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CLIO EM CLOSE: HISTÓRIA E CULTURA
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E-book426 páginas5 horas

CLIO EM CLOSE: HISTÓRIA E CULTURA

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Sobre este e-book

Há neste livro alguns closes de Clio, a musa da História, tratados em vários pequenos artigos sobre alguns temas bem díspares e que levam à discussão da relação da História com a Literatura, Filosofia, Cinema, Religiosidade e Política. Enfim, História Cultural quando os vários temas abordados foram enfocados com a utilização da contribuição teórica de importantes autores, historiadores, filósofos, sociólogos e escritores de ficção e cineastas, que ajudaram a pensar a História e a cultura histórica.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento3 de out. de 2023
ISBN9786553706781
CLIO EM CLOSE: HISTÓRIA E CULTURA

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    CLIO EM CLOSE - Aulo Plácio G. Neiva

    CAPA.jpg

    Aulo Plácio G. Neiva

    CLIO EM CLOSE

    HISTÓRIA E CULTURA

    Goiânia-GO

    Kelps, 2023

    Copyright © 2023 by Aulo Plácio G. Neiva

    EDITORA KELPS

    Rua 19 nº 100 - St. Marechal Rondon

    CEP 74.560-460 - Goiânia-GO

    (62) 3211-1616

    kelps@kelps.com.br

    www.kelps.com.br

    Arte da Capa

    Felipe Fonseca Gontijo Neiva

    Programação Visual

    Victor Marques

    CIP — Brasil — Catalogação na Fonte

    Dartony Diocen T. Santos CRB-1 (1º Região)3294

    DIREITOS RESERVADOS

    É proibida a reprodução total ou parcial da obra, de qualquer forma ou por qualquer meio, sem a autorização prévia e por escrito do autor. A violação dos Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.

    SUMÁRIO

    HISTÓRIA: LITERATURA E FILOSOFIA

    Camus: literatura e história

    Narratividade, memória e história: a literatura confidencial de Henry Miller

    Kafka: angústia, história e poder

    Ficção e história na literatura de Jô Soares

    Nietzsche, a história e a crítica da racionalidade moderna

    Popper e a crítica ao historicismo

    Marxismo, ética e história

    HISTÓRIA E CINEMA

    Memória e história nos filmes de Fellini

    Cinema e história: ambivalência na representação dos indígenas nos filmes norte-americanos

    Imbilino: história cultural e cinema popular em Goiás

    História e cristianismo: representações de Jesus no cinema

    Leni Riefensthal e O triunfo da vontade

    HISTÓRIA: CULTURA, RELIGIOSIDADE E POLÍTICA

    Cartas do Araguaia: idealismo e militância em Inez Ethne (1978-1986)

    A construção da fé: padre libério e a religiosidade popular no Oeste de Minas Gerais

    Thompson: um pouco de reflexão historiográfica

    A idealização da cidade e os becos reais

    O Partido Leninista contra o movimento operário

    Palavras finais

    APRESENTAÇÃO

    Este livro foi realizado a partir de vários artigos, todos pequenos, cada artigo com sua própria história. Alguns foram desdobramentos de textos menores que elaborei para ministrar minicursos e palestras, outros foram artigos que produzi com a intenção de publicar em revistas, muitos foram resultados de projetos de pesquisa realizados pela UEG; há aqui seis que foram publicados. Há textos que foram complementados, melhorados, a partir de trabalhos anteriores, inclusive alguns artigos já publicados em revista sofreram algum acréscimo e modificação. O livro está dividido em três partes, sendo Parte 1: História, Literatura e Filosofia, composta por sete artigos; Parte 2: História e Cinema, com cinco artigos, sendo um deles só com duas páginas, pois originalmente foi escrito para um jornalzinho do curso de História da UEG/Itapuranga; Parte 3: História: Cultura, Religiosidade e Política, composto por cinco artigos.

