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Escritas e leituras contemporâneas II: estudos de literatura
Escritas e leituras contemporâneas II: estudos de literatura
Escritas e leituras contemporâneas II: estudos de literatura
E-book562 páginas7 horas

Escritas e leituras contemporâneas II: estudos de literatura

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Sobre este e-book

Esta obra reúne um conjunto diversificado de textos que abordam temas relativos aos estudos literários, em perspectiva interdisciplinar e múltipla. Conjunto de ensaios produzidos por pesquisadores de diferentes instituições de ensino, com abordagens diversificadas sobre temas, obras e autores, proporcionando uma leitura atual no campo dos estudos literários. Os textos tecem relações com outras áreas, tais como a História, a Filosofia, a Política e afins.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de ago. de 2022
ISBN9788539711833
Escritas e leituras contemporâneas II: estudos de literatura

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    Escritas e leituras contemporâneas II - Amanda da Silva Oliveira

    1. GESTA DE MEN DE SAA: CECÍLIA MEIRELES RELÊ JOSÉ DE ANCHIETA

    ALINA TAÍS DÁRIO

    (UFU)

    1 Introdução

    Cecília Meireles buscou na tradição literária o impulso propulsor de seu devir poético para compor o último e inacabado livro, Crônica Trovada da Cidade de Sam Sebastiam, publicado em 1965, um ano após o falecimento da autora. Fruto de uma pesquisa histórica iniciada em 1963, a poeta transformou os momentos históricos narrados nas crônicas coloniais e em outros textos da tradição em uma gama de 19 poemas que apresentam novos olhares para o momento de fundação da cidade do Rio de Janeiro. Entre esses poemas está Gesta de Men de Saa, que relata o início da aventura do herói Mem de Sá durante a travessia para o Brasil realizada em 1558, centralizando-se na viagem desde o momento em que ele parte do Porto de Belém, em Portugal, até sua chegada à Bahia.

    Em sua estrutura, o poema Gesta de Men de Saa compõe-se de 135 versos divididos em 31 estrofes, sendo 25 tercetos e seis décimas. No que tange à trajetória de Mem de Sá no texto, é organizada em sete partes, que denominamos da seguinte forma: 1) Apresentação do herói e seu embarque; 2) Em alto-mar; 3) A morte dos jovens; 4) A tormenta; 5) O desvio; 6) Os vencidos; e 7) A chegada".

    O tema central da gesta ceciliana envolve o discurso da superação humana durante a expansão marítima, contextualizando historicamente um tempo de fundamental importância para o povo de Portugal, onde o pioneirismo lusitano no empreendimento marítimo impactou no sentimento nacional e veio a se transformar em mito cultural.

    A principal personagem é enviesada a um contexto histórico. Como se pode resgatar de algumas narrativas coloniais e históricas, o português Mem de Sá foi governador-geral do Brasil entre os anos de 1558 e 1571, nasceu provavelmente em 1504 e morreu em meados de 1571. Segundo Vasconcelos (1885, p. 796), ao vir para o Brasil, Mem de Sá tinha a missão de implantar o império da justiça entre gente totalmente avessa às prescrições do direito e austeridade das leis; limpar de aventureiros e corsários aquelas costas marítimas; assegurar a posse da formosa bahia do Rio de Janeiro. Mem de Sá foi vitorioso em suas empreitadas na cidade de São Sebastião; entretanto, mesmo pedindo à corte para retornar a Portugal, morreu prestando seus serviços como governador.

    Tendo em vista a sua importância como um herói civilizador português, a jornada de Mem de Sá é narrada em inúmeros textos fundadores da literatura brasileira, como, por exemplo, nos escritos de Pero de Magalhães Gândavo (1858), de Gabriel Soares de Sousa (1851) e de Frei Vicente do Salvador (1918), além de ter deixado escrito um testemunho próprio[ 1 ] publicado nos Anais da Biblioteca Nacional em 1906, no qual descreve seus serviços prestados no Brasil para a Coroa portuguesa. Contudo, o mais profícuo diálogo, e foco principal deste trabalho, ocorre entre o poema de Meireles e o poema épico atribuído[ 2 ] a José de Anchieta, De Gestis Mendi de Saa, impresso em 1563.

    As tensões geradas a partir dos diálogos entre o poema ceciliano e a épica do jesuíta ora aproximam os textos, ora os distanciam, proporcionando certa complexidade transformacional aos seus elementos, que são o assunto, o título, a gesta, a figura do herói, o chamado para a aventura e a morte do filho de Mem de Sá. Todavia, neste momento, focalizaremos o tratamento poético proporcionado à figura do herói.

