deste acontecimento, o irmão de Guterres decidiu hoje pronunciar-se publicamente de forma a dar força a uma pessoa em quem confia plenamente para estar à frente da ONU. Na sua extensa mensagem, destaca o carácter firme e de líder que Guterres sempre demonstrou desde a sua infância.

    Perante a notícia que marca a atualidade, e com os pensamentos naquele português que conquistou Bruxelas e naquele que não será o seu último feito, Leandro mostra-se ternamente pensativo.

    Que bom que seria se eu tivesse um irmão com quem pudesse compartilhar as minhas conquistas, alguém que eu soubesse que estaria lá sempre para mim, alguém que me conhecesse desde sempre e que agora, nesta jornada de aventura em busca do desconhecido, me pudesse também ajudar. Mas feliz ou infelizmente a vida não quis assim…

    Entretanto, depois de afastados estes pensamentos, por um lado loucos, por outro lado humanistas, retoma a sua atenção na condução porque, de facto, é aquilo que merece mais concentração da sua parte e quando dá por isso já a rádio analisou a situação do trânsito em tempo real e está agora a dar as previsões da condição atmosférica para um dia que se prevê nublado em todo o continente com temperaturas amenas para a época. O inverno está a terminar, mas os próximos dias esperam-se encobertos e, por vezes, chuvosos, principalmente no interior norte e centro do país onde se esperam temperaturas que podem variar entre os 10º e os 15º C.

    ⸻ Oh que desilusão! ⸻ Resmunga Leandro. ⸻ Queria tanto que estivesse sol para poder aproveitar as pastagens de perder de vista, os rodopiantes moinhos e as enormes cercas que, para aqueles lados, devem certamente existir. ⸻ Pelo menos, esta é a expectativa de alguém que conduz em direção ao interior do país seguríssimo de nunca lá ter estado ⸻ Poder contemplar os animais que chamam aos mantos verdes luxuriantes de casa… as vacas, as cabras, as galinhas… típicos de uma vida normal no campo, aspetos que morando na cidade não tenho oportunidade de apreciar.

    Mas, de repente, algo o faz demover destas ideias e daquilo que imagina encontrar quando chegar a Malaquita. Afinal de contas, o que ele quer mesmo saber é aquilo que não consegue imaginar que lá irá encontrar. Assim, olhando novamente para o céu, que nesta altura do dia ainda não se encontra tão nublado como enunciaram na rádio, repara novamente numa nuvem que lhe chama a atenção… uma nuvem em forma de leão… exatamente igual àquela que há alguns minutos viu, se será a mesma ou outra, isso nunca saberá, e é contemplando esta mesma nuvem que dá por si a matutar naquilo que verdadeiramente o leva a Malaquita. Uma aldeia da qual não sente qualquer ligação e da qual não se lembra de alguma vez ter ouvido falar. Sem certezas de nada, é em Malaquita que deposita todas as suas esperanças e é também lá que espera encontrar respostas para algo que lhe parece inusitado, estranho e que hoje, mais do que nunca, lhe parece ser uma verdadeira loucura. E esta loucura pesa bastante nos seus pensamentos já que, tal como a sua amável Flora, de quem já sente saudades, faz questão de lhe dizer, temos sempre de dar o benefício da dúvida às pessoas, às coisas, na verdade, a tudo na vida porque nem sempre tudo é aquilo que parece ser.

    Leandro segue agora a sua viagem, com um semblante carregado e fechado. O seu último mês e, particularmente as últimas duas semanas, não foram nada fáceis. Parece que, de repente, algo o perturba, algo que sempre esteve presente em si, na sua vida, mas que nunca foi especial e que agora o é. Especial, mas confuso, muito confuso, e por causa disso, e depois de alguma investigação da sua parte no que diz respeito a uma época da sua vida da qual não tem qualquer memória, ele avança em direção a Malaquita, na convicção de que lá irá encontrar algo importante.

