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A Farsa de Alejandro
A Farsa de Alejandro
A Farsa de Alejandro
E-book360 páginas5 horas

A Farsa de Alejandro

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Sobre este e-book

Terreno, 1983, América Latina. Após uma ditadura de dez anos, a brutal junta, liderada pelo general Pelarón, parece hesitar.


Alejandro Juron, guitarrista do famoso poeta e cantor popular Victor Pérez, que foi executado pela junta, é solto da infame prisão “Última Ceia”. A resistência clandestina quer que Alejandro participe em sua luta novamente. Mas Alejandro mudou.


Consumido pela culpa por causa da morte de seu amigo Victor, a quem ele traiu perante seus algozes, Alejandro se torna, acidentalmente, o centro de uma rede de intrigas que culmina em uma catastrófica insurreição e tem que escolher entre o amor ou a fuga.


Um história de amor, um suspense e uma análise do mecanismo que governa uma ditadura, A Farsa de Alejandro é um romance cativante sobre violência, traição, resistência, corrupção, culpa e amor.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento8 de out. de 2023
ISBN9798890083432
A Farsa de Alejandro

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    A Farsa de Alejandro - Bob Van Laerhoven

    A Farsa de Alejandro

    A FARSA DE ALEJANDRO

    BOB VAN LAERHOVEN

    Traduzido por

    CLAUDIA VILANOVA

    Copyright (C) 2021 Bob Van Laerhoven

    Design de layout e copyright (C) 2023 por Next Chapter

    Publicado em 2023 por Next Chapter

    Editado por Luiza Arce

    Capa por CoverMint

    Este livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e incidentes são produto da imaginação do autor e são usados ficticiamente. Qualquer semelhança com eventos reais, locais ou pessoas, vivas ou mortas, é pura coincidência.

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer forma ou por quaisquer meios, eletrônicos ou não, incluindo fotocópias, gravações, ou por qualquer arquivo de informações ou sistema de coleta, sem a permissão do autor.

    Conteúdos

    Fin A La Censura

    O Vento Da Cordilheira

    A Dúvida De Um Padre

    A Pomba Nas Montanhas

    Os Caminhos Do Poder

    A Maldição Do Passado

    As Duas Faces De Um Homem

    Um Fogo No Coração

    A Escuridão Na Alma

    A Cruel Necessidade De Amar

    A Insustentável Leveza Do Senso De Honra

    Caro leitor

    Acerca do autor

    A anotação

    Fin A La Censura

    1

    Para eles, nosso sangue é uma medalha

    Merecida na eternidade, Amém

    Assassinos contra nós todos, nossos homens.

    O verso era de um de seus amigos, a última canção de Víctor antes de ser torturado até a morte. Alejandro Juron foi atormentado por ele enquanto assistia ao desfile repleto de tanques na quarta-feira, 19 de outubro de 1983, em Valtiago, capital de Terreno.

    O desfile fora anunciado com muita pompa e luxo como uma poderosa expressão da ânsia do povo.

    Oradores asseguraram aos manifestantes que O Povo iria, finalmente, derrotar a junta do general Pelarón.

    A retórica pomposa divertiu Alejandro:

    Ombro a ombro, nós forçaremos a abertura das portas para a democracia prometida pelo general Pelarón!

    — Cruzarei meus dedos, seus lerdos — Juron murmurou alto, um hábito adquirido dos anos no confinamento solitário.

    Geralmente vibrante e colorido, hoje o grande shopping center da Avenida General Pelarón tinha a mesma tonalidade soturna das Montanhas Andinas detrás da cidade. Ônibus policiais pretos com janelas blindadas surgiram no fim da rua.

    Alejandro Juron adentrou a varanda de um café. Normalmente o café estaria lotado de trabalhadores de escritório àquela hora do dia; mas, por conta da comoção, estava vazio. Um tanque policial bloqueava a via.

    Anos atrás, Juron havia sido um guitarrista muito celebrado em um grupo chamado Aconcágua, famoso por todo o continente latino americano por suas músicas de protesto; mas não se sentia inspirado a participar daquela marcha de protesto.