    Para isso, este trabalho se propõe a investigar como a personagem Mem de Sá é resgatada do poema épico de Anchieta e transformada para uma nova reorganização poética a partir de um tom mais subjetivo, atualizando o gênero lírico. Sendo assim, este trabalho se ampara em teóricos como Genette (2009, 2010), que discute os elementos transformacionais empregados para uma transtextualidade, Silva e Ramalho (2007, 2015), que ponderam sobre as evoluções e características da épica brasileira, além de alguns textos quinhentistas que estão entremeados à poesia de Gesta de Men de Saa articulando a História e a Literatura.

    2 O herói contrariado

    Em um primeiro momento, observa-se que em De Gestis Mendi de Saa, de Anchieta, o enredo traz a narração de alguns conteúdos históricos que tornam a empreitada do herói épica, tais como a chegada de Mem de Sá ao Brasil, a morte do filho Fernão de Sá na batalha do Cricaré, o momento em que o herói português enfrenta o cacique Cururupeba e o castiga, a submissão dos indígenas às leis cristãs, contra a guerra e contra a antropofagia, a revolta dos índios de Ilhéus, a empreitada contra os franceses e os tamoios, os preparativos para a expedição aos Caetés que não se realizou, o naufrágio e a morte do bispo, a expedição ao Rio de Janeiro, a guerra de Paraguaçu, além de uma narração enviesada, à parte, sobre a história da igreja brasileira.

    Já no poema de Cecília Meireles, Gesta de Men de Saa, observa-se que a narração se detém apenas na travessia marítima de Mem de Sá em um período anterior ao narrado por Anchieta, desenvolvendo, assim, em seu poema uma extensão por adição maciça de uma parte anterior à chegada do herói ao Brasil. Desta forma, o assunto é reorganizado de forma pontual, através da alusão à épica colonial a partir da contaminação de vários textos e referenciações históricas, tendo como principal hipotexto a épica do padre.

    O plano literário na gesta lírica de Meireles é estruturado pela transformação da consciência narrativa, que integra em discurso narrador e herói. O poema narra em primeira pessoa, ora do singular (Para onde agora me vou? / [...] nem sei de mim nem dos outros, / do que são nem do que sou...) (MEIRELES, 1965, p. 60), ora do plural (Respiremos o ardente sal dos ares, / aceitemos o fim desconhecido) (MEIRELES, 1965, p. 59), a viagem de oito meses da personagem portuguesa, reelaborando e tornando dupla a instância de enunciação, a narrativa e a lírica. A duplicidade marcada pelas vozes de enunciação estrutura perspectivas diferenciadas para o mesmo fato – espaço e tempo – permitindo a participação do sujeito poético no mundo narrado.

    Podemos dizer, então, que Meireles, ao reler a história de Mem de Sá, o faz a partir de um processo de liricização. A constituição do sujeito em primeira pessoa integra o herói, a instância de enunciação que utiliza como recurso lírico, a referenciação e a contextualização. Assim, ao focalizar neste tópico a análise dos diálogos estabelecidos com a obra de Anchieta, contrapõe-se o herói épico civilizador, Mem de Sá, ao herói lírico moderno, que tece sua poeticidade nos aspectos mais íntimos de sua individualidade.

    Para Possebon (2007, p. 149), a jornada de Mem de Sá em Anchieta se inicia com o chamado; mesmo não estando descrita a etapa inicial, é apenas informado ao leitor que a missão acontecerá com testemunho divino e ocorrerá no Brasil. A iniciação do herói acontece com a morte do filho como meio para a superação através da dor. A narração sobre as provas enfrentadas ocupa a maior parte do poema de Anchieta, em que se descreve a batalha contra os índios em Ilhéus e em Itaparica e a ocupação francesa no Rio de Janeiro. A apoteose ocorre quando a pólvora da tropa de Mem de Sá chega ao fim e, após uma poderosa prece, Deus afugenta os inimigos. O jesuíta não se detém a narrar os fatos que reorganizam a ordem do mundo e apenas se ocupa com uma louvação ao herói.

    O mundo psíquico do herói de Anchieta é descrito por Possebon (2007, p. 152) como um pano de fundo, sem estar claramente exposto:

    identificamos por meio de sinais sutis, principalmente, nos momentos de meditação, oração e firmeza nas decisões do herói. Algumas vezes, também, na angústia do herói e na palpitação diante do desconhecido, mas sempre pela sua fé inabalável em Deus.

    O poeta português traz uma breve descrição física do herói, que ocorre no início do poema, como o trecho seguinte apresenta:

    166. [...] Superiores aos anos,

    167. ornam-lhe o rosto barbas brancas e majestosas:

    168. alegres as feições, sombreadas de senil gravidade,

    169. vivos os olhos, másculo o arcabouço do corpo,

    170. frescas ainda, como de moço, as forças de adulto.

    171. Muito mais excelente é a alma: pois lha poliram

    172. vasta ciência, com a experiência longa do mundo,

    173. e a arte da palavra bela. arraigado no seio

    174. traz um amor de Deus, santo, filial, verdadeiro

    175. e a fé jamais desmentida. (ANCHIETA, 1986, p. 93-94).