    Depois de uma extenuante viagem, que para Leandro pareceu uma eternidade, a hora de almoço está a chegar, mas antes de procurar um restaurante Leandro para o carro e contempla uma flor selvagem cor-de-rosa à sua frente. Todas as diferentes tonalidades de magenta lhe chamam à atenção e só pensa em pegar num daqueles belos espécimes cujo nome ainda não conhece para oferecer à sua Flora, mas isso ainda vai demorar. Até lá, vai contemplando a corajosa flor que brota no inverno por entre as pedras. Acaba por pegar num exemplar e leva consigo para nunca se esquecer do porquê de ali estar, naquele momento.

    E depois de momentos reflexivos, a natureza chama e tem de encontrar um restaurante nesta pequena aldeia. Já passa das treze horas e o corpo faz questão de o avisar que precisa de se alimentar. É a primeira vez que vai àquela aldeia, escondida do mundo pelas montanhas, mas tudo lhe parece estranhamente familiar. Decide, então, pedir indicações a um senhor, já com muitas décadas de vida, com um cabelo e uma barba longos, alvos como a neve que insistira em cair durante as últimas festividades do ano transato, e um olhar cansado por detrás dos óculos retangulares, sentado numa cadeira de madeira no alpendre da sua casa, que conta já com quase tantos anos como ele.

    Então, Leandro vai conversar com ele e esse senhor olha-o com um olhar estranho, como se tentasse reconhecê-lo. Leandro faz a pergunta em que pensa desde que chegou.

    ⸻ Bom dia, senhor, sabe onde fica um bom restaurante nesta aldeia?

    E este homem, ao tentar realizar a tarefa hercúlea de se tentar lembrar de quem é aquele viajante que hoje chega à aldeia, não é capaz de perceber a pergunta, então sorri com um ar confuso e diz:

    ⸻ Bom dia amigo, fica já saber que o Senhor está no céu. Pode repetir o que disse depois?

    ⸻ Claro, gostava de saber se há algum restaurante por esta zona?

    ⸻ Ah restaurantes, tem o restaurante do Zé Henrique. Comida caseira é do melhor que há por estas bandas. Olhe, vá por esta rua até à esquina, aí vira à direita e quando chegar à igreja vira à esquerda e vê logo o restaurante, não há como enganar.

    ⸻ Muito obrigado e resto de um bom dia.

    E Leandro entra no carro, cumprimentando o dono da casa à medida que se afasta, não deixando de notar o ar confuso com que o idoso ficou devido ao pressentimento de o já ter visto antes. Leandro segue as indicações daquele homem e chega rapidamente ao restaurante. O Restaurante Falcão é muito simples, muito diferente daqueles que se podem visitar numa cidade maior, como Curre. Mas, desde que entra, é logo conquistado pelo maravilhoso cheiro que flutua no ar, pela decoração fantástica do estabelecimento, com vários mosaicos daquela flor cor-de-rosa que viu logo à entrada de Malaquita, e pelo ar simpático e acolhedor daquele trabalhador que vem na sua direção.

    ⸻ Bom dia, senhor. Eu sou o Zé Henrique, o dono do restaurante, vai querer uma mesa?

    ⸻ Sim, mesa para um, se faz favor.

    ⸻ Então pode vir comigo.

    E seguem os dois em direção a uma mesa ao fundo do restaurante, e Leandro decide fazer uma pergunta ao dono do estabelecimento.

    ⸻ Como se chama esta flor que está a decorar o restaurante?

    ⸻ Esta é a urze, senhor! Uma linda flor que é das poucas que ousa florescer e consegue perdurar no inverno agreste. Uma verdadeira sobrevivente.

    ⸻ Ainda agora cheguei e já criei um fascínio enorme por esta planta. Como se chama aquele senhor de longas barbas brancas que tem a casa logo a seguir a um campo verde?

