O rochedo dos amantes
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O rochedo dos amantes - Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho
CAPÍTULO 1
A aldeia
Era uma tarde ensolarada de domingo, quase ao crepúsculo, quando conheci Jair. Estava nosso personagem sentado numa grande pedra, olhando o mar, fascinado.
Atrás dele, uma aldeia como que adormecida. Podia-se com um simples olhar contar as pequenas casas, que contornavam uma única rua, tendo ao centro uma pequena capela. As casas de tijolos eram poucas, pintadas de verde-claro ou branco. Mas a maioria construída com barro e taquara. O comércio consistia em um armazém-bar e uma oficina de barcos, onde faziam consertos e construíam pequenas embarcações de pesca.
Os moradores ou viviam da pesca ou eram pequenos agricultores. De cima da pedra onde estávamos, viam-se as pequenas plantações de diversos cereais, que eram consumidos pelos próprios moradores, cujas sobras eram levadas para serem vendidas na cidade vizinha. Este centro maior ficava a sessenta quilômetros pela estrada esburacada e poeirenta, mas de barco, pelo mar, ficava bem mais perto. Esta cidade também não era grande, mas, em proporção à aldeia, era o lugar de recurso, onde havia médico, remédios e mercadorias para serem compradas ou sonhar em adquirir.
– Que lugar encantador! – exclamei maravilhado.
A natureza ali se fazia pródiga; o mar de um azul lindo parecia transparente nos lugares mais rasos, onde se podiam ver os peixinhos a nadar despreocupadamente. A praia não muito extensa, de areias claras, com pequenas e lindas pedras escuras, quase negras. Quando as ondas quebravam, formavam espumas brancas que desmanchavam na areia. Em volta da minúscula praia estava o rochedo. Lindas pedras de interessantes formatos. Um paredão natural onde as águas batiam sem descanso. Alguns coqueiros e poucas árvores se agitavam dando vida àquele lugar que mais parecia uma pintura de um artista inspirado.
Ali estava com um amigo, Ambrósio, que, quebrando meu estupor, me falou sorrindo:
– Antônio Carlos, aqui está Jair, a causa principal de nossa presença na aldeia.
Olhei para Jair, menino ainda, doze anos talvez, cabelos curtos, castanhos, olhos profundos, enigmáticos, rasgados, lembrando nossos irmãos orientais. Nariz reto e lábios finos parecendo desconhecer o sorriso. Apresentava-se descalço, calças curtas presas com um cordão e camiseta de mangas curtas.
– Tem nosso amigo quinze anos – Ambrósio completou a informação.
Voltei a olhá-lo, mas agora como médico a examiná-lo.
– Está com anemia, é magro e baixo para sua idade. Tem três focos de infecções pequenas na perna esquerda, necessita de cuidado.
– Poderia ajudá-lo? – indagou meu amigo Ambrósio.
Afirmei com a cabeça e comecei a trabalhar com a atenção voltada para as três infecções logo acima do tornozelo, do lado externo da perna, formando um triângulo equilátero. Após uns minutos sangue e pus escorreram pelo seu pé.
Jair olhou seu ferimento sem se emocionar, desceu pelas pedras e lavou a perna na água limpa do mar.
– Vai sarar logo – resmungou.
– Vai? – Ambrósio duvidou. – Acho que não!
Estava curioso para saber dos detalhes que envolviam aquela aldeia perdida no litoral brasileiro. Aguardaria o desenrolar dos acontecimentos, mas ousei perguntar:
– Ambrósio, Jair mora na aldeia?
– Sim, naquela casa de barro ao lado esquerdo daquela frondosa árvore. Vê? – indagou mostrando a casa e continuou: – Mora com os pais e dois irmãos. A família é mais numerosa, seis filhos, todos homens, os mais velhos estão na cidade vizinha, onde trabalham.
Jair novamente voltou à posição anterior. Olhava o mar de cima da pedra, quase não se movia. Poucos ruídos se ouviam, o barulho das ondas e, às vezes, o canto de alguma gaivota ou pássaro. O sol perdia-se no horizonte anunciando que logo se esconderia, deixando a noite reinar.
A não ser pelo movimento de um ou outro habitante que voltava do trabalho para casa e do balanço das folhas dos coqueiros pelo vento, tudo parecia, naquela pequena vila, sem vida, quieto e triste.
Olhei para Ambrósio, que meditava sentado a alguns metros do garoto. Silenciosamente esperei pelas suas explicações. Ainda ressoavam em minha mente as palavras de um amigo comum: Antônio Carlos, gostaria que acompanhasse Ambrósio a uma tarefa interessante
. Fez uma pausa e me observou, a palavra interessante tivera o efeito desejado. Com um sorriso franco, continuou este caro amigo: Ambrósio tem permissão de ir à Terra em trabalho para ajudar Sara, que em encarnação anterior foi Nizá. Você acompanhará este amigo e o auxiliará a ajudar espíritos queridos em momentos difíceis
.
Certamente acompanhei com imenso prazer. E ali estávamos. Observei Ambrósio: muito simpático, forte, rosto grande, sorriso aberto e olhar profundo.
Era quase noite, a claridade escasseava. Olhei para o menino, sua aura estava suja, carregada de fluidos inferiores que não se concentravam em nenhuma parte do corpo, pois, se isso acontecesse, ele adoeceria gravemente. Esses fluidos circulavam como uma corrente elétrica em volta do seu corpo. Já tinha visto muitas auras assim. E, para cada caso, um fato diferente contribuía para que essa energia negativa estivesse desse modo. Normalmente, algo de muito errado acontecia. Pessoas assim ou estariam fazendo o mal ou colaborando com a maldade. Jair era médium, notei logo que o vi, apesar da pouca idade naquele corpo. Ele estava adaptado a essas vibrações. Ia analisá-lo melhor, mas não deu tempo. Dois barcos apareceram e logo chegaram à praia. Jair num pulo desceu da pedra e correu ao encontro dos dois homens que desceram à praia.