    Em Cecília Meireles, tal prerrogativa é inversa. A transposição do herói acontece evidenciando apenas seus aspectos emocionais, principalmente quando lhe é dada voz, momento em que o processo de liricização ocorre mais veementemente. Tal procedimento se consolida de maneira estrutural por intermédio das marcas textuais, como a pontuação exclamativa, os dois-pontos, os parênteses e a adjetivação da personagem:

    1. Eis o insigne varão, todo magoado,

    [...]

    9. E, já por amarguras d´alma enfermo,

    10. a água dos olhos seus ao mar se enlaça.

    [...]

    65. nem sei de mim nem dos outros,

    66. do que são nem do que sou...

    [...]

    120. Obediente à severa lei humana,

    121. segue a nau que, mais de vezes,

    122. regeu a lei de Morte, soberana... (MEIRELES, 1965, p. 58-63).

    A partir da intencionalidade de focalizar os aspectos emocionais do herói, Cecília Meireles extrai de toda a trajetória do herói no texto de Anchieta o episódio da morte do filho de Mem de Sá, Fernão de Sá, condensando-o em dois versos (versos 52 e 53), ao remeter o foco da narrativa aos pais heróis que permaneceram vivos e sofrendo por meio de um questionamento (versos 54, 55 e 56):

    52. há guerras negras em que adolescentes

    53. se tornam, com o morrer, velhos e graves.

    54. Ceuta! ah! como podemos ser contentes,

    55. nós, os pais desses moços acabados,

    56. que nos deixaram por sobreviventes? (MEIRELES, 1965, p. 60).

    José de Anchieta traz, em dois momentos, a situação da morte do filho de Mem de Sá: a primeira é em um momento de prolepse em que, mesmo sem estar na narrativa, há na epopeia a indicação de uma predestinação e uma preparação do herói para os verdadeiros enfrentamentos que irão ocorrer; e a segunda, uma narrativa completa da morte.

    O primeiro momento, ainda na prolepse, ocorre em quatro versos:

    183.Mas muitas lágrimas doridas a primeira refrega

    184.custear-te-á. Nela tombará um filho querido

    185.varado de setas, e tingirá as praias as praias de sangue

    186.inda jovem, lançando às auras o tênue sopro da vida. (ANCHIETA, 1986, p. 93-94).

    Nota-se que esse primeiro momento da épica de Anchieta também é uma digressão com o intuito de quebrar a sequência lógica da narrativa, interrompendo a contemplação das características do herói e a descrição da atmosfera brasileira ao recebê-lo. Possebon (2007, p. 48) atribui a digressão à antecipação do fato, que destrói qualquer suspense.

    No segundo momento, Anchieta dedica-se a narrar, em parte do Livro I, versos 231 a 809, o episódio da morte de Fernão de Sá. A aventura do filho de Mem de Sá compõe uma outra narrativa dentro da epopeia, tornando Fernão um herói por meio de todas as etapas épicas, que o pai também cumprirá. Entretanto, esta análise está focalizada na digressão da prolepse por estruturalmente se organizar de maneira similar em Meireles.

    Enquanto em Anchieta a digressão apresenta a morte do filho do herói como uma preparação para o enfrentamento de Mem de Sá para batalhas, em Meireles o assunto é retomado com uma memória em uma estrofe em digressão. Entende-se que a função da digressão em Cecília Meireles sumariza e, portanto, omite trechos sobre a morte de Fernão de Sá por não retomar os detalhes mais profundos do acontecimento nem posteriormente dedicar uma narrativa mais detalhada.

    A recordação é uma característica da lírica, assim como a sumarização, em que o sujeito poético revive toda a experimentação do fato. Sendo assim, percebe-se que a recordação toma as proporções da lírica ao interpor no discurso narrativo interferências da voz do herói, que demonstra o seu sentimento de luto. Nota-se, mais uma vez, que a poeta articula a alternância das instâncias de enunciação, em que ora predomina a épica, ora predomina o lírico.

    Sobre a condensação, Genette (2007, p. 90) pontua que o texto reduzido é transformado de maneira indireta mediada por uma consciência que se propõe a narrar o movimento do conjunto operado pela memória. No caso de Gesta Men de Saa, a consciência transformadora do episódio é lírica, que opera seu procedimento poético por meio de outros enxertos textuais que caracterizam o processo da memória.

    Observa-se que a constituição dos heróis épicos em análise ocorre devido à sua condição humana por intermédio dos respectivos deslocamentos. Ramalho (2007, p. 232) considera que a condição de mobilidade, deslocamento ou nomadismo está relacionada às imagens arquetípicas do expansionismo, da predestinação, da superação e da fundação e tem em sua gênese a experiência medieval.

    Portanto, devemos considerar que o herói épico é um sujeito em ação para representar o conteúdo humano do indivíduo que encontrou seu caminho no mundo. Sendo assim, a representação do herói acontece na épica a partir da inscrição do sujeito no mundo. Esta análise considera a formação própria do herói como épica em seus aspectos coletivos e como lírica ao ser descrito em tom disfórico e ao ganhar a voz em vários momentos da gesta.

