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Ideologia paulista e os eternos modernistas
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E-book342 páginas4 horas

Ideologia paulista e os eternos modernistas

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Sobre este e-book

Ao fixar o modernismo paulista como sendo o modernismo brasileiro, a crítica e a história literárias excluíram tudo aquilo que não cabia no modelo de 1922. Nos ensaios que compõem este volume, Francisco Foot Hardman desafia o consenso fácil e a hegemonia de pensamento que, de modo geral, os eternos modernistas paulistas obtiveram no país.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de jul. de 2023
ISBN9786557143827
Ideologia paulista e os eternos modernistas

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    Ideologia paulista e os eternos modernistas - Francisco Foot Hardman

    FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP

    Presidente do Conselho Curador

    Mário Sérgio Vasconcelos

    Diretor-Presidente / Publisher

    Jézio Hernani Bomfim Gutierre

    Superintendente Administrativo e Financeiro

    William de Souza Agostinho

    Conselho Editorial Acadêmico

    Divino José da Silva

    Luís Antônio Francisco de Souza

    Marcelo dos Santos Pereira

    Patricia Porchat Pereira da Silva Knudsen

    Paulo Celso Moura

    Ricardo D’Elia Matheus

    Sandra Aparecida Ferreira

    Tatiana Noronha de Souza

    Trajano Sardenberg

    Valéria dos Santos Guimarães

    Editores-Adjuntos

    Anderson Nobara

    Leandro Rodrigues

    FRANCISCO FOOT HARDMAN

    A ideologia paulista e os eternos modernistas

    © 2022 Editora Unesp

    Direitos de publicação reservados à:

    Fundação Editora da Unesp (FEU)

    Praça da Sé, 108

    01001-900 – São Paulo – SP

    Tel.: (0xx11) 3242-7171

    Fax: (0xx11) 3242-7172

    www.editoraunesp.com.br

    www.livrariaunesp.com.br

    atendimento.editora@unesp.br

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

    Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior – CRB-8/9949

    H264i

    Hardman, Francisco Foot

    A ideologia paulista e os eternos modernistas [recurso eletrônico] / Francisco Foot Hardman. – São Paulo: Editora Unesp Digital, 2023.

    270 p. ; ePUB ; 198 KB.

    Inclui bibliografia.

    ISBN: 978-65-5714-382-7 (Ebook)

    1. Literatura. 2. Crítica literária. 3. Modernismo. 4. Ideologia paulista. I. Klein, Herbert S. II. Motta, Laura Teixeira. III. Título.

    2023-123

    CDD 809  

    CDU 82.09

    Índice para catálogo sistemático:

    1.  Literatura : Crítica literária 809

      2.  Literatura : Crítica literária 82.09

    Editora afiliada:

    Para a Carminha,

    Em memória

    Para Hu Xudong,

    Em memória

    Para Antonio Arnoni Prado,

    Em memória

    Ler, eu li e reli, copiei até, e continuo lendo – minha vida está dependurada nessa bosta – mas é que entendo mal, confundo, me perco.

    Que cemitério é esse, por que cemitério se parte de sua gente está viva, gente em geral desconhecida por mim, mas às vezes conhecida? Tem os que andam escrevendo para os jornais, mandando cartas ou aparecendo na editora para discutir, protestar, como se não bastasse a gritaria dos filhos e netos dos mortos, além dos filhos-da-puta que não têm ninguém nesse cemitério mas querem, como dizem, desagravar São Paulo: são os que mais berram. Cemitério?

    Não tem cemitério nenhum nesse livro maldito, [...]

    (Paulo Emílio Sales Gomes, Cemitério)

    E ele se encostou, pensativo, no lado morto de uma pirâmide; ele próprio – é uma pirâmide, o cume de uma cultura que – vai ruir.