    ⸻ Esta é a sua mesa, e esse é o senhor António, é inconfundível, tal como esse campo o será, dentro de pouco tempo.

    ⸻ Obrigado.

    ⸻ Está aqui a ementa ou se quiser pode escolher a diária de hoje, que é arroz de pato, que está mesmo a sair.

    ⸻ Escolho a diária e para beber quero uma garrafa de água natural por favor.

    ⸻ E umas entradinhas, vai querer? Azeitonas, pães caseirinhos?

    ⸻ Sim, se faz favor, pode trazer os dois.

    O dono do restaurante afasta-se, vai entregar o pedido à cozinheira e volta com uma garrafa de água de vidro, uma cesta com os pães e um pires com azeitonas. O visitante agradece e o homem afasta-se outra vez. Leandro volta a reparar nele, um homem alto e esguio, sem barba, vestindo um polo com o nome do restaurante e um avental preto por cima das calças. Repara no resto do restaurante, que é pequeno comparado aos padrões que está habituado e não tem empregados. Nas outras mesas estão vários idosos, mas não estão a almoçar, estão apenas a conversar, muitas vezes olhando para ele como se fosse diferente de todos os outros que lá estavam. Mas depois lembra-se que a vida na aldeia é completamente diferente da vida na cidade. Lá todos se conhecem e, afinal, Leandro é um forasteiro, o que naturalmente desperta o interesse das pessoas. Entretanto, chega o almoço trazido pelo amável Zé Henrique e o seu pequeno filho, um rapazinho de cabelo loiro encaracolado e olhos claros que o ajuda trazendo a salada.

    ⸻ Aqui está o seu arrozinho, só lhe peço que tenha cuidado ao pôr a mão na caçarola de barro porque está muito quente. Ângelo pousa a salada ali no canto e pega no pires para o levarmos para dentro! Faça bom proveito, senhor.

    ⸻ Bom apetite. ⸻ Diz a criança entusiasmada.

    Leandro agradece. Apesar de estar na aldeia apenas há algumas horas já se sente em casa e adora ali estar. Sente também que é o melhor arroz de pato que alguma vez comeu, a cada garfada imagina-se cada vez mais perto do paraíso.

    Tenho de agradecer à cozinheira, superou em muito as minhas expectativas, pensa. E continua a comer, aproveitando cada minuto, sem sequer pensar em mais nada, apenas a saborear o momento. Quando acaba a refeição repara que esteve sempre a ser vigiado. Talvez por ser novo naquela terra, esteve sempre debaixo do olhar atento de Ângelo, para que nada lhe faltasse durante a refeição, oferecendo uma hospitalidade invejada por muitos. Mal coloca os talheres de um dos lados da caçarola, vê a criança a chamar o pai. Numa questão de poucos minutos, aparecem os dois com Ângelo a fazer a pergunta para a qual sabia a resposta.

    ⸻ Já terminou?

    ⸻ Sim, podem levantar. ⸻ Responde Leandro.

    ⸻ Vai querer sobremesa? ⸻ Pergunta a criança.

    ⸻ Sim, quero. O que têm?

    Zé Henrique tenta explicar o que têm, mas Ângelo é mais rápido e começa a enumerar as sobremesas.

    ⸻ Temos gelados, pudim, bolo de bolacha e aleijadas.

    ⸻ Queijadas, Ângelo, queijadas. ⸻ Corrige o pai.

    ⸻ Sim, pai. Queijadas e salada de fruta. ⸻ Completa a criança.

    ⸻ Uma fatia de bolo de bolacha e a conta se faz favor. ⸻ Escolhe Leandro.