    A diferenciação entre o herói quinhentista e o herói ceciliano também ocorre devido à época da produção textual, que altera a percepção histórico-cultural do sujeito. No caso de Anchieta, com o Cristianismo, a epopeia cede lugar ao papel do guia condutor pagão a Deus ou a um de seus representantes; essa reorganização faz parte da narrativa em De Gestis Mendi de Saa. Cristo é a força onipotente da épica e o herói quinhentista é a sua força de representação:

    1. Eis que vês, potentado supremo, quão grande façanha

    2. realizou a força onipotente do Deus. (ANCHIETA, 1986, p 83).

    A transposição da figura do herói Mem de Sá para o poema épico-lírico de meados de 1964 é configurada a partir da complexidade das sociedades modernas. Ramalho (2007, p. 227) pontua que a partir da modernidade houve uma impossibilidade de estabelecer uma unidade entre o individual e o social. A dificuldade de se articular o individual e o social desencadeou, portanto, no século XX, mudanças estruturais importantes para a épica, como a diluição do lugar do sagrado. O Mem de Sá de Cecília Meireles é constituído pelos pressupostos de uma gesta e, a partir de seu discurso, consolida os aspectos líricos.

    A gesta de Cecília Meireles apresenta um herói problematizado a partir do seu sentimento frente ao mundo. Como demonstrado na análise do poema, o Mem de Sá ceciliano é caracterizado como um sujeito amedrontado, por vezes solitário, confuso e perdido. Contudo, essa análise aponta que a principal transformação é operada na diluição do aspecto cristão. Mem de Sá é enviado à sua missão por vontade e ordem do rei (verso 1), e somente no verso 104 há um apelo a Deus como testemunha de seus atos. Sendo assim, ao se comparar o chamado à missão da gesta da poeta com o do texto de Anchieta, pode-se perceber que Meireles o reelabora lançando a responsabilidade do destino de Mem de Sá a um motivo político (a serviço del-Rei mandado), enquanto o jesuíta eleva os feitos de Mem de Sá à ordem divina:

    146. Mas um dia o Pai onipotente volveu os olhares

    147. dos reinos da luz à noite das regiões brasileiras,

    148. às terras que suavam, em borbotões, sangue humano.

    149. Então mandou-lhes um herói das plagas do Norte,

    150. um herói que vingasse os crimes nefandos,

    151. que banisse as discórdias, freiasse o assassínio,

    152. bárbaro e contínuo, acabasse com as guerras horrendas,

    153. abrandasse os peitos ferozes e não sofresse impassível

    154. cevar-se em sangue de irmãos queixadas humanas. (ANCHIETA, 1986, p. 93).

    Segundo a tese de doutoramento de Possebon (2007), o texto de Anchieta não detalha o início da aventura de Mem de Sá ou a motivação para a aventura. Entretanto, revela que Deus não tolera mais que os índios sejam agentes do próprio demônio e envia o herói para cumprir a missão religiosa de resgatar as almas indígenas. Para o poeta, essa é a principal batalha, um resgate divino, e não a expulsão dos franceses das terras da colônia.

    No poema de Meireles, tem-se um herói humanizado, à mercê das vontades da Coroa portuguesa. Portanto, o aspecto divergente entre os textos demonstra a preocupação da poeta em colher elementos da representação sociocultural buscados na tradição literária, como é considerada a obra de Anchieta, uma Literatura Colonial, no intuito de ressignificá-los e atualizá-los para a construção de sua matéria poética.

    3 Conclusão

    A gesta lírica de Meireles apresenta a voz de Mem de Sá como íntima e confessional, tensionada entre a sua missão política e a projeção dos seus sentimentos frente ao mundo. O herói português está em um conflito íntimo, apesar de cumprir a missão civil na colônia portuguesa para que foi designado; a sua vontade é negligenciada, tornando o canto poético a expressão de uma subjetividade pungente.

    Durante essas considerações, percebe-se que a alteração da consciência do sujeito no mundo altera a consciência de enunciação do poema. Como já dito anteriormente, uma das principais evoluções da épica ocorre na instância de enunciação, e, no caso do poema de Meireles, acredita-se que essa alteração na consciência do mundo transcende para uma predominância lírica no poema. A poeta resgata a estrutura da épica e a transforma, contaminando com elementos da poesia lírica, que, além de narrar os fatos em primeira pessoa, constrói uma figura heroica desestabilizada, cuja subjetividade se sobressai às questões sociais narradas.

    De todas as provas, a maior delas, a ser superada pelo Mem de Sá de Meireles, é o seu próprio sentimento frente aos desígnios do poder político em que está inserido. Sendo assim, Mem de Sá passa a narrar a própria história, recorda fatos, traz à textualidade poética seus pensamentos e anseios. O herói escreve sua própria história.