    (Andrei Biéli, Petersburgo)

    Sumário

    Nota introdutória

    Parte I – República das ruínas e das solidões

    1 Algumas fantasias de Brasil: o modernismo paulista e a nova naturalidade da nação

    2 Antigos modernistas

    Epílogo

    3 Augusto dos Anjos e o antitropicalismo

    4 A Pan-América utópica de Sousândrade

    5 Silva Jardim: A república e o vulcão

    A desilusão do progresso

    A República sublimada

    Sublimes panoramas

    6 Mundos extintos: As poéticas de Euclides e Pompeia

    7 Reimaginando fronteiras amazônicas sob o signo do capital: figurações do trágico-moderno em Sousândrade e Euclides da Cunha

    Parte II – Paisagens estranhas, tempos extremos

    8 Elogio de um farfalhante: A palavra no século das guerras

    9 Zweig em São Paulo: dispositivos do mal

    Prólogo

    Taxidermia

    Xadrez

    Veneno

    10 Cidades errantes: signos do moderno no Nordeste oitocentista

    Introdução

    São Luís, 1866: levantadores de letras

    Recife, 1839: construtores de cidades

    Manoel Raymundo Querino (1851-1923): um elo recuperado

    Considerações finais

    11 Homus infimus: A literatura dos pontos extremos

    Norte

    Sul

    Leste

    Centro-Oeste

    12 O romancista brasileiro da era dos extremos

    I. Noturno da memória ou a esperada volta de um mestre

    II. O romancista brasileiro da era dos extremos

    13 Estranhos no ninho do modernismo paulista: Paulo Emílio, Patrícia Galvão, Flávio de Carvalho e Mário Pedrosa

    Epílogo

    14 Adeus, Macunaíma!

    Referências bibliográficas

    Cinema e teatro

    Nota introdutória

    Este volume reúne e articula, em seus 14 capítulos, uma seleção de ensaios em que tenho trabalhado, ao longo das últimas três décadas, diferentes espaços, temporalidades, sentidos e produções culturais cingidas entre modernização, modernidade e modernismo, para voltar a uma distinção importante de Jacques Le Goff. Se há uma linha de força com a qual se faz aqui um contraponto histórico-cultural incontornável, é a da ideologia paulista e uma de suas ideias fixas, a de que um evento corriqueiro e provinciano como o da chamada Semana de Arte Moderna em São Paulo fosse capaz de fundar e, a partir daí, dirigir os rumos do modernismo brasileiro.

    Tal construção longe está de ser episódica ou casual. Foi parte de um projeto, em larga medida bem-sucedido, de criar as bases da hegemonia das oligarquias cafeeira e industrial paulistas no Brasil dos anos 1920-30. O desdobramento da sagração do Teatro Municipal como templo da elite cultural paulista será a criação da Universidade de São Paulo, em 1934. Antes, um passo à frente que soçobrou em derrota militar e política: a vexaminosa revolta separatista de 1932, autocelebrada, até hoje, como Revolução Constitucionalista, à qual se aliou a oligarquia pecuária mineira, no melhor estilo do reacionarismo sudestino de tantos topetes inglórios. Felizmente, por iniciativa, entre outros, do vereador Antonio Donato (PT-SP), desde 2017, ao se celebrar o malfadado 9 de julho da elite paulista, os movimentos sindicais e sociais fazem a contramanifestação, em antigos cenários fabris e operários da Zona Leste, para lembrar do assassinato do jovem trabalhador sapateiro José Martinez, morto pela Força Pública na frente da fábrica Mariângela, exatamente a 9 de julho de 1917. Esse fato, que converteu a paralisação inicial numa das maiores greves gerais da história do Brasil, contemporâneo da Revolução Russa, é um marco da modernidade em São Paulo e no Brasil.