    O artigo Nietzsche, a história e a crítica da racionalidade moderna foi o início de uma reflexão maior (um livro sobre Nietzsche), que pensei em fazer sobre este pensador do século XIX, o século da história científica, e sua influência na produção historiográfica contemporânea, sobretudo naquilo que muitos convencionaram denominar paradigma pós-moderno. Mesmo não abandonando tal pretensão, coloco-o aqui junto com os outros devido a se enquadrar perfeitamente no cerne da reflexão realizada sobre a produção da narrativa historiográfica. Pois todos os artigos têm em comum a reflexão que procura relacionar a narrativa histórica a algumas perspectivas teóricas que hoje ocupam muito os historiadores. É preciso dizer que ele foi publicado na revista Building The Way, da UEG, Itapuranga, com o título Nietzsche e a história. Mas aqui aparece com alguns acréscimos.

    A discussão historiográfica que enfoca a relação entre narrativa histórica e narrativa literária, refletindo também sobre a relação entre memória e história, é tratada em vários artigos. Um deles é Narratividade, memória e história: a literatura confidencial de Henry Miller. Neste artigo, procuro aproximar esta discussão com a obra do escritor norte-americano Henry Miller, grande escritor, que influenciou gerações inteiras, mas estranhamente ausente em muitos livros sobre a literatura norte-americana.

    Trabalhando a relação entre história e literatura, há também os artigos sobre Kafka e sobre Camus. Kafka: angústia, história e poder busca discutir a relação entre história e poder na obra do escritor judeu tcheco, acompanhando a posição de vários intérpretes quanto a este tão importante escritor.

    Há uma corrente filosófica do século XX, que em certos ambientes acadêmicos, principalmente ligados à História, atualmente é um pouco desdenhada: o existencialismo, mas que rendeu excelentes discussões na história e para a História. Em Camus: literatura e história, enfoco Albert Camus, um escritor próximo ao existencialismo, que fez interessantes reflexões filosóficas e históricas, sempre negando ser existencialista, embora seu pensamento seja indissociável desta corrente. A discussão sobre o poder, sua relação com a história, aí aparece também, inevitavelmente, e enfatizo exatamente a visão camusiana acerca do poder. A revista Building The Way publicou este artigo.

    O artigo Ficção e história na literatura de Jô Soares, que igualmente versa sobre a relação entre narrativa histórica e narrativa literária, foi suscitado por exemplos radicais que, às vezes, eu dava para meus alunos quanto ao fato de que o escritor de ficção não ter compromisso com a verdade histórica, diferente do historiador. Nesse sentido, citava os romances do escritor humorista, Jô Soares, que mesclam fatos históricos com situações fictícias. Aí a discussão sobre narrativa histórica e literária continua. Artigo também publicado em Building The Way.

    Meu gosto por cinema, por filmes, fez com que eu tratasse em alguns artigos a relação entre cinema e história. Não trato de questões técnicas sobre cinema, mas, apenas discutindo conteúdos de alguns filmes, procuro ver questões sociais e históricas presentes neles. Em Cinema e História: ambivalência na representação dos indígenas nos filmes norte-americanos, procuro criticar a limitação, eu diria mesmo uma visão bastante estreita, de como são tratados os filmes de western em muitos livros didáticos. Há, não raro, em muitos desses livros, uma generalização quanto aos filmes, os quais são criticados de maneira leviana por textos que procuram desancá-los, pois, segundo esta ótica defeituosa, eles enaltecem os brancos e demonizam os índios. Sob pretexto de se colocar ao lado dos índios, esses textos didáticos caluniam muitos clássicos do western. Procuro, na análise de alguns desses filmes, desmistificar esta visão deturpada, mostrando como muitos deles, considerados anti-indígenas, tratados como racistas mesmo, não são isso que falam. Dedico-me, todavia, aos filmes – é este o objetivo do artigo –, e não aos livros didáticos. Estes seriam objeto de um outro artigo. Este artigo também foi publicado na revista Building The Way.