    Referências

    ANCHIETA, José de. De Gestis Mendi de Saa. São Paulo: Edições Loyola, 1986.

    GÂNDAVO, Pero de Magalhães. História da Província de Santa Cruz. Lisboa: Academia Real das Sciencias, 1858.

    GENETTE, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Belo Horizonte: Edições Viva Voz, 2010.

    GENETTE, Gérard. Paratextos Editoriais. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

    INSTRUMENTOS DOS SERVIÇOS DE MEM DE SÁ. In: Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Officina Typographics da Bibliotheca Nacional, 1906. v. XXVII.

    MEIRELES, Cecília. Crônica Trovada da Cidade de Sam Sebastiam, no Quarto Centenário da sua Fundação, pelo Capitam-mor Estácio de Saa. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1965.

    POSSEBON, Fabrício. O épico De Gestis Mendi de Saa (A Saga de Mem de Sá) de José de Anchieta. 2007. 228 f. Tese (Doutorado em Letras) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade da Paraíba, João Pessoa, 2007.

    SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil: 1500-1627 (em português). (edição revista por Capistrano de Abreu). São Paulo: Weiszflog Irmãos, 1918.

    SILVA, Anazildo Vasconcelos da; RAMALHO, Christina. História da epopeia brasileira: teoria, crítica e percurso. Rio de Janeiro: Garamond, 2007. v. 1.

    SILVA, Anazildo Vasconcelos da; RAMALHO, Christina. História da epopeia brasileira: teoria, crítica e percurso. Aracaju: ArtNer, 2015. v. 2.

    SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Edição comentada por Francisco Adolfo de Varnhagen. Rio de Janeiro: Typographia Universal Laemmert, 1851.

    VASCONCELOS, Carolina Michaëllis de. Vida de Sá de Miranda, Adiantamentos à vida e ademais aparatos críticos de introdução e notas. In: SÁ DE MIRANDA, Francisco de. Poesias de Francisco de Sá de Miranda. Halle: Max Niemeyer, 1885.

    Notas


    [ 1 ] Instrumentos dos Serviços de Mem de Sá. In: ANAIS DA BIBLIOTECA NACIONAL. Rio de Janeiro: Officina Typographics da Bibliotheca Nacional, 1906. v. XXVII.

    [ 2 ] A problemática da autoria da primeira obra ficcional escrita em terras brasileiras ocorreu devido ao extravio do único volume e assim permaneceu por vários séculos. Somente mais tarde encontraram uma cópia fotográfica que se tornou fonte das edições. Mesmo assim o enigma não se resolveu: a cópia do manuscrito encontrado não possuía assinatura, costume próprio de José de Anchieta.

    2. A SENSORIALIDADE, O CORPO E O FEMININO EM PAULA TAVARES

    ALISSON PRETO SOUZA

    (UFRGS)

    A autora Ana Paula Tavares, conhecida através da literatura pelo nome de Paula Tavares, formou-se no curso de História pela Faculdade de Letras de Luanda e pela Faculdade de Lisboa, onde em 1996 tornou-se Mestre em Literaturas Africanas. Talvez hoje se possa dizer que é uma das mais importantes vozes femininas da atualidade no que compete à poesia angolana. O objeto de análise do presente texto é Amargos como os Frutos. Essa obra é uma espécie de antologia poética de Tavares, que traz seus textos organizados em ordem temporal de publicação. A obra que marca o início do ato criativo da autora é Ritos de Passagem (1985), dividida em três momentos, De cheiro macio ao tacto, Navegação circular e Cerimónias de passagem, que acontecem após o poema de iniciação Cerimônias de Passagem; respectivamente encontram-se na antologia as obras O Lago da Lua (1999), seguida por Dizes-me coisas Amargas como os Frutos (2001), Ex-votos (2003), Manual para Amantes desesperados (2007) e por último, mas não menos importante, Como Veias Finas na Terra (2009).

    Apesar de sua temática sublinhar o enlace entre cultura, geografia e aspectos concernentes à sensorialidade, ao corpo e à voz feminina de Huíla, sua poesia também é reveladora da luta e da fome em Angola. A cultura africana inscrita sob os delineamentos femininos próprios de Huíla, região ao sul da capital angolana, apresenta rituais e saberes ancestrais específicos que concedem à mulher um poder de enunciação invulgar sobre as circunstâncias de sua realidade tribal. Assim como afirma Tutikian (2006), o papel da literatura é possibilitar espaços abertos para investigação de inovadoras formas para o diálogo a fim de que novas vozes possam ser escutadas e exercidas de forma livre e questionadora.

    Pensar a literatura é ainda, e cada vez mais, pensar a questão da identidade [...] é nas idiossincrasias que se passam a distinguir as fronteiras, e elas estão na cultura, donde se reforça a idéia de que a nação não é uma identidade plenamente formada, mas sujeita a mecanismos de inclusão e exclusão, o que confere, ainda, maior relevância à questão da identidade nacional. (TUTIKIAN, 2006, p. 12).