    Parte dos ensaios aqui editados compuseram as duas últimas passagens do meu livro A vingança da Hileia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a literatura moderno no Brasil (Unesp, 2009). Para a presente edição, foram completamente revistos. Idem quanto aos cinco ensaios novos, alguns inéditos, outros resultantes de publicações em diferentes veículos ou apresentações em eventos acadêmicos mais recentes. Todos os capítulos, na disposição atual, incluem uma primeira nota, após o título, contextualizando os lugares, motivos e momentos de sua elaboração. O conjunto de textos está organizado em duas partes: República das ruínas e das solidões, lembrando que a história trágica da formação do Estado nacional, sobretudo na passagem da Monarquia à República, é um cenário de projetos em luta, em que a vida literária, em diferentes regiões do Brasil, atuou e se expressou em obras e linguagens plenamente modernistas, do simbolismo ao decadentismo, do parnasianismo ao libertarismo; e Paisagens estranhas, tempos extremos, indicando a inelutável correlação entre literatura nacional e as contradições da história mundial contemporânea no século XX.

    Entre as mistificações mais consagradoras do modernismo paulista, cultuam-se aquelas dedicadas à antropofagia como símbolo de uma cultura brasileira capaz de deglutir e refundir todas as influências do colonialismo português ou mesmo dos imperialismos contemporâneos, sob a égide desse aspecto sensacionalista e genérico-abstrato (e, mal disfarçadamente, preconceituoso) dos povos indígenas que cá habitavam. Nova versão algo galhofeira do indigenismo romântico, contribuiu para uma nova etapa de fantasias em torno da identidade brasileira. Objeto do Capítulo 1, até aqui inédito em livro próprio, nossa crítica encontrou interessante paralelo em ensaio do intelectual argentino Horacio González a propósito da cooptação desse vanguardismo algo ingênuo, pedante e elitista de Oswald de Andrade, em seu pseudo-libertarismo mito-tecno-retórico, pelo projeto do Museu da Língua Portuguesa, na estação da Luz, em São Paulo.¹ E, notem bem, González o visitou bem antes do incêndio...

    A segunda mistificação teve lugar na rapsódia do herói sem nenhum caráter que Mário de Andrade lançou com a figura trágico-cômica de Macunaíma, em 1928, pretenso novo símbolo de uma brasilidade espontânea, frágil, condenada a naufragar e, por isso mesmo, granjeadora de simpatia que só mesmo a cordialidade natural de nossa gente é capaz de produzir. No Capítulo 14, retomo a crítica a essa construção, neorromântica e altamente preconceituosa, a partir de artigo escrito inicialmente, em 2016, para o caderno Aliás do jornal O Estado de S. Paulo. Em tempos de novas literaturas indígenas por autoras e autores dos povos originários, bem como de crescente e ativa presença de integrantes das comunidades indígenas em nossas universidades e instituições políticas – processo que se vê atacado de todas as formas por um governo genocida –, é mais do que tempo de rever e repensar certas construções que a ideologia paulista, sempre ciosa de seu bandeirismo perene, teima em nos fazer incutir.

    * * *

    Entre os agradecimentos que devo registrar aqui, fica meu muito obrigado a toda a competente equipe da Fundação Editora Unesp, a começar de seu atual diretor-presidente, Jézio Gutierre, e da secretária Rosa Maria Capabianco. Na editoração final do livro, tive o privilégio de contar com o suporte e paciência de Leandro Rodrigues e todo seu time e, além disso, com a competência insubstituível de Jiro Takahashi. Na fase de preparação inicial do volume, o trabalho de revisão e normalização feito pela pesquisadora em Literatura e Cinema e pós-doutora da ECA-USP, Danielle Crepaldi Carvalho, foi de enorme valia. Sem essas pessoas e as tantas outras que com elas dividiram tarefas, não se teria viabilizado este volume.

