Espiritualidade Conjugal e Familiar
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Espiritualidade Conjugal e Familiar - Humberto Robson de Carvalho
APRESENTAÇÃO
A questão da família tem-se apresentado com frequência à Igreja em seus sínodos, encontros e documentos. Os últimos pontificados colocaram a temática da família em sua complexidade como central e indispensável para a missão da Igreja no mundo contemporâneo. Para o papa Francisco, a família é um elemento constitutivo da Igreja , que é uma grande família de famílias , que se empenha em anunciar a Boa-nova de Jesus a todos os povos, inclusive às periferias geográficas e existenciais de uma sociedade cuja estrutura é de descarte.
Em uma sociedade de rápidas mudanças sociais e culturais, a família vê-se questionada a repensar-se. A rigidez de estruturas e modelos consagrados pela história passada encontra-se severamente atingida pelas críticas oriundas dos movimentos de libertação, consolidados no século XX. Os antigos modelos e configurações já não estão presentes no horizonte cultural do século XXI, e uma atitude restauracionista não colabora para preservar o que seja valoroso. Diante dessa situação, pergunta-se: como cristãos, o que fazer e pensar em relação à família? Quais são os valores que devem fundamentar a experiência cristã da família?
Como comunidade de fé que caminha na história comprometida com o Reino de Deus e na espera de seu advento, a Igreja é chamada a responder, com amor e misericórdia, às questões nascidas da crise da família, a partir de um discernimento evangélico, realizado sob a ótica da fé, que lança luz sobre os pontos positivos e negativos que dinamizam a vida familiar na atualidade. Esse discernimento, todavia, não se realiza longe das fronteiras de missão da Igreja, mas nasce principalmente nas paróquias e comunidades espalhadas pelo mundo. É na paróquia que a família é chamada a ser pensada e acolhida no conjunto da missão da Igreja.
A Igreja, enquanto comunidade de fé que se encarna nas diversas realidades do mundo, é chamada a servir às famílias como uma mãe que cuida dos filhos com amor, misericórdia, atenção e dedicação. As questões que nascem da cultura atual tocam concretamente as comunidades cristãs e devem despertar nelas o desejo de seguir mais prontamente a Jesus Cristo, assumindo sua postura de misericórdia, acolhida incondicional e cuidado para com os caídos no caminho.
As reflexões propostas neste livro intencionam ser uma contribuição para que a espiritualidade cristã se torne o meio pelo qual a ação pastoral paroquial seja eficaz, chegando às famílias com o amor que Cristo dispensou às famílias encontradas por ele ao longo de seu ministério. O dever de cuidar, amar, acolher, acompanhar e integrar as famílias, que se fazem presentes nas diversas comunidades cristãs ou que são atendidas por ela, é um dever assumido comunitariamente e inspirado evangelicamente. Justamente por isso, a espiritualidade cristã torna-se o caminho pelo qual o Evangelho encontra corações abertos para acolhê-lo e espíritos corajosos para dispensá-lo na missão de amar e servir a todos.