    Embora a autora seja ocidentalizada, ela traz grande contribuição para a formação de uma consciência feminina em Angola que se debruça sobre os pilares do Mulherismo Africana. A subjetividade da mulher é representada como costura que segue uma linha tanto de maturação sexual quanto de reconhecimento de sua força e reempoderamento feminino na África de que faz parte. O significante angolano em sua poesia tem o toque mulheril de seus sentidos: do corpo, das mãos, dos órgãos, das entranhas; e do que há de mais íntimo na subjetividade feminina: seus próprios desejos. O corpo dispõe-se feminino em sua delicadeza espalhada nas flores, nas vozes das mães, na sabedoria da ancestralidade, dos rituais religiosos, das celebrações, dos ritos de passagem dos clãs. Enquanto ocidentalistas veem que a prorrogação dos anseios da mulher africana ocorre em detrimento de um projeto utópico de nação, os estudos afrocêntricos partem do princípio de que essa versão da história é eurocêntrica e de que essa visão não está alinhada à tradição dos povos africanos, uma vez que não concebem nem compartilham o mesmo repertório cultural dos ocidentais. Essa perspectiva ocidental torna-se limitadora e opressora no momento em que abafa a diversidade e a historicidade heterogênea de África, na tentativa de enquadrar a africanidade como parte da história ocidental, silenciando as vozes da África. No ensaio Semântica da Diferença, a autora Laura Padilha expõe que a partir de falas-em-diferença:

    Cria-se, assim, um outro lugar de enfrentamento e luta que hoje já não se deixa rasurar. A diferença, jamais sinônimo de essencialismo, dá o contorno dessa fala que busca sua identidade nas forças simbólicas e afetivas encenadas nos bastidores da produção literária, ou seja, no lugar imaginado onde o homem africano teimosamente lutava por se tornar sujeito do próprio destino. (PADILHA, 2002, p. 37).

    Entretanto, de acordo com Anderson (ANDERSON, 1989, p. 168), através da língua reconstituem-se passados, imaginam-se solidariedades, sonham-se futuros. Esse duplo olhar, embora se encontre direcionado ao passado da cultura angolana, preocupa-se com as questões políticas femininas que residem na África, não pode ser lido como algum tipo de movimento feminista oriundo de noções ocidentais. O Mulherismo Africana, por exemplo, entende que existem inúmeras formas de representação de feminismos e que cada um desses grupos deve tratar dos interesses locais distintos de formas que apenas podem ser entendidas pelo grupo feminista em questão. Nas palavras de Padilha (2002, p. 196), Confundem-se as linhas, desmoronam-se as paredes, grita-se outro lugar discursivo.

    A poesia de Tavares externaliza uma trajetória sensorial feminina que busca por meio do contato com a realidade angolana – nas frutas, nas estórias antigas, nos animais e paisagens sagradas, nas interioridades ou exterioridades do corpo feminino – as memórias para que se combata o esquecimento da identidade angolana e se enalteça o empoderamento da voz da mulher africana, buscando nos detalhes cotidianos a exatidão dos sentidos africanizados. Estes sentidos africanizados são impregnados de uma luta sonhadora sobre reencontro como mulher africana e esperança pelo retorno às tradições e antigas sabedorias. A tentativa de representação exerce uma relação quase concreta com o espaço em que vive, condicionando o labor do ato criativo, um ato aparentemente sacrificante, parteiro e africanamente feminino. De acordo com Ribeiro (2008, p. 91), a procura de Tavares pela representação de Angola exige uma outra nomeação das coisas, dos corpos, das pessoas e da terra; fala da memória dos lugares, do amor, dos nascimentos, das outras falas e saberes de Angola. A apreensão do espaço acontece através da sensorialidade. Caracterizada pela associação entre o aspecto angolano e os caminhos femininos, o eu-lírico produz em sua poesia uma escrita poética, esfíngica e memorial. Em 1991, é publicada uma entrevista na revista Angola - Encontro com escritores, em que Ana Paula Tavares afirma que o ato criativo parte de

    encontrar um caminho poético para expressar essa relação quase física com as coisas, com aquilo que está [va] à volta, os cheiros, os frutos... Uma forma própria de expressar coisas que eu tinha cá dentro. (TAVARES, P. In: Laban, 1991, p. 853).

    A autora Tavares dissocia-se do projeto de políticas homogeneizantes e redeminensiona seu estudo na compreensão metafórica e metonímica da mulher com a geografia e a cultura de Angola a partir da sensorialidade da mulher. Projeta-se desse viés a intenção da autora de achar no corpo um caminho para percepção fenomenológica dessa mulher dentro de suas relações com o espaço. A ousadia do erotismo é sem dúvida um dos ângulos inovadores e vitais para a satisfação do autoconhecimento feminino. É por conta dessa liberação que percorre a intimidade que ocorre o distanciamento do olhar, para que se constitua a percepção do externo funcionamento destas comunidades, clãs e tribos. A forma em que o corpo alcança uma condição de liberdade plena permite que a mulher entenda os próprios desejos e, de forma distanciada, entenda os anseios do outro, trajeto que permite a acessibilidade de sua memória sensorial e histórica.