    Os manifestantes estavam fora de si: a junta que governara Terreno pelos últimos dez anos não estava à beira do colapso, como os oradores disseram. Nos últimos meses, havia feito algumas concessões para que parecesse menos ditatorial, mas Alejandro sentiu que tudo não passava de uma cortina de fumaça.

    A crise econômica e os crescentes protestos populares haviam, recentemente, forçado o general Pelarón a anunciar que iria abrir as portas à democracia no momento apropriado e da maneira apropriada.

    A oposição, uma pitoresca coleção de grupos dispersos que, na maior parte do tempo, estavam engalfinhando-se entre si, tomou as ruas depois do discurso do general, como se a vitória já houvesse sido alcançada.

    Juron tinha certeza de que Pelarón havia feito aquela promessa para forçar os oponentes a saírem da clandestinidade e tê-los reunidos pelo interesse da paz nacional.

    Ele queria correr, mas seus olhos o detiveram — estava vendo a fata morgana que o atormentou incessantemente em sua cela de prisão. Ali estava ela — cintilando na neblina que subia das poças da manhã chuvosa.

    Lucía.

    O nome de seu amor secreto parecia fora de contexto nessas circunstâncias. Enquanto os instintos de Juron o diziam para cair fora dali, ele era incapaz de tirar seus olhos daquela mulher na multidão. Ela havia amarrado uma echarpe por cima da boca, literalmente amordaçando a si mesma, e carregava um cartaz ao redor do pescoço com os dizeres Fin a la Censura. Seu rabo de cavalo, o brilho reluzente em seu cabelo: estavam da mesma maneira como Lucía costumava usar. Poderia ser um sinal que, finalmente, poderei purgar minha penitência?

    Alejandro praguejou: esses pensamentos seriam de um músico romântico, não de um homem que precisava manter um comportamento discreto. Fora daqui!

    O que o segurava? Ele sabia muito bem que a melancolia era uma criação nociva do ego. Após dez anos no Ultima Cena — a prisão que as pessoas chamavam de Última Ceia, pois a ceia era a única refeição que lhe davam no dia de sua execução —, a melancolia de Juron havia decaído tal qual uma água viva podre que ele costumava encontrar na praia quando criança.

    Um Peugeot branco estava estacionado adiante na rua, do outro lado do Centro Médico Dentário. Um homem de óculos e armado com uma pistola desceu e começou a atirar aleatoriamente.

    A polícia usou o incidente para investir contra a multidão. Em um momento, os manifestantes eram uma massa avançando lentamente, e no seguinte eles corriam por todas as direções como formigas enlouquecidas. O homem voltou para o Peugeot e desapareceu por uma rua adjacente.

    A polícia lançou bombas de gás lacrimogêneo. Alejandro concluiu que o homem no Peugeot era um agitador, um membro de uma das facções de extrema direita que tinha influência considerável em Terreno. Atirando em direção à polícia, ele deu aos carabineros um motivo para atacar.

    Juron queria fugir, mas notou que a mulher, com a boca ainda amordaçada e Fin a la censura ainda balançando em frente aos seus seios, estava correndo através das nuvens de gás lacrimogêneo na direção errada. Ele correu em direção a ela. O barulho se tornou ensurdecedor nesse momento — tiros intercalados com motores de carros sendo ligados.

    Juron alcançou a mulher e a agarrou pelo braço. — Direção errada, siga-me — falou. Ela o olhou, com os olhos vermelhos do gás. Juron apontou para a rua ao lado. Ela se deu conta do erro, e os dois correram até El Paseo de Lyon, uma rua pedonal cheia de lojas.