    Na contracorrente da febre midiática e do editorialismo comercial, é obrigatório mencionar o gentil convite do colega Elias Thomé Saliba, do Departamento de História da USP, para participarmos de uma mesa por ele mediada, ao final de fevereiro de 2019, que contou também com a presença sempre excelente da colega Luciana Murari (PUC-RS), em torno dos discursos modernistas e as temporalidades renegadas na história cultural brasileira. Realizada no Centro de Pesquisa e Formação do SESC-SP, tratou desse modernismo das ruínas, como tópico integrante do Seminário O Lado Oposto e os Outros Lados: Intérpretes Modernistas e Modernos na História Cultural Brasileira, que teve a parceria da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin e envolveu 19 pesquisadoras/es. O livro resultante desse encontro, organizado pelo próprio Elias Thomé Saliba, é certamente das melhores contribuições a uma visão crítica e nada ufanista desse processo.²

    E a Unesp novamente foi responsável pela mobilização que nos animou com o presente projeto, em duas frentes de contraponto a este ano de celebrações condenadas, no mais das vezes, à tensão sem saída entre a corrida ilusória das efemérides e a passagem real do efêmero. Em maio, na reabertura do Memorial da América Latina, em São Paulo, participamos de uma mesa de debates sobre o tema: Semana de 22: Saudades do Que Não Foi, que contou com a presença dos colegas Lúcia Ricotta (UNI-RIO), Carlos Berriel (Unicamp) e Elias Saliba (USP). À diretora do Centro Brasileiro de Estudos da América Latina (CBEAL) do Memorial AL, colega Luciana Latarini Ginezi, e ao pró-reitor de Extensão e Cultura da Unesp, Raul Borges Guimarães, meus agradecimentos pela oportunidade e reabertura desse espaço público essencial.

    No início de agosto, foi a vez do CEDEM (Centro de Documentação e Memória) da Unesp organizar o debate A Semana de Arte Moderna entre Heranças, Ilusões e Críticas. Com a participação da colega Maria Ribeiro do Valle (Unesp-Araraquara), como mediadora, e do colega Benedito Antunes (Unesp-Assis), como debatedor, foi outro momento importante de balanço crítico, acrescentando-se o marco histórico-simbólico contrastante de ter o CEDEM, entre os acervos de sua fundação, fontes primárias únicas como as do jornalista Lívio Xavier e do crítico cultural Mário Pedrosa.

    E foi no sertão da Bahia que se renovaram as esperanças contra os fascismos de ontem e de hoje, e suas continuadas tentativas de apagamento da história das classes subalternas. No final de agosto, graças ao generoso convite dos colegas Luiz Paulo Neiva (UNEB-Canudos) e Osmar Moreira dos Santos (UNEB-Alagoinhas), participamos da III Feira Literária Internacional de Canudos (FLICAN), cujo tema geral foi Revisitar Canudos, Reinventar o Brasil: o Sertão Vai Virar Arte!. Minha conferência inaugural se intitulou Sol, Luar, Revolução: o Sertão é Só Luz e Solução. Na melhor memória do amigão e poeta que nos falta, o professor Hu Xudong (Universidade de Pequim), acreditamos que sempre será possível reescrever o modernismo como utopia plural, internacionalista e articulada desde sempre às vozes e aos corpos dos sem-destino, sem-terra e sem-pátria.

    Nenhum modernismo por decreto, sagração de efeméride, estética decadente, literatice deslumbrada conseguirá apagar os sinais das temporalidades renegadas. Pois tanta vez recordar se impõe como ato epistemológico e político contra a história oficial. E a ideologia paulista com seu projeto hegemônico, ligada a aparelhos acadêmicos e corporativos que a tentam robustecer, fadada está a colapsar proximamente, junto com o sistema de crenças e de dominação que a manteve até aqui ativa. Esperemos que, em breve, por ocasião de seu passamento, não haja lugar para pompa nem circunstância.

    São Paulo-Chicago-Denver, agosto-setembro 2022


    1 Horacio González, Antropofagia e Modernismo no Brasil: uma visita ao Museu da Língua. In: O idioma da crítica, Rio de Janeiro, Fund. Darcy Ribeiro/BBLA, 2021, p.125-43.

    2 Elias Thomé Saliba (Org.), Modernismo: o lado oposto e os outros lados, São Paulo, Publicações BBM; Edições Sesc, 2022.