    Outro artigo sobre cinema e história é Memória e história nos filmes de Fellini, que, como o título anuncia, trata de trabalhar a questão da história e da memória nos filmes deste fantástico cineasta italiano. São filmes, que, embora alguns discordem, trazem a marca da memória deste diretor, e a marca da memória de importante época desde a Itália fascista (tratada no filme Amarcord) até questões contemporâneas posteriores, como aparecem em Cidade das mulheres, obra que trata do machismo e do feminismo. Recentemente, este artigo foi publicado na Revista Sapiência: sociedade, saberes e práticas educacionais, da UEG de Iporá.

    Um dia, em minhas viagens de Goiânia para Itapuranga, onde trabalhava, lecionando na UEG (agora estou na UEG de Goianésia), o motorista do ônibus, Seu Manoel, colocou um filme goiano, que, a princípio, achei muito tosco, sobre um personagem popular que lembra bastante o Mazzaropi: Imbilino. Outros filmes do mesmo personagem foram depois colocados pelo mesmo motorista em outras viagens. Então percebi nesses filmes goianos elementos interessantes para se discutir a cultura popular, ainda mais tratada num cinema com muito de confecção artesanal. E resolvi me lançar à pesquisa sobre o tema, tratando de alguns filmes deste personagem interpretado pelo ator Hugo Caiapônia. Esta pesquisa resultou em mais um artigo que compõe este livro.

    O texto História e cristianismo: representações de Jesus no cinema também segue esta linha de pesquisa sobre História e Cinema, artigo no qual selecionei quatro filmes sobre Jesus, realizados em diferentes épocas, com o intuito de discutir neles tão controvertida personagem e suas representações tanto na história como no cinema, dispensando, porém, algumas produções hollywoodianas mais adocicadas.

    O artigo Leni Riefenstahl e ‘O triunfo da vontade’ foi mantido na sua forma original, produzido como um pequeno texto para o jornal do curso de História da UEG/Itapuranga, Factus H, de março de 2007.

    Há dois artigos que foram desenvolvidos a partir de influências familiares bem diretas. Um, que originalmente foi um projeto de pesquisa da UEG, é Cartas do Araguaia: idealismo e militância de Inez Ethne (1978-1986), no qual trato de pequena parte da imensa correspondência de minha irmã (falecida precocemente em 2010), quando era agente pastoral na Prelazia de São Félix do Araguaia. Estas cartas são de uma riqueza inestimável (sem falar no seu enorme valor literário) ao tratar das lutas do povo na região de São Félix do Araguaia, de sua cultura e do trabalho da Igreja ligada à Teologia da Libertação, conduzida pelo bispo espanhol Pedro Casaldáliga (1928-2020). Sobre estas cartas, uma enorme correspondência, é preciso frisar que, pela sua riqueza literária e pelo conteúdo histórico-social e cultural, deveriam ser publicadas em livro próprio, o que nós, familiares, ainda pensamos em fazer.

    O outro artigo feito a partir de influência familiar é A construção da fé: Padre Libério e a religiosidade popular no Oeste de Minas Gerais. Minha mãe sempre foi devota deste padre considerado santo por muitos fiéis seguidores. Ela, invariavelmente, antes da pandemia, ia, como promessa duas vezes por ano à cidade de Leandro Ferreira, MG, onde havia o culto comemorativo de nascimento e morte de Padre Libério. Sempre ia com um dos meus irmãos. Em duas ocasiões fui com ela, o que me ensejou escrever um artigo sobre tal personagem e as questões ligadas a ele e seu legado. Nele, abordo, juntamente com a pesquisa empírica e utilizando os excelentes estudos da antropóloga Lílian Alves Gomes, a religiosidade popular na região e seus desdobramentos institucionais e políticos.