    Com o entusiasmo de receber este pedido, Ângelo vai a correr em direção à vitrine dos bolos, quase caindo numa parte do chão recém-lavado. Ao chegar à vitrine, espera pelo pai para cortar o bolo e vai, logo, entregar a fatia a Leandro enquanto Zé Henrique faz a conta. Quando o menino chega à mesa, Leandro pergunta se pode falar com a cozinheira e Ângelo vai chamá-la. Elvira chega minutos depois, é uma mulher baixinha e forte, com uns olhos muito semelhantes aos de Ângelo e com uma face que demonstra apreensão, diz:

    ⸻ Boa tarde, o meu filho disse que queria falar comigo, a comida não estava do seu agrado?

    Ângelo aparece nesse momento com a conta na mão, muito feliz por estar a ajudar. Leandro pega na conta e diz:

    ⸻ Muito pelo contrário, dona…

    ⸻ Elvira.

    ⸻ Dona Elvira, o arroz de pato estava divinal, a sobremesa também estava muito boa, mas este arroz de pato não vou esquecer tão cedo. Hei de vir sempre ao seu restaurante enquanto permanecer por Malaquita. Por falar nisso, sabe onde me posso alojar esta noite?

    ⸻ Malaquita só tem uma pensão, é ao fundo desta rua. Agradeço imenso o que disse e espero mesmo que esteja satisfeito.

    Leandro deu uma nota à criança, dando-lhe instruções de que era para pagar o almoço e que depois poderia ficar com o troco. Na despedida, após se agasalhar vestindo o seu casaco, acenou a todos os que ainda se encontravam no estabelecimento, desejando a continuação de um bom dia. Esta simples ação, quase involuntária, fê-lo pensar que além de estar a ser contagiado pelo espírito tão acolhedor dos moradores locais, em Curre nada disto seria possível à saída de um restaurante, onde poucos ou mesmo ninguém se conhece.

    Agora, depois de saciado o corpo, é necessário saciar a alma, procurando aquilo a que se propôs encontrar nesta terra. Entra no seu carro e percorre a aldeia, contemplando cada pormenor de cada casa, de cada campo, de cada pessoa, com esperança de encontrar algo que o ajude no caminho que tem a percorrer. Entretanto, um sítio chama-lhe a atenção, uma velha mina, nada de especial. No passado, provavelmente retiraram de lá todo o minério que conseguiram e agora só resta uma pilha de entulho à entrada. Mas algo desperta a sua curiosidade, não sabe bem o quê, contudo decide investigar, na expectativa de ser aquilo o que procura. Ao chegar perto do local repleto de fragmentos, um deles capta a sua atenção, um que parece ser o decalque de um brasão, talvez do dono da mina. Todas estas opções passam pela sua cabeça e continua à procura. Encontra uma peça que encaixa perfeitamente na outra e aí se confirma, é um brasão que era muito usado no passado pelas famílias mais poderosas. O brasão aparentemente tem a imagem de um animal, talvez um leão, outra vez um leão, admirou-se Leandro, parece que hoje estou a ser perseguido por leões, mas pelo menos sempre é melhor ser perseguido desta forma que, mesmo assim, me causa muitas incógnitas, do que ser verdadeiramente perseguido e atacado por eles, isso sim seria terrível. Brincando com a constatação, repara também num outro pormenor. Numa outra peça de metal está um nome, possivelmente o nome da família a quem pertencia aquele brasão. Calluna.

    Por momentos, Leandro olha à sua volta tentando encontrar alguma lógica para tudo o que está a viver. O cenário que visualiza foi palco de uma das maiores explorações de minério da região e, embora ele não disponha de nenhuma informação, tem a sensação de que algo marcante ali se passou. Não sabe se se trata de algo mais deslumbrante ou de algo mais angustiante, mas o seu pensamento leva-o para este último. Afinal de contas, a mina está completamente abandonada, talvez por escassez de minério naquele local, sim, pode ser uma justificação, mas ele não acredita nessa teoria. Alheio a tudo isso, um pequeno corvo preto com um bico fino e acinzentado pousa agora junto a si, é o primeiro sinal de vida que Leandro vê naquele local, decide tocar-lhe, mas quando o tenta fazer este foge e isso leva-o a pensar que tem de fazer o mesmo, fugir, ou pelo menos abandonar por agora aquele local. Não sabe se lhe irá ser útil voltar lá novamente, mas a pulga ficou atrás da orelha e ele, apesar de estar convicto de que a mina nada tem a ver com aquilo que o levou a Malaquita, quer saber mais acerca da história e do que ali aconteceu no passado.