    Dois jipes da polícia apareceram no fim da rua indo em direção a eles. Os prédios desapareceram do campo de visão de Alejandro. Tudo que ele podia ver eram rifles sendo apontados dos jipes, como se fossem o fim de um túnel. Havia uma entrada de metrô alguns metros adiante, então ele agarrou a mulher e a puxou para dentro. Eles acabavam de chegar às escadas quando os jipes passaram lá fora. Alejandro estremeceu enquanto as balas furavam as paredes acima de suas cabeças. A mulher gritou algo incompreensível. Eles correram escadas abaixo e fugiram em direção aos túneis do metrô.

    Juron olhou para trás. Ninguém os seguia. Prepare-se para o pior, e dessa vez você estará com sorte, ele pensou — o que não era muito comum. No corredor brilhantemente iluminado que levava à bilheteria, ele começou a rir e parou de correr. A mulher soltou a sua mão. Ela o mediu, tirou a mordaça da boca, e a colocou no bolso da calça.

    — Preciso pegar o trem — ela disse tão baixo que Alejandro mal a entendeu. Ela hesitou por um segundo. — Obrigada.

    Não era Lucía, claro. Lucía estava morta, ele sabia disso. Ele pensou sobre isso na janela da bilheteria: o bigode fino que vinha cultivando ultimamente e as linhas grossas em ambos os lados de seu nariz. Ele era pequeno e maltrapilho, não era o tipo de homem astuto, com cabelo de brilhantina, não era o tipo de homem para quem uma mulher como aquela olharia.

    — Eu entendo — ele disse, imaginando se ela teria notado que ele havia bebido. — Você não deveria nunca perder um compromisso com o seu cabelereiro, entendo perfeitamente. — Ele sabia porque estava repugnante. As roupas e cabelos dela exalavam a dinheiro. Ela provavelmente era uma dessas feministas de esquerda que gostavam de ir para a cama com revolucionários falastrões. Isso as permitia flertar com a ideia de que faziam parte da resistência, lutando contra a junta e contras as visões ultrapassadas sobre o status de homens e mulheres.

    Alejandro sorriu em resposta à surpresa na face dela. — Tenha um ótimo dia. — Ele acenou com a cabeça e seguiu em frente.

    — Ei! — ela gritou. — O que você vai fazer?

    — Tomar um ar fresco.

    — De volta à rua?

    — Sou um pivete de rua. Onde mais deveria ir?

    — Posso ao menos te comprar um bilhete de metrô?

    Alejandro parou. Um homem terrenino deveria ser capaz de pagar por seu próprio bilhete de metrô, mesmo que tivesse sido liberado do Última Ceia há apenas duas semanas.

    — Você não consegue ver que estou quebrado? — ele perguntou. Ele tinha que garantir imediatamente que a mulher o desprezasse; era a melhor opção.

    — Não foi isso que quis dizer — ela disse, nervosa. Ela olhou para a saída. — Eu deveria estar nas ruas também, com os outros.

    — A solidariedade é uma qualidade nobre em uma pessoa — Alejandro afirmou. — Mas não quando há munição voando pelos ares.

    Ela correu seus dedos pelo rabo de cavalo.

    — Deveríamos nos separar — ela falou como se eles estivessem em um relacionamento de anos. — E se a polícia tiver nos seguido até aqui?

    Alejandro podia ver nos olhos dela: ela tinha se dado conta de que ele estava bem alcoolizado.

    — Aonde você quer ir? Deixe-me comprar um bilhete; te devo ao menos isso — ela disse, inclinando a cabeça, revirando a bolsa.

    — Estou indo para Canela. Te pago de volta outro dia.

    Pela primeira vez, ela sorriu. Alejandro olhou em outra direção. Eles andaram até a bilheteria. A mulher aproximou sua boca do vidro do guichê para ter certeza de que ele não escutaria qual era o destino dela. Alejandro olhou com desconfiança. Ele tinha encoberto o fato de que Canela, um bairro operário, não era seu destino final, mas sim a favela logo depois, a qual era chamada de porqueriza.

    — Oink, oink — ele sussurrou. Se ela fosse esperta, e ela parecia ser, teria adivinhado que ele vivia no Chiqueiro a essa altura. O olhar na face dela entregou que ela estava se sentindo cada vez mais desconfortável na companhia dele.