    Parte I

    República das ruínas e das solidões

    1

    Algumas fantasias de Brasil: o modernismo paulista e a nova naturalidade da nação

    ¹

    Parece que, mais de setenta anos após, o clima de deslumbramento e irreverência juvenil pretensamente descomprometida dos chamados anos heroicos do modernismo paulista ainda se reproduz em discursos estéticos, críticos e jornalísticos que acabaram por cristalizar a metáfora da antropofagia como programa político-cultural de uma identidade nacional vendida sempre como vanguardeira.

    Se os anos 1970 ainda marcaram esse deslumbramento, que se mesclava ao desbunde e à luta de resistência e sobrevivência contra a ditadura militar, cujos marcos culturais e políticos apareciam em manifestações como a encenação de O rei da vela pelo Teatro Oficina ou a canção Alegria, alegria, de Caetano, ambas de 1967, ou a edição de Obras completas, de Oswald de Andrade, pela Editora Civilização Brasileira, a partir de 1971, momento e clima que marcaram minhas próprias leituras de anos atrás, vejo-me na dificuldade de conservar aquela euforia, aqui e agora, diante desse mesmo material. As Poesias reunidas de Oswald, não há dúvida que envelheceram. Seu sabor de coisa datada aflora a cada página e verso. Sua graça de deboche juvenil ou pretenso piadismo como programa estético mal disfarçam preconceitos regionalistas oligárquico-paulistas de uma jeunesse dorée tão agitada e ufânica quanto avessa a outros sotaques e dialetos do país e provinciana no gosto e no pensamento.

    Mas lá estava Manuel Bandeira, que, para indignação de Haroldo de Campos, em seu antológico e apologético prefácio, Uma poética da radicalidade, à edição de Poesias reunidas, não temia em ajuizar que os poemas oswaldianos seriam antes versos de um romancista em férias, de um homem muito preocupado com os problemas de sua terra e do mundo, mas, por avesso à eloquência indignada ou ao sentimentalismo, exprimindo-se ironicamente, como se estivesse a brincar.²

    No entanto, Oswald e a poesia pau-brasil têm sido quase unanimidades positivas na crítica e na historiografia literárias, seja a universitária, seja a jornalística ou mediática. Deve-se assinalar que constituem notáveis exceções e contrapontos instigantes a essa maré: um artigo de Alfredo Bosi, Moderno e modernista na literatura brasileira, de 1979 (reunido em livro em 1988); o ensaio A carroça, o bonde e o poeta modernista, de Roberto Schwarz, publicado em 1988; e dois artigos de Vinicius Dantas, saídos na revista Novos Estudos Cebrap, em 1991 e 1996, respectivamente, sobre as contradições da poesia de Oswald e da antropofagia na estética modernista do grupo de 1922.

    No mais, permanece um diapasão canônico que, variando sua escala laudatória entre a radicalidade poética oswaldiana, afirmada como boa linhagem ancestral do concretismo de Haroldo de Campos, e a ideia da congenialidade do cosmopolitismo e do primitivismo inscritos no modernismo paulista, segundo Antonio Candido, acabou por contribuir, independente da intenção individual deste ou daquele crítico, para fazer das fantasias do pau-brasil e da antropofagia signos maiores e unívocos não mais do grupo modernista paulista, mas de um modernismo brasileiro genérico, hegemônico em seus códigos e cacoetes e monumental como construção histórico-cultural.