    Há nesse livro artigos que enfocam, sumariamente, o pensamento de Marx e o marxismo. O breve texto Marxismo, história e ética, feito para uma palestra, ao abordar o materialismo histórico e dialético em alguns aspectos, procura buscar as raízes éticas do marxismo em filosofias mais antigas, mais particularmente na filosofia socrático-platônica e aristotélica, e, paradoxalmente, no cristianismo, criticado por Marx como ideologia deturpadora da compreensão do real. Popper e a crítica ao historicismo é um texto despretensioso que procura expor o pensamento do autor austríaco em sua crítica ao que ele denominou historicismo, sobretudo ao historicismo marxiano, alvo dos principais ataques de Popper. O artigo A idealização da cidade e os becos reais discorre um pouco sobre a visão marxista clássica quanto à cidade, relacionando cidade ideal/sociedade ideal, em contraposição a outras representações de cidade. Um texto também sem muita pretensão, mas com alguma reflexão importante.

    O pequeno artigo Thompson: um pouco de reflexão historiográfica, também escrito originalmente para o jornalzinho Factus H, mas com alguns acréscimos, demonstra de maneira bem concisa as perspectivas metodológicas inovadoras para a história de um marxista bastante criativo como este historiador inglês.

    O texto O Partido Leninista contra o movimento operário foi uma extensão de um paper realizado para um minicurso em Semana do Curso de História na UEG/Itapuranga. Neste texto foi enfocado o autoritarismo do partido de Lenin em relação ao movimento operário e social, fazendo com que este movimento perdesse sua autonomia. Devo dizer que ele deve muito ao teórico político Augusto de Franco, que trouxe várias reflexões sobre o tema, incentivando a pesquisa, e, evidentemente, a muitos outros autores que também trataram do assunto.

    Acreditando que esses artigos, embora sucintos, possam contribuir com a reflexão historiográfica, resolvi reuni-los a partir da unidade temática – a discussão teórico-metodológica na abordagem da história, da questão da memória, da relação entre história e literatura, história e filmes e de elementos sobre a cultura e pesquisa histórica – que há neles, apesar de sua diversidade. E podem ser lidos independentemente da sequência apresentada. As referências bibliográficas utilizadas estão após cada artigo, sendo dispensada, portanto, a bibliografia geral ao final.

    Agradecimentos

    Por fim, alguns agradecimentos às pessoas que contribuíram de uma forma ou outra para que este trabalho fosse realizado. Com carinho, agradeço a todos: Ana Carolina Marques, ex-professora do curso de Geografia da UEG e atualmente professora na UFPB e grande amiga, que me ajudou na publicação em revista do artigo sobre o cineasta Fellini e com quem mantive muitas conversas profícuas. Muitas pessoas, parentes ou não, leram alguns dos textos antes da publicação em livro, me incentivando a prosseguir: meus irmãos Dustan Oeven, Myrna Fátima, José Ademar, Helder Aparecido; igualmente minha cunhada, Márcia Dias; Margareth de Lourdes F. Neiva, pessoa sempre importante na minha vida, que também teve grande parcela de ajuda para que eu pudesse trabalhar e produzir os artigos que compõem este livro.

    Agradeço também aos professores e amigos: Valtuir Moreira, que dirigia o jornalzinho Factus H, quando alguns dos artigos foram nele publicados; José Elias Tavares, coordenador e professor da UEG/Itapuranga, editor da revista Building The Way, que publicou quatro desses artigos; Maurineide Alves, que organizou os Anais da Semana Internacional de História em 2017, contribuindo para a publicação sobre o partido leninista, com a qual participei e que foi convertida em artigo; Janice Muniz, pessoa muito querida para mim, que também sempre me apoiou, lendo e fazendo observações; Giselle Freitas, em algum momento, também contribuiu. Agradeço meu amigo Wellington Ribeiro, cujos papos foram sempre estimulantes para o nosso labor intelectual. Também meus filhos, Marcela, Renata e Felipe (que inclusive contribuiu com a arte da capa), devo a eles muito, tanto na ajuda com a informática como pelo incentivo para a realização de tal trabalho. E agradeço a alegria proporcionada pelos meus netos: Bryan, Mars e Ares (que vem chegando) – sempre estímulo para o trabalho.