    Em Amargo como os Frutos é encontrado um novo arranjo de características indubitavelmente particulares, representado tanto "pelo vazio no branco da página", frase do prefácio por Inocência Mata, quanto pela livre intencionalidade poética na expressão de uma visada afrocêntrica que perpassa as sensações femininas. Essa sutileza é retomada pelo provérbio da filosofia cabinda, prenunciando o poema Desossaste-me: As coisas delicadas tratam-se com cuidado (TAVARES, 2011, p. 55). Para a análise da representação do corpo feminino, serão selecionadas poesias de obras constituintes do livro Amargo como os Frutos, a fim de que estas possam ser discutidas a partir da visão de Laura Padilha e Carmem Lúcia Tindó Secco.

    Para explicar o reconhecimento da figuração do corpo feminino nas poesias de Paula Tavares, Laura Padilha, no ensaio intitulado A encenação do corpo em três poetas africanas, se debruça em Barthes, nos conceitos de noção do texto, o qual descreve a fruição da compreensão do texto fundamentada na dependência da relação do seu produtor e do seu receptor, uma vez que ambos compartilham a priori um repertório do metafórico (corpo enquanto discurso) e metonímico (corpo enquanto escrita). A costura da relação entre as metáforas e as metonímias vai agindo mecanicamente para que as imagens tanto da corporeidade quanto da subjetividade sejam construídas ao longo da poesia. A metonímia é sempre marcada pelas partes do corpo e texturas de frutas, por exemplo. Esse corpo é expresso através de marcas e traços que sublinham a diferença do seu sexo feminino. Essa relação espalha-se por meio do trabalho metonímico corrente, que por vezes erotiza o texto e por vezes expressa a maturidade e a sabedoria da mulher da tribo. Já o conceito de subjetividade do feminino enlaça aspectos como os desejos, os medos, as frustrações e os anseios da mulher angolana. Esse trabalho da composição da subjetividade é realizado a partir de manifestações metafóricas que relacionam a cultura e a sensorialidade unicamente feminina e às vezes os aspectos geográficos e a presença ou ausência dessa mulher.

    Em Ritos de Passagem (1985) é possível perceber que as metonímias expressam uma estreita relação com a ideia de lugares eróticos, como, por exemplo, as genitais femininas quase sempre associadas a descrições de partes internas dos vegetais e das frutas constituintes do cotidiano angolano. Em De cheiro macio ao tacto a alteração de foco é expressa onde a relação sinestésica das coisas é conscientemente desordenada pela migração do significante maciez para o cheiro e não para a previsibilidade do tato: um gesto de rebeldia ou alteração de foco, como comenta Inocência Mata no prefácio de Amargo como os Frutos. Durante essas três partes de Rito de Passagem, a autora vai abordar, a partir da voz silenciada da mulher negra africana, o início da expressão do desejo, o desenvolvimento da sexualidade e a reapropriação do corpo como território seu, que havia sido, através da história da África, roubado de si.

    Paula Tavares surpreende o leitor, que, em vez de encontrar um corpo de mulher, encontra uma série de poemas cujos títulos remetem a vegetais, principalmente a frutos: A abóbora menina,O maboque, A anona, O mirangolo, O mamão etc. O matrindindi, que é a exceção e último poema da primeira parte, é elemento, no entanto, de preparação para a ritual, uma vez que remete à circularidade do seu canto. A cascas de frutos escondem corpos de mulher como se fossem falsos invólucros. Em A Nêspera, fruto amarelo que, ao mostrar-se entreaberto, possui sementes, a metáfora do corpo de uma menina sonhadora deixa aflorar em si a sensualidade. Nessa releitura, que traz a intenção da autora no jogo de mostra-esconde, o erotismo toma seu lugar na cena, pelas fendas, pelos rasgos, pela nesga entreaberta. Em O mirangolo’, poema que tem por último verso ILUMINA A GENTE, essa iluminação erótica deixa fluir a sensualidade represada, além disso desestabiliza o leitor rompendo com a previsibilidade, buscando outros grafemas (funções significatórias para o texto) para o corpo ali encenado. O corpo só se submete às feitiçarias do fogo"; essa frase traz o elemento fogo, que remete às mudanças e transformações do impulso reprimido para algo positivo, o gozo: a liberação e desenvolvimento da pulsão amorosa torna-se, de fato, entregue a uma visibilidade mais pluralizante, uma vez que, diferente do modelo canônico, a pulsão amorosa é expressa pelo feminino.