    Como tal, Leandro vê-se obrigado a dirigir-se àquela casa isolada, pequena comparada a tantas outras naquela aldeia, uma casa com um único andar. Quando lá chega, vê o mesmo idoso, exatamente no mesmo sítio de há tantas horas, sentado na cadeira de sempre a olhar para o horizonte. Leandro faz sinal e pede para entrar no alpendre para conversar. O homem assentiu e Leandro ficou estupefacto, visto que na cidade nada disto seria possível, o idoso pensaria que era um assalto ou algo semelhante. Mas aquele homem foi diferente, confiou em Leandro apesar de apenas ser a segunda vez que o vê... Então ele entra, com a tal peça de metal que trouxe da mina entre as mãos, sem saber ao certo o que há de perguntar. Mal se aproxima, o idoso diz:

    ⸻ Tenho ideia de que já nos vimos antes. Mas não me lembro do seu nome…

    ⸻ Eu pedi-lhe informações esta manhã. Leandro Dimas, muito prazer.

    ⸻ Eu sou o António Montes e o prazer é todo meu. O que o traz por cá?

    Leandro hesita na resposta e acaba por apenas pegar na peça de metal, dando-a para a mão de António.

    ⸻ Encontrei esta peça na mina. Podia-me…

    ⸻ Não. Não sei nada disso. Eu tenho de ir para dentro, esta conversa fica para outra altura.

    António ficou muito consternado e deixou cair a peça enquanto voltava o mais rapidamente possível para dentro de casa. Até um estranho como Leandro reparou que ele não estava bem, mas não havia nada que pudesse fazer. Sabia que teria de voltar a falar com António, mas era preciso tempo, e tempo é uma coisa complicada de se ter…

    Capítulo II ⸻ Âmbar

    A completa sensação de que a outra pessoa está a esconder aquilo que se quer saber deixa qualquer um corroído e Leandro não foi exceção.

    Sozinho, naquele alpendre, ficou pensativo olhando para o metal e para o horizonte, em busca de respostas. Mas nada aconteceu, nenhuma resposta magicamente apareceu, mas emergiram muitas outras perguntas… Decidiu continuar a procurar, entrou no carro e foi dar mais uma volta pela aldeia, pensando se deveria voltar a ir à mina ou não. Entretanto, anoiteceu. E ele foi à pensão para arranjar alojamento, sem data de saída definida. Foi fácil, todos os quartos estão vagos, aparentemente Malaquita não é uma aldeia turística. Ainda bem para o Leandro.

    À noite, quando se encaminha para jantar no mesmo restaurante em que almoçou, logo à entrada Zé Henrique caminha na sua direção e quando chega perto diz:

    ⸻ O senhor chama-se Leandro Dimas, certo?

    ⸻ Sim, sou eu.

    ⸻ O senhor António Montes ligou e pediu que lhe transmitisse o seu pedido de desculpas e que o convida para um almoço no próximo domingo. Pronto, mensagem entregue. Vai querer uma mesa?

    ⸻ Obrigado, pode dizer-lhe que aceito. E sim, quero, se faz favor.

    ⸻ Então venha comigo.

    O jantar correu normalmente, já sentia que ir ao restaurante era rotina e deixou de reparar nos pormenores que da primeira vez o deixaram estupefato. Agora sente uma ansiedade crescente pelo fim-de-semana. Algo lhe diz que vai acontecer alguma coisa muito importante no domingo.