    Meu reconhecimento à minha mãe, Geralda Gontijo Guanaes (in memoriam), cujo falecimento recente no ano de 2021, muito me consternou, pessoa de muita curiosidade em relação ao conhecimento e que sempre me apoiou, e a meu pai, Ruy Neiva Guanaes (in memoriam), cuja educação dada e cuja casa na qual cresci, cheia de livros, foram sempre incentivos para minhas leituras e meus estudos. Também minha irmã Inez Ethne (in memoriam), cujas cartas do Araguaia são o tema de um dos artigos, e foi sempre um incentivo para reflexão sobre a realidade. Reconheço e agradeço a todos.

    CAMUS: LITERATURA E HISTÓRIA

    ...se o mundo fosse claro, a arte não existiria – mas se o mundo me parecesse ter um sentido, então não escreveria (CAMUS, Albert. Primeiros cadernos).

    Neste artigo procurei analisar, a partir da aproximação entre literatura e história, a questão do poder na obra de Albert Camus (1913-1960), cuja literatura e vida estão entranhadas na realidade histórica, da resistência francesa ao nazismo, na crítica que o autor fez aos regimes totalitários participando dos debates políticos da época. Camus refletiu profundamente sobre a questão da existência humana, tratando da participação individual e coletiva em face da revolta e do poder, e estas reflexões ainda lançam luzes sobre a realidade do tempo atual. Os livros de Camus abordados neste artigo foram os seguintes ensaios: O mito de Sísifo e O homem revoltado, as peças teatrais Calígula e Os justos, a novela O estrangeiro e o romance A peste. Com o objetivo de tratar a questão da liberdade como tema central em Camus, opondo-se ao poder, tratei especificamente, dos debates entre Sartre, filósofo existencialista, e Camus, explicitando sua proximidade teórica e suas divergências. O objetivo almejado é enfatizar estas pontes entre história, literatura e política, na abordagem das obras de Camus, quando, contemporaneamente, muitos olham de maneira desdenhosa tanto o existencialismo como a rica obra literária de autores como Sartre e Camus.

    Albert Camus (1913-1960), escritor franco-argelino, muitas vezes foi confundido como um autor de filiação existencialista. Camus não era um existencialista, é correto, mas há muitos elementos desta filosofia em sua obra. Aqui não será possível discorrer sobre toda ela, mas procurarei verificar a preocupação existencialista, numa discussão voltada para a questão do poder e da revolta, em apenas alguns de seus livros, citados acima.

    Antes farei, sumariamente, a exposição de alguns pontos do existencialismo. Trata-se de uma corrente filosófica do século XX, que teve a influência de autores oitocentistas como Schopenhauer, Nietzsche, Kierkegaard e muitos outros filósofos anti-hegelianos, e cujos expoentes formam um conjunto de pensadores com ideias bastante diferenciadas uns dos outros: do existencialismo cristão de Karl Jaspers ao existencialismo ateu de Sartre. Ficaremos apenas com Jean-Paul Sartre (1905-1980), o que mais influenciou o século XX.

    Para o existencialismo sartreano, a existência precede a essência. Isto quer dizer que o homem é um ser-aí, jogado num mundo hostil. Ao nascer, o homem não é nada; ele vai ser o que se fizer diante de situações em sua vida, diante de escolhas que terá que fazer.