    Eles foram até a plataforma. Um trem cinza do metrô chegou. Ela lhe entregou o bilhete. — Então, hã... esse é o meu trem... Tchau. — Ela hesitou. — E obrigada novamente.

    — Tchau.

    As portas se abriram. A mulher entrou.

    — Qual o seu nome? — disse Alejandro através da porta fechada. — Deixe-me escrever uma canção para você. — A mulher olhou para ele através do vidro sujo e negou com a cabeça, educadamente. Ela provavelmente não havia entendido. O trem começou a se mover. Alejandro a viu se afastar da estação, com seus braços levantados como se estivesse segurando uma guitarra. Ele ainda estava parado na mesma posição quando o seu trem chegou.

    Ele desceu no fim da Avenida General Pelarón, uma jornada de vários quilômetros, e deixou para trás os bairros ricos; seu olhar estava fixo na Cordilheira, agora vermelha alaranjada como uma muralha acastelada subindo sobre a cidade, com seus picos cobertos de neve.

    Seu passado era como as montanhas: inóspito.

    2

    Deixe-me contar-lhe um segredo,

    No carrossel de meu coração pulsante

    Escolhi um apelido para mim.

    Uma rima engraçada com minha pequena cabana

    De madeira apodrecendo e lenta decadência

    Todas as noites me chamo de muquirana.

    Alejandro parou em frente ao barraco que chamava de lar, enojado com o lodo frio, com o cheiro e com a pintura descascando no painel da Coca-Cola, que servia de porta. Empurrou-o de lado. O bairro operário, conhecido como Canela, levava ao que todos chamavam de o chiqueiro, uma favela com mais de cem mil almas. Alejandro tinha consciência de que deveria ser grato pelo barraco que seus velhos amigos arrumaram para ele. Milhares de pessoas em Valtiago estavam em situação de rua.

    Desde que podia lembrar, a feiura sempre o incomodou profundamente. Certa vez ele perguntou a seu avô por que as coisas se tornavam feias. — Tornam-se velhas, você quer dizer — respondeu o avô. — Manutenção, esse é o segredo, Alejandro. Se você mantém as coisas em um bom estado, elas preservam o seu valor, e algumas vezes até passam a valer mais.

    O Alejandro de dez anos de idade se perguntou se manteria seu próprio valor caso se mantivesse em um bom estado.

    Mas seu valor não tinha aumentado, isso estava claro. Alejandro sabia por que a junta o havia liberado recentemente da prisão. O governo tinha tirado da prisão detentos considerados fracassados para diminuir a gigantesca população prisional.

    Depois do tratamento rigoroso do Última Ceia, Alejandro se viu em uma sociedade que o confundia. Dez anos atrás das grades o transformaram em um estranho em uma terra estranha. Nesse mesmo período, a junta teve sucesso em mudar Terreno com a ajuda da mídia de massa. Nada permaneceu igual, nem mesmo a música. O governo nacional, sob a presidência de Galero Álvarez, via a música como parte da herança cultural do país; agora, ela fora substituída pela invasão do disco americano.

    Ele rapidamente se deu conta de que a resistência contra a junta tinha ido para a clandestinidade e estava particularmente viva nas partes mais pobres da cidade. Os meios limitados deles requeriam que suas atividades fossem limitadas, apesar de seus planos ainda serem bastante grandiosos na escala das coisas. Muitos haviam esquecido dos heróis do passado. Álvarez, que se matou com um tiro na cabeça quando o exército virou suas armas contra o palácio presidencial, era frequentemente referido em termos pejorativos como um idiota marxista que havia jogado o país em um abismo econômico.

    Entretanto, as notícias da liberação de Alejandro rapidamente circularam na comunidade. Pessoas trouxeram presentes para ele no começo, a maioria homens de meia idade com filhos que não os respeitavam. A maioria das pessoas acima de trinta e cinco anos olhava para Víctor Pérez — o amigo morto de Alejandro e antigo líder popular da banda Aconcágua — como uma espécie de herói. Para eles, a magnificência de Pérez como guardião da originalidade cultural ainda refletia uma pequena luz em Alejandro Juron. Mas as crianças passavam por ele indiferentes, com seus rádios ressonantes pressionados em seus ouvidos: whack-a whock-a.