    Sem pretender aqui um balanço crítico, lembremos que, nos anos 1980, o historiador Richard Morse, em seu otimismo de brasilianista deslumbrado, erigiu a antropofagia em elo explicativo fundamental de seu ensaio O espelho de Próspero, na tentativa de opor às utopias multiclassistas e multiétnicas dos trópicos, por ele vistas como promissoras, a rigidez e a pobreza cultural do puritanismo anglo-saxônico na civilização norte-americana. Nota-se, aqui, um padrão valorativo que vai deitando raízes e que ajuda a compreender a evolução de certo movimento da crítica cultural até as atualmente em moda recuperações tropicalistas de Gilberto Freyre. Não será surpresa ver-se, pois, o estilo telegráfico e paródico de Oswald de Andrade ao lado do estilo derramado e dramático de Gilberto Freyre (como, de resto, sempre estivera ao lado e sob auspícios do conservadorismo romântico paulista de Paulo Prado), todos eles modernistas que redescobriram o Brasil na esteira do nacionalismo orgânico dos anos 1920 e 1930, agora redescobertos pelos apólogos neoliberais que passaram a identificar a antropofagia como uma proposta autêntica e original de negociação cultural e de multiculturalismo.

    Já nos anos 1990, mais recentemente, o psicanalista lacaniano Octavio de Souza, no ensaio Fantasia de Brasil: as identificações na busca da identidade nacional (1994), parece excetuar as representações identitárias do Brasil construídas pela geração de 1922 como as menos autoritárias na incorporação das diferenças, aparentemente crédulo ainda sobre o papel de antídoto que a antropofagia poderia representar em face do processo de globalização. E o radical e criativo sociólogo da cultura Boaventura de Souza Santos, nesse livro verdadeiramente luminoso que é Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade (1995), ao situar a relevância das chamadas culturas de fronteira na formação histórica tanto do Brasil quanto de Portugal, parece encontrar, também, na antropofagia oswaldiana, algo como a força metafórica de um meteoro libertário e emancipador que, forçoso admitir, longe do encanto das palavras e da retórica bombástica e neonaturalista da poesia pau-brasil, passados setenta anos de cristalização canônica, é difícil continuar a assim ver e crer.

    Tanto Paulo Prado, em seu canonizador prefácio datado de maio de 1924 à Poesia pau-brasil – talvez o texto mais incômodo, pela posição funcional ocupada e pelo nacionalismo orgânico mais tradicional que esposa, inclusive esteticamente, a uma leitura vanguardista ou libertária da poesia de Oswald –, quanto Haroldo de Campos, no prefácio citado, passando por Antonio Candido e Aderaldo Castello na antologia literária do modernismo que organizaram em Presença da literatura brasileira (1964, p.16-7), em que a antropofagia surge elevada a uma verdadeira filosofia embrionária da cultura, todos esses ensaístas, entre muitos outros, acabam por atribuir à produção poética oswaldiana, em maior ou menor grau, o dom de conter um projeto estético e ideológico de um novo nacionalismo, libertário, sincero, natural, neológico, despojado, simples, alegre, espontâneo, autêntico, ao mesmo tempo antenado no tempo e no mundo e fincado no solo mais remoto das raízes pátrias, porque, afinal, se manifesta como descomplexado em relação às heranças coloniais e à dependência econômica, política e cultural dos imperialismos.

    O modernismo paulista não pretendia inovar-se só no plano da região, é claro. Pretendia ascender ao universal, talvez com a ajuda inestimável de Blaise Cendrars, e imprimindo uma pretensa nova visão – dita sincera mas tão somente neonaturalista – sobre as paisagens e representações do nacional-popular. Mas a voracidade irreverente e agitada, arrogantemente posta como inovação com as vestes já um tanto emboloradas do futurismo, da figura do antropófago (como imagem e metáfora logo convertida em conceito e programa), que deveria deglutir e triturar as tradições estético-culturais externas e metropolitanas, como, afinal, se comportaria em relação ao primitivo (interno, local, profundo, antigo)? A pergunta procede se, descartando-se tanto o otimismo da caracterização de Candido em termos de congenialidade como a expressão antropologicamente tolerante e condescendente de Roger Bastide na imagem da apologia do papão indígena,³ e duvidando-se metodicamente da carta de intenções dos manifestos da poesia pau-brasil e da antropofagia, continuarmos reclamando pela relação desses autoproclamados e particulares modernistas com as efetivas diferenças socioculturais dos imponderáveis, incontáveis e inominados restos encobertos de Brasil, essas outras locações espaçotemporais de incomensuráveis fantasias e realidades.