    Nesse sentido, o homem não possui nenhuma natureza humana pronta e acabada como queriam os jusnaturalistas¹ e os iluministas, nenhuma natureza religiosa ou mesmo uma natureza humana, essência comum a todos os homens. Primeiramente, o homem existe, é jogado no mundo; só depois ele se torna alguma coisa, ele se define, sua consciência projetada intencionalmente para fora fá-lo adquirir algo que vem a ser a sua essência. O homem é, portanto, o que ele se fizer, o que ele projetar ser. Só a partir de sua existência e experiência pessoais, ele se torna alguma coisa. Mas para isto ele terá que escolher, escolher o seu projeto de vida, escolher os seus valores ou mesmo criar os valores nos quais baseará a sua existência. Então, ele é um ser livre. Para Sartre, a liberdade do homem é total, total no sentido de que ele, não tendo uma natureza humana religiosa com a sua moral limitativa determinando os seus atos e predeterminando a sua vida, a cada momento deve saber escolher o que fazer. A escolha de seu projeto é pessoal e, sem um certo e errado apriorísticos determinando esta escolha, ela leva-o à angústia. O homem, estando condenado à liberdade, necessariamente se angustia em relação ao seu projeto, à sua escolha, principalmente diante de certas situações-limites. Pois ele não tem nada que justifique exteriormente a si a sua escolha, ele é responsável por seus atos. Não tem desculpa nenhuma que o isente da responsabilidade de sua ação (SARTRE, 1973), nem o inconsciente psicanalítico, já que para Sartre este não existe, nem o livre-arbítrio religioso (e muitos confundiram livre-arbítrio com liberdade), pois neste há um bem e um mal a priori, pré-determinados.

    Há nesse pensamento sartreano algo próximo ao imperativo categórico kantiano (PASCAL, 1986), pois ao escolher para si o que deve fazer, ao estabelecer o seu projeto existencial, o homem, na verdade, escolhe para toda a humanidade uma forma de agir que seja respaldada por uma norma ética que tenha validade universal. Pois se é cada homem que dá significado ao mundo, que o cobre de valores, com base em sua liberdade, a partir da intencionalidade de sua consciência, de acordo com a fenomenologia husserliana, todos os homens também possuem a condição de escolher, já que a liberdade tem um caráter universal. Portanto, a angústia se torna maior ainda, pois a escolha do indivíduo não incide somente sobre sua vida pessoal, porém diz respeito a toda a humanidade. E se até as escolhas banais já trazem uma carga de angústia, o que dizer de escolhas mais sérias em situações-limites, como, por exemplo, um jurado votando a absolvição ou a condenação de um réu?

    Passemos agora a Camus. Comecemos com seu livro Les justes (Os justos), escrito em 1950, uma peça teatral. Uma situação-limite logo é colocada para o grupo de revolucionários, em 1905, na Rússia, que vivia uma ebulição pré-revolucionária ou revolucionária mesmo. Os revolucionários planejaram durante meses assassinar o czar, detonando-o com explosivos. Eis que no dia em que a carruagem do czar passaria no lugar marcado, os conspiradores à espreita, ficam sabendo que ele estaria não só com a czarina, mas também com seus filhos, crianças inocentes que não tinham nada a ver com a política opressiva do Estado czarista. Estabelece-se logo entre os revolucionários a polêmica: alguns, como Stepan, defendiam que, depois de meses de planejamento e espera, não poderiam perder a oportunidade e teriam que cumprir sua tarefa, e que não poderiam se compadecer com a morte de algumas crianças aristocráticas, pois na Rússia, oprimida, morriam milhares de crianças por dia e continuariam a morrer se o regime autocrático do czar não terminasse, se a revolução não se desse.

    Des enfants! (...) Parce que Yanek n’a pas tué ces deux-là, des milliers d’enfants russes mourront de faim pendant annés encore (CAMUS, 1979, p.62).²

    Um outro, Kaliayev, defendia que revolução nenhuma que almejasse um futuro de felicidade, mas que ele não saberia quando e como se daria, o faria sujar suas mãos matando crianças inocentes:

    ...pour une cité lointaine, dont je ne sais pas, ne n’irai pas frapper le visage de mes frères. Je n’irai pas ajouter à l’injustice vivante pour une justice morte (...) tuer des enfants est contraire à honneur (CAMUS, 1979, p.65).³