    Dentro de seu barraco, Alejandro molhava, com uma lata enferrujada cheia de água, as plantas que estava tentando cultivar em caixas velhas de papelão. Ele se agarrava às pequenas coisas que poderiam tornar sua vida suportável. Eu vivo pela graça das pessoas que têm pouco mais do que memórias, pensou consigo mesmo, desanimado. Você também, Violeta. Há mais de quinze anos atrás, você me ensinou como tocar violão, e, há duas semanas, você encontrou esta cabana para mim. Você encostou sua cabeça em meu peito e chorou quando me encontrou em frente ao Última Ceia, após minha liberação. Eu fiquei ali, piscando na luz do sol, com um zumbido em meus ouvidos. Você pode ter se tornado cinza, Violeta, mas você ainda acredita nos velhos ideais. Eu a vi se apresentando dois dias atrás para as pessoas do acampamento. Uns poucos amargurados vieram ouvir sua voz rouca e escutar as suas músicas. Você estava tão animada quanto nos velhos tempos, e seus olhos ainda brilhavam sob seus cabelos fino, mas seus quadris estavam mais lentos do que antigamente, e seu fôlego, mais curto. Eu me afastei. Tenho certeza de que você me viu partir, e eu acho que você sabe o porquê.

    Alejandro rangeu os dentes, pegou uma lata de Nescafé e acendeu o fogo sob uma panela com água. A luz em seu rancho tinha um filtro vermelho vindo de uma folha plástica que ele usava como janela. Quando estava quente, ele a retirava, mas o vento dos Andes podia ser frio e tempestuoso na primavera.

    Ele assistia às pequenas ondas de fervura da água colidirem contra a panela no mesmo ritmo que os pensamentos em sua cabeça. Um grande autor uma vez escreveu que o mar nunca parava de se mover, porque, se o fizesse, todos nós sufocaríamos. Ele sentiu o vapor começar a queimar seu rosto. Algumas memórias eram incessantes, especialmente as memórias do estádio de futebol de Valtiago.

    Dez anos antes, o exército reuniu os oponentes da junta no estádio. As memórias de Alejandro eram repugnantes — lembrou-se da banheira enferrujada com água fervente em que os prisioneiros eram forçados a entrar. Os bastões eletrificados que eram usados nos genitais dos prisioneiros… como eles soltavam faíscas azuis na escuridão. Os gritos constantes ricocheteavam em todas as paredes.

    Eram memórias de ranger os dentes: a própria evidência de que os torturadores seguiram em frente, impunes.

    Por que o mundo olhou para o outro lado? O Presidente Nixon aplaudiu a junta de Pelarón quando esta tomou o poder em 1973 e usou palavras como ordem, calma, prosperidade econômica e aliado.

    Havia Nixon dado ao general Pelarón carte blanche porque ele se referia aos oponentes de Nixon como comunistas e terroristas? Ou porque a junta tinha emprestado quantias massivas de dinheiro em nome do povo e deixara a conta para os cidadãos?

    Alejandro tentou desajeitadamente remover a panela do fogo, mas ela caiu de sua mão, e a água desabou sobre a superfície de ferro enrugada atrás do fogareiro.

    Moralmente, ele enfrentou seu inegável abismo interno. A mulher que lhe deu o bilhete de metrô era uma sombra em carne e osso, um fantasma que ele tinha de suprimir o quanto antes.

    — Sou um idiota, um completo idiota — disse Alejandro enquanto juntava a panela. Ele riu e tateou sob a tábua de madeira que servia de cama, o lugar mais seguro para guardar seu violão. Violeta Tossa o havia guardado enquanto Alejandro estava preso. Ela nunca deveria ter feito isso: o violão o fazia morar no passado. Agora o instrumento parecia insistir que ele compusesse músicas novamente em uma terra que perdeu sua audição.