    A cada nova leitura desse material, vai ganhando corpo a convicção de que – especialmente se se concentrar a atenção sobre a chamada fase heroica do modernismo paulista e da poesia de Oswald, ao correr dos anos 1920 – a tese do chamado indianismo às avessas, para retomarmos expressão do famoso prefácio de Haroldo de Campos, soa hoje, em grande parte, como mistificadora. Redução estética e operação ideológica tanto mais valorativas e subjetivistas quanto a insistência, já presente em Paulo Prado e, depois, reiterada ao máximo por Haroldo de Campos, de apresentar a poética oswaldiana como que ancorada num lirismo objetivo, irmão de mecanismos modernos, aparentado ao flash fotográfico, fio telegráfico ou cinema-documentário e pintado, assim, como anti-ilusionista. Como se isso fosse possível sem mediação de linguagens e, portanto, de imaginários:

    Materiais simplesmente apresentados. Desmistificados e desmitificantes.

    Nisto a poesia oswaldiana realiza o seu projeto: é brasileira e de sua época. (Campos, 1974, p.34)

    O que se verificará, ao contrário dessa afirmação grandiloquen­te de coincidência entre brasilidade e modernidade (muito próxima, é forçoso reconhecer, da congenialidade dos aspectos cosmopolita e primitivista no modernismo brasileiro propugnada por Candido), é que a poesia pau-brasil e antropófaga acaba incorporando, com sinais trocados, um índio idealizado e um negro domesticado, para só ficar nos dois grandes conjuntos étnicos não brancos da formação social brasileira. Porquanto, como qualquer análise linguística do discurso hoje sugere, não há, na esfera labiríntica da linguagem, transparência absoluta nem possibilidade de realizar o sonho de que se tenha, no processo de produção textual, materiais simplesmente apresentados. Há, sim, a representação ilusionista de sua simples exposição objetal. Tal modalidade de neonaturalismo ou supernaturalismo pode ser tão ou mais mistificada e mistificante, a depender dos olhares cruzados e das apropriações culturais que a mobilizem. Digamos que, nos anos 1920, do ponto de vista histórico-estético internacional, sua utilização já estava algo ultrapassada, esgotado o fascínio das retóricas futuristas, ao contrário do que aqui apregoavam seus arautos.

    Mas a nova nacionalidade que nasce desse neonaturalismo depende, igualmente, de operações ideológico-discursivas que, homogeneizando diferenças culturais e aplainando temporalidades estanques, com todos os seus conflitos antagônicos sublimados, no constructo textual maleavelmente plástico e absorvente de uma geleia geral brasileira, podem, até com certa dose de gracejos cativantes, excluir terminantemente as alteridades em nome de uma liberdade limitada das variações sócio ou etnolinguísticas, que passam a ser vistas não mais como produtos de sujeitos historicamente diversos e contraditórios, mas apenas como tipos ou costumes – no fundo pitorescos, folclóricos – de uma pluralidade carnavalizada tão mais festejada quanto impotente em sua inorganicidade.

    A exclusão, aqui, não é aquela praticada pelo colonizador ocupante (e que, no limite, seguiu seu curso predatório e genocida). O gesto, nesse caso, é algo mais sutil, mas não menos grave. Pois se concede, aos de baixo, uma pseudovoz, esta será sempre representada como voz da subalternidade. Vai-se retratando, assim, uma série de tipos, figuras engraçadas e homens dignos de registro, porque rústicos, porque somente assim, subalternos, podem ser incorporados sem ameaça à ordem discursiva que se debruça até essa espécie de etnografia caricatural, passiva, feita de notações à moda de um turista espirituoso (kodak excursionista), para que, em momento seguinte, os primitivos assim redescobertos sejam neutralizados como objetos meramente decorativos desse verdadeiro sentimento poético.⁴ Sentimento,

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