    Colocado assim o problema em sua peça teatral, temos vários temas existencialistas. Um é o da escolha, principalmente em uma situação-limite. Para a filosofia existencialista, sobretudo em Sartre, o homem estando condenado à liberdade de escolher se angustia diante de sua liberdade irrestrita, que não lhe oferece desculpas nenhuma, mas o deixa totalmente responsável por suas ações. Como já foi dito, se não existem o bem e o mal, já definidos previamente, também não existem valores morais absolutos. Não existindo um Deus a conduzir as ações humanas, o ser humano vê-se jogado em um mundo sem nenhum sentido superior. Como Camus disse em Cartas a um amigo alemão: Acho que o mundo não possui nenhum sentido final, mas sei que algo nele tem sentido, e é o homem, porque é o único ser que reclama um sentido. (1980, p.17).

    Este texto acima foi escrito quando Camus se engajara na Resistência contra a ocupação alemã da França. Poderíamos afirmar a necessidade que o filósofo contemporâneo sentia de partir para a ação diante de uma situação-limite combatendo pela liberdade contra o domínio nazista. Hannah Arendt (1906-1975) considerava o existencialismo francês, inclusive o de Camus, como um compromisso com a ação; neste sentido a filósofa alemã afirmou: ...o existencialismo, pelo menos na sua versão francesa, é basicamente uma fuga dos impasses da Filosofia moderna para o compromisso incondicional para a ação (ARENDT, 2011, p.34). Na verdade, esta autora estava discutindo, a partir do aforismo do poeta René Char (1907-1988): notre héritage n’est precede d’aucun testament (nossa herança nos foi deixada sem nenhum testamento), o que ela vê como dilema na filosofia contemporânea: a perda da herança da ideia de liberdade com as irrupções apaixonadas contra a razão (ARENDT, 2011, p.32), quando há um hiato, ou melhor, uma quebra entre o passado e o futuro na compreensão filosófica do mundo. No presente, os filósofos são chamados à ação política; portanto, para ela, o existencialismo significaria a rebelião do filósofo contra a Filosofia; havia uma perda nesta quebra entre o passado e o futuro, no que a autora, repetindo René Char, chama de tesouro, que nunca foi uma realidade (ARENDT, 2011, p.30). E esse tesouro foi perdido não devido a circunstâncias históricas, mas porque nenhuma tradição ter previsto nem seu aparecimento ou sua realidade; por nenhum testamento o haver legado ao futuro (ARENDT, 2011, p.31). Para a autora, portanto, no século XX, houve a substituição da filosofia pela ideologia, quando a geração de filósofos existencialistas voltou-se para a política como solução para suas perplexidades filosóficas. Assim, pode a autora alemã afirmar sobre a Resistência:

    Os homens da Resistência Europeia não foram nem os primeiros nem os últimos a perderem seu tesouro. A história das revoluções – do verão de 1776, na Filadélfia, e do verão de 1789, em Paris, ao outono de 1956, em Budapeste –, que decifram politicamente a estória mais recôndita da idade moderna, poderia ser narrada alegoricamente como a lenda de um antigo tesouro, que, sob as circunstâncias mais várias, surge de modo abrupto e inesperado, para de novo desaparecer qual fogo-fátuo, sob diferentes condições misteriosas. (ARENDT, 2011, p.30).

    Estas considerações da filósofa germânica servem para situar um pouco a discussão colocada pelos existencialistas e ajudar na compreensão das divergências entre Sartre e Camus, que serão abordadas mais adiante.