– Trouxe? – perguntou Jair em voz baixa a um dos homens que era grande, forte e bem moreno.
– Aqui está. O dinheiro que me deu para comprar tudo que me pediu – respondeu o barqueiro.
– Está bem, obrigado.
Jair pegou uma caixa e agradeceu novamente ao homem. Deu uma rápida olhada no conteúdo da caixa e determinou com firmeza:
– Você não se arrependerá por me ajudar. Ainda vou ganhar muito dinheiro e não me esquecerei dos que me ajudaram.
O barqueiro o olhou de modo esquisito, virou as costas e continuou com seus afazeres. Jair saiu da praia segurando a caixa como se fosse um tesouro. Mas, em vez de ir em direção à aldeia, caminhou rápido em direção a uma grande pedra no rochedo, do mesmo lado em que estivera momentos antes.
Nós o seguimos. Jair caminhava rápido entre as pedras, demonstrando conhecer bem o lugar. O rochedo era acidentado, algumas pedras maiores se destacavam das demais. O menino ia contornando as grandes e, em frente a uma pedra enorme, o garoto demonstrou que chegou. Entre duas pedras, havia uma passagem estreita, porém permitia com facilidade a passagem de uma pessoa adulta. Essa cavidade ficava bem escondida.
Jair entrou e entramos atrás. Vimos um desencarnado que guardava a gruta, ele não nos viu, era um espírito que servia as trevas. Descemos por uns três metros por um corredor um pouco mais largo que a entrada. A estreita passagem dava para um salão alto e largo no meio das pedras. O guarda, demonstrando ser bom vigia, verificou se Jair não fora seguido.
Jair sentou-se num canto e acendeu uma grande vela que estava colocada em um vão da pedra. Uma claridade tênue iluminou a gruta. O local era bonito, uma gruta natural de pedras escuras.
O menino estava à vontade como se aquela caverna lhe pertencesse. Abriu a caixa e tirou de dentro dela velas coloridas de formas variadas de animais e da figura lendária do demônio. Tirou também garrafas de bebidas alcoólicas e charutos. Colocou esses objetos com cuidado em lugares específicos.
A vibração da gruta não era boa, não gostei do local, mas nada comentei. Ambrósio só observava, como eu. O ar estava carregado e o cheiro era nauseabundo, uma mistura de mofo, sujeira e carnes podres, embora a gruta estivesse bem varrida e aparentemente tudo em ordem e no lugar.¹
O chão de pedra não era reto, declinava ao lado oposto da entrada e nessa parte era bem alto o salão. E ali estava uma mesa pequena servindo de altar. Do lado direito da mesa, um objeto de um palmo e meio de altura, coberto por um pano branco, sujo. No meio, um grande cinzeiro de vidro, cor cinza, que certamente era usado para os fumadores de charutos.
– Antônio Carlos – pediu Ambrósio depois de um prolongado silêncio –, observe isto! – e mostrou o lado esquerdo da mesa.
Um grande rato comia um talo de galho seco. Jair viu o rato e não se importou. Perto do rato, uma travessa feita de bambu. Ambrósio aproximou-se do recipiente e observou as folhas que estavam nele.
Jair acabou de colocar pelo salão os objetos que trouxera.
– Para amanhã, tudo pronto! – exclamou em tom alto.
Acendeu um fósforo na vela, depois apagou-a com um sopro e saiu. O vigia desencarnado, que o tempo todo ficou a observá-lo, saiu na frente para verificar se não havia ninguém pelos arredores. Ao sair da gruta, o fósforo de Jair apagou, mas ele não se deu ao trabalho de acender outro. Caminhando rápido na escuridão da noite, desceu o rochedo e tomou o rumo da aldeia.
– Vamos sentar aqui um pouco – convidou Ambrósio. – Jair certamente irá para sua casa, logo iremos ter com ele. Antônio Carlos, você viu aquelas folhas? São de coca, planta da qual se extrai a cocaína.
– Bem estranho! – comentei. – Gostaria que me contasse o que viemos fazer aqui. Vim com você para ajudarmos Sara e até agora não a vi.
– Você a conhecerá dentro de pouco. Apesar de que, sempre ao ajudarmos alguém, esta ajuda envolve muitas pessoas.
– Certamente – respondi compreendendo. – Jair deve estar entre estas outras pessoas. O garoto é um menino raro, poucas vezes vi corrente fluídica como a que circula pela sua aura. Se ele souber projetá-la, pode fazer muito mal.²
– É nosso objetivo impedi-lo – explicou Ambrósio. – Jair é filho de Sara, espírito que quero bem. E este menino a está preocupando muito. Pediu, com fé a Deus, e aqui estamos para ajudá-la.
– Voltaremos à gruta?
– Não, vamos à casa do garoto; amanhã cedo voltaremos a este esconderijo.
– É de fato um perfeito esconderijo – concordei. – Um lugar de difícil acesso, a entrada bem escondida.
– Um capricho da natureza! É um lindo lugar! – exclamou Ambrósio.
– Este lugar é conhecido?
– Acredito que não. Este rochedo tem fama de assombrado e aqui quase todos temem o sobrenatural. Alguns sabem que a gruta existe, mas não sabem onde fica e os poucos que sabem aqui não vêm. Esta furna tem o nome de Gruta dos Demônios e este rochedo chama-se o Rochedo dos Amantes.
– Gostaria de ver melhor este lugar.
– Vamos, Antônio Carlos, Jair deve estar chegando em sua casa.
Volitamos até a casa dele e chegamos juntos. Ao nos