    Após jantar, Leandro dirige-se à pensão, a única naquela aldeia, e segue diretamente para o quarto anteriormente reservado, com a chave na mão. Esta chave é muito maior do que as outras que tem no bolso. É uma chave dourada decorada com uma flor na ponta. O quarto está no terceiro andar e a pensão não tem elevador. Então sobe as escadas, afinal é a única opção. E finalmente chega, já um pouco cansado. Apesar da sua jovialidade, carregar uma mala verde pesada por três andares cansa. Então, mete a chave na porta e abre-a. Entra e a primeira coisa que repara é que o quarto é pequeno e está bem limpo, mas todo o mobiliário é extremamente antigo. Tudo isto aparenta não ser usado há anos. É aqui que vai ficar nos próximos dias. Atira-se para cima da cama de casal que agora irá chamar de sua e fica a olhar o teto branco por momentos sem limite de duração, simplesmente a olhar para o nada, tentando dar paz ao corpo e à alma. De repente, surge uma ideia na sua cabeça, tem de ligar a Flora. Ainda não falaram desde aquela despedida naquela manhã.

    Em Curre, Flora está já preparada para descansar depois de um longo e preenchido dia de trabalho. Sem esquecer o seu jardim, do qual cuidou ao final da tarde mal chegou a casa, o seu dia foi repleto de aulas, de reuniões e teve ainda de acabar de corrigir os testes dos seus alunos que prevê entregar no dia seguinte. Flora Daniela é professora de biologia e geologia do ensino secundário e exerce a profissão com o maior dos seus orgulhos, tem a sorte de fazer aquilo que sempre quis, aquilo pelo qual sempre lutou e ser professora é aquilo que se imagina a fazer para o resto da sua vida. A sua outra paixão, além da de ser professora, encontra-se, nesta altura, a centenas de quilómetros de si, numa aldeia perdida por entre campos e serras, em busca de algo que avive a sua memória e que permita descodificar parte da sua vida. Na verdade, e apesar de Leandro nunca ter gostado de falar muito sobre o assunto, Flora sabe que ele não tem qualquer recordação da sua infância, simplesmente não se lembra de nada do que aconteceu nos primeiros anos da sua existência. Para ele, parece que a sua vida só começou quando a Curre chegou. Mergulhada nestes pensamentos, a professora ouve o toque do seu telefone. Só pode ser o Leandro. Olha para o telemóvel e vê uma foto, uma pessoa com o cabelo desalinhado, de cor castanho-escura, curto, embora já desse para observar a sua natureza encaracolada. A curta barba era da cor do cabelo, o que contrastava com os fascinantes olhos claros de uma cor que lhe fazia lembrar o âmbar, um material que já tanto estudara. É Leandro. Aquele que prometeu ligar-lhe todos os dias, e que nunca iria desiludi-la. E atende o telemóvel.

    ⸻ Estou, Leandro és tu? ⸻ Diz Flora, sabendo a óbvia resposta.

    ⸻ Sim, querida. Estou a morrer de saudades tuas…

    ⸻ E eu tuas, e o Léo também. Ele já correu a casa toda à tua procura. Quando voltas? ⸻ Pergunta Flora, já com a voz alterada.

    ⸻ Amor, não sei. Eu quero muito voltar, mas tenho de resolver isto e ainda só cheguei hoje. Eu vou ter um almoço no domingo e tenho a sensação de que vou descobrir alguma coisa.

    ⸻ Ainda bem…

    ⸻ Anima-te Flora. Já tenho a tua prenda para quando voltar. Vais adorar.

    ⸻ Não precisas de comprar nada.

    ⸻ Achas que não te levava nada depois disto? Sei que é a primeira vez em que estamos separados mais do que um dia, mas esperava que acreditasses mais em mim… E sim já comprei porque tu mereces. ⸻ Diz Leandro tentando animá-la.

    ⸻ Eu sempre soube que me ias trazer algo, mas o meu maior desejo era que voltasses, e

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