Dom Ricardo Hoepers
Bispo diocesano de Rio Grande-RS e secretário-geral da CNBB
INTRODUÇÃO
A fé professada e vivida pela Igreja insere-se no mundo concreto e coloca-se em diálogo com ele. A experiência de fé característica do cristianismo é necessariamente uma experiência de diálogo e de encontro com o outro. Por isso, a fé e a reflexão que dela emanam não visam à apresentação de temas e propostas rigidamente definidas, mas abrem-se ao encontro das diversas realidades que permeiam a vida humana , deixando-se interpelar pelas questões que surgem a partir dela. A reflexão cristã sobre a fé professada e vivida, especialmente no contexto da espiritualidade, nasce e se desenvolve em torno de temas próprios da vida diária dos milhares de cristãos. A família, no contexto sociocultural da contemporaneidade, surge como uma temática de fundamental importância: A alegria do amor que se vive nas famílias é também o júbilo da Igreja
. ¹
A etimologia, isto é, a origem da palavra família
desenvolveu-se ao longo da história à medida que o contexto cultural e social se modificou. A diversidade de significados que o termo família
possui expressa a amplitude de sua importância para a sociedade. Família pode significar lar
, casa
, conjunto de pessoas
, parentalidade
, comunidade educativa
, constituição jurídica
, fundamento social
, entre outras várias possibilidades. A palavra família
denota sempre uma condição de relação, expressa sempre um ser humano em relação com outro. As diversas manifestações e configurações destas relações são objetos de reflexão da teologia moral, da ética, da sociologia e outras áreas do saber. Para a espiritualidade, a reflexão sobre a família fundamenta-se na sua condição de lugar privilegiado de relação e comunhão entre iguais
.²
A família é um lugar sagrado
, segundo as palavras de João Paulo II. A sacralidade da família é conferida pelo próprio Deus desde a criação. A criação do ser humano supõe a capacidade de relacionamento do homem e da mulher e sua vocação à comunhão de vida e dons.³ Ninguém foi criado para viver só. O próprio Deus não vive só. A vocação humana à comunhão é reflexo de sua condição de imagem de Deus
. Deus Trindade está sempre em relação. O ser humano, imagem e semelhança de Deus
, é e deve sempre estar em relação.⁴
A condição humana de ser de relações é marcada pelo chamado ao amor. Deus é Trindade porque se relaciona amorosamente e permite que este amor transborde em direção a toda criação: Hoje podemos dizer também que a Trindade está presente no templo da comunhão matrimonial
.⁵ O Deus criador se revela e se comunica amorosamente com a criação, especialmente por meio de Jesus Cristo. A fé cristã vê em Jesus Cristo o ápice da revelação de Deus e seu rosto amoroso. Ao se encarnar em uma família e viver no seio de uma comunidade familiar, Jesus Cristo expressa a importância da família no plano da salvação. A família é o lugar da acolhida e da hospitalidade, é ela a responsável pela educação e pelo cuidado do dom da vida: ‘Não descuideis da hospitalidade, pois, graças a ela, alguns hospedaram anjos, sem o perceber’ (Hb 13,2). Quando a família acolhe e sai ao encontro dos outros, especialmente dos pobres e abandonados, é ‘símbolo, testemunho, participação da maternidade da Igreja’
.⁶
As novas configurações familiares, as dificuldades encontradas para se compreenderem o significado profundo do matrimônio e a resistência à transmissão da vida, como também as várias formas de violência que ferem a vida no seio familiar, são questões que tocam diretamente a reflexão cristã sobre a família. Diante de um cenário conturbado em que os valores que fundamentam a visão cristã a respeito da família sofrem duros questionamentos, a Igreja vê-se chamada a dar uma palavra que possa colaborar no discernimento e na progressiva caminhada de conversão ao projeto de Deus.⁷
A palavra proferida pela Igreja em relação à família tem como fonte a Palavra de Deus: Jesus quis viver em uma família, aprender nela a arte de ser homem e responder aos problemas de seu meio (Lc 2,39-40). É na família que Jesus se relaciona com o mundo e com os homens; a partir dela é que foi ampliando-se o círculo até dimensões mais vastas. Não é estranho que a família de Jesus tenha constituído o modelo tradicional das famílias cristãs. Acontece que cada família quer ser um lar no qual Jesus nasça diariamente e, com ele, uma nova forma de vida e de relação com os problemas humanos
.⁸
O papa Francisco, à luz da Palavra de Deus, ressalta frequentemente a primazia da misericórdia, especialmente diante de situações difíceis. A atuação da Igreja, afirma o pontífice, deve ser como a de um hospital de campanha que cuida dos feridos e depois lhes oferece meios para fortalecer a saúde.⁹ Muitas são as famílias cristãs que estão feridas pelos mais diversos motivos. Tais