    Como em Sartre, temos também em Camus o tema do absurdo. Se o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) vê a morte como o que dá um sentido para a existência, colocando o homem diante de uma vida autêntica, já que, sendo um ser no tempo, ele precisa transcender a sua mera facticidade, o Dasein (este estar-aí), Sartre já pensa que a morte é que retira todo o sentido da existência, dos projetos humanos, deste vir-a-ser que é o homem (PENHA, 1990). Estaríamos, então, diante do absurdo. E, ao pensar a própria morte, a reflexão sobre ela, leva também à reflexão sobre o suicídio. E pensar na morte, leva também à questão do assassinato, e o assassinato na história diante do absurdo da existência. Portanto, sobre o assassinato, um dos temas de O homem revoltado, como uma escolha diante do sentimento do absurdo, vejamos o que Camus disse:

    O sentimento do absurdo, quando dele se pretende, em primeiro lugar, tirar uma regra de ação, torna o crime de morte pelo menos indiferente e, por conseguinte, possível. Se não se acredita em nada, se nada faz sentido e se não podemos afirmar nenhum valor, tudo é possível e nada tem importância. Não há pró nem contra; o assassino não está certo e nem errado. (CAMUS, 2003, p.15).

    Assim, numa outra peça teatral, Calígula, representada pela primeira vez em 1945, Camus expõe tanto a questão do absurdo, da falta de sentido existencial que leva o imperador à loucura e ao assassinato, como da revolta, revolta metafísica de Calígula contra a condição humana determinada pelos deuses e que, quando o imperador passa a exercer o poder, este não tem limites, levando aos assassinatos determinados pelo déspota. Calígula expressa de maneira angustiada o tormento do poder:

    ...Ce monde est sans importance et qui le reconnait conquiert la liberté (...) Et justement, je vous hais parce que vous n’êtes pas libres. (...) Réjouissez-vous, il vous est enfin venu um empereur pour vous enseigner la liberté. (…) Allez annoncer à Rome que la liberté lui est enfin rendue et qu’avec elle commence une grande épreuve. (CAMUS, 1958, p.38)

    Toda a loucura de Calígula é justificada: o assassinato de seus inimigos, que armam um complô contra ele, condenando-os à morte, e de seus patrícios que podem levar o império ao fim. Porém, Calígula, quando Hélicon o preveniu que um complô se preparava contra ele, parecia transtornado, poeticamente falando da lua:

    Mais pour en revenir à la lune, c’était pendant une belle nuit d’aout. Elle a fait quelques façons. J’étais déjà couché. Elle était d’abord tout sanglante, au-dessus de l’horizon. Puis elle a commencé à monter, de plus en plus légère, avec une rapidité croissante. Plus elle montait, plus elle devenait claire. Elle est devenue comme un lac d’eau laiteuse au milieu de cette nuit pleine de frossements d’étoiles (CAMUS, 1958, p.100)⁵.

    Nesta peça, temos um Calígula camusiano loucamente humanizado, também pela morte de Drusilla, sua irmã e amante, e aceitando o seu próprio assassinato, não mais simplesmente o monstro insano que é repassado por alguns livros de história. Mas um personagem ligado de maneira ou outra a uma visão niilista, expressando tanto este absurdo que Camus tratou.

    Contudo, Camus não defende um niilismo absoluto, ...esta indiferença pela vida (CAMUS, 2003, p.17), que levaria à legitimação de qualquer assassinato e a um sentimento de ausência de qualquer revolta diante do espetáculo trágico da existência. E nosso escritor diz que na experiência do absurdo, o sofrimento é individual. A partir do movimento de revolta, ele ganha a consciência de ser coletivo, é a aventura de todos (2003, p.35).

    Camus procurou tratar de uma aventura existencial mais coletiva, embora com cada personagem procurando sua solução a partir de uma resposta individualista, no livro A peste, o qual alguns interpretaram como uma alegoria do nazismo e de todos os regimes totalitários, inclusive o stalinismo. Uma epidemia de peste vai se alastrando por toda uma cidade argelina, Orã, assim como a ideologia nazista disseminava-se por toda sociedade alemã e se dava a expansão nazista na segunda guerra mundial, com os nazistas chegando a ocupar a França, gerando com isto o movimento da Resistência. Mas no romance de Camus cada habitante reage individualmente, e são poucos que reagem em prol da comunidade. O doutor Rieux é um

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