    A segunda obra é O Lago da Lua (1999). Nesses textos, a voz da mulher enuncia intenso sofrimento, que em suas primeiras poesias revela certo desconhecimento de suas dores. No poema a seguir, o conflito paradoxal exposto no jogo com os fragmentos canto de espera e não canta enuncia a sobrecarga emocional e o desconhecimento da mulher de suas próprias dores: Aquela mulher que rasga a noite/ com o seu canto de espera/ não canta/ Abre a boca/ e solta os pássaros/ que lhe povoam a garganta (TAVARES, 2011, p. 79).

    A torrente de sentimentos ao longo da obra é caracterizada por uma contínua instabilidade: ora pende para as dores da seca, da miséria e da perda do amor, ora pende para a transformação da mulher em um ser mais forte, que se nutre de seu passado e pelo amor da colheita de sua historicidade. Percebe-se que é no início da trajetória que a voz poética enviesada pelo sujeito lírico pode estar localizada entre a atmosfera de um desgaste da espera e de um sonho de mudança. O desgaste da espera em O Lago da Lua está relacionado à ausência do amado, que, ao retornar para os braços da amada, encontra-se modificado pela guerra.

    Nada me disse o meu amado/ Chegou/ Mora no meu país não sei por quanto tempo/ É estranho que se sinta bem/ e parta./ Volta com um cheiro de país diferente/ Volta com os passos de quem não conhece a pressa. (TAVARES, 2011, p. 82).

    Na obra Dizes-me coisas amargas como os frutos (2001), a mulher é retratada em um cenário rural. Esse cenário é descrito por elementos da natureza local através das garças brancas, das hienas, do elefante, das rãs – preparadas pelas mulheres para servir o marido apenas no final das refeições –, da serpente, do boi de fogo e da vaca fêmea. Outros vocábulos referem o cenário rural por meio de ambientes como o celeiro, o cercado, o eumbo, a floresta, a presença da noite, o rio e as montanhas. Na voz desse sujeito lírico é expresso com grande intensidade o sofrimento presente de duas formas. Uma dessas formas de sofrimento está relacionada à perda de sua família (sua mãe, sua irmã, seu filho e seu noivo) e tradição e a outra está relacionada ao seu corpo, ambos sofrimentos causados pela maldição do Estrangeiro e a miséria.

    Através da sensorialidade aguçada, já no primeiro poema, Amargos como os frutos, a mulher percebe algo diferente na fala de seu amante. Ela não é capaz de reconhecer seu noivo quando ele retorna sem expressar esperança, sem falar de amores ou ensinamentos, apenas demonstrando que não lembra quem é: Onde deixaste tua voz/ macia de capim e veludo/ semeada de estrelas (TAVARES, 2011, p. 119). Dois fatores fazem-se essenciais na obra na construção da subjetividade da mulher: a guerra e a fome. O homem encontra-se perdido, enquanto a mulher oferece seu corpo como refúgio do caos da guerra e serve seu noivo como um xamã ou uma curandeira. No seu corpo perfeito reside o feitiço forte que manteria acesa as crenças e o mantimento das origens e das formas de pensar dos tempos passados, como mostra o poema Viagem

    Preparei-te na pedra da casa [...]

    Para te passar remédios

    Da cabeça até aos pés.

    No fundo de meu corpo perfeito

    Escondi

    Pedaços de argila e feitiços fortes.

    Todos os dias conservei aceso o fogo sagrado

    Na hora dos fantasmas

    O vento diz-me a tua voz

    É a voz das viagens

    Sem regresso. (TAVARES, 2011, p 123).

    Porém, não somente a guerra atacava a estrutura familiar das mulheres dos antigos Vatwas – como era chamada a tribo dos errantes negros de Namíbia –; a fome e a falta de sorte auxiliaram na tentativa de extinção de sua tribo. Em As viúvas, a fome está expressa num ato de violação contra suas próprias tradições. No poema, pode ser percebido um pedido de desculpas por ter se alimentado de um animal sagrado de sua cultura, o boi. As desculpas são direcionadas à própria morte, que, em sua cultura, é conhecida como Kalunga. O desespero da fome leva as mulheres a violarem as tradições de suas próprias raízes.

    Devorei a carne do boi do fogo

    Tudo até ao fim e o coração

    No entanto

    Kalunga oh Kalunga,

    Como estou necessitada

    Como preciso de sorte

    Aqui a fome é tanta

    Que as mulheres devoraram a carne dos bois dos homens

    E as que eram virgens envelheceram

    Ninguém cumpriu os preceitos

    E agora somos viúvas da floresta

    E agora temos os sonhos perdidos. (TAVARES, 2011, p. 141).

    Em Ex-votos (2003), obra que narra a existência de uma sacralização e dessacralização dos rituais angolanos, da corruptividade dos papéis masculinos e femininos, o corpo é representado em sua ligação com o sagrado. No poema a seguir, o corpo

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