    Toda a desgraça em sua vida tinha raízes na atração entre palavras e música. Não era amor à primeira vista: por boa parte de sua juventude, o violão era o seu relutante favorito. Violeta Tossa, com um cigarro permanentemente pendurado em sua boca, o ensinou com paciência infinita como seduzir o instrumento. Ela mudou completamente a vida de Alejandro no dia em que sugeriu que ele fosse encontrar o lendário cantor Víctor Pérez.

    Alejandro se lembrava do calor no ar naquele dia, do horizonte baixo induzido pelas montanhas, da massa de nuvens reminiscentes a um céu sombrio de Rembrandt. Violeta e Alejandro estavam sentados no jardim dos pais dele. Violeta pedira para ele escrever alguma coisa à la Pérez dois dias antes. Alejandro ficou sem dormir a noite inteira trabalhando nos versos. Ele havia bebido, e as palavras não estavam exatamente coesas, mas ele convenceu a si mesmo de que o mundo deveria ouvi-las.

    Ele tinha dezenove anos e pensava que sua nova canção de protesto se sobrepunha à qualquer coisa que Pérez havia escrito. Mas os olhos de Violeta se estreitaram enquanto ela escutava.

    A reação de Violeta à sua performance o cortou como uma faca cega: — Me poupe da choradeira, garoto! — Quando ela riu, seus seios maternos pousaram no topo de sua barriga protuberante. — É sobre política que você está tentando cantar.

    — Claro que é — ele respondeu, com reprovação à estupidez estampada na face dela. — Você queria alguma coisa no estilo de Pérez, não é mesmo? Ele não escreve canções de protesto? Coisas antigas. Meu trabalho é o tipo de canção de protesto que Dylan escreveria.

    — Você parece um sapo-boi! — Violeta rugiu com risadas. — Se você gritar assim, deixará as pessoas surdas. Você tem que encher os corações delas com paixão. Você parece um gringo gritando slogans na TV e levando todo mundo à loucura. — Ela dedilhou seu violão. — E esse violão, garoto, isso não é um burro sarnento. Ele não merece essa batida de jumento que você está fazendo. É a sua primeira namorada, aquela com cabelos mais macios do que seu coração pode lembrar. — Ela arrancou uma melodia espirituosa que lentamente se tornou melancólica e triste.

    Quando levantou a cabeça, ela viu a mágoa nos olhos de Alejandro. — Anime-se, garoto, você chega lá um dia. Você é capaz; você consegue fazer o violão cantar. Ele é a voz das pessoas que perderam a fala.

    Ela gesticulou apontando para a rua.

    — Sem voz, todos eles, sem palavras: tudo o que podem fazer é esperar até que a morte os alcance. — Violeta balançou a cabeça, e a astúcia encheu seus olhos. — Seu violão deve dar voz ao silêncio deles, coaxando, chiando, batucando, ameaçando, gritando. E você poderia fazer, se não fosse tão facilmente satisfeito, pelo amor de Deus. Você não é Dylan nem Bob Seger. Você é Alejandro Juron, e sua alma é daqui, desse lugar. Esses malditos miseráveis aí de fora merecem a sua voz, e não uma imitação barata. Vamos lá, toque para mim uma música à altura de Víctor Pérez.

    Alejandro suspirou e tocou uma corda. Como ele poderia dizer à Violeta que ele estava interessado somente na fama e normalmente tinha dúvidas a respeito destas músicas de protesto terreninas, não importava o quão populares fossem? A única maneira de virar uma estrela nos anos 1970 era com música pop. Víctor Pérez tinha uma voz decente, mas o conteúdo de suas músicas era folclórico. Os pobres sempre venciam. Ao invés de cantar sobre sexo e política como os pop stars americanos, as músicas dele eram como contos de fadas. Alejandro tinha certeza de que as canções de amor que ele escrevia em segredo eram melhores do que músicas de protesto, principalmente se ele queria construir um nome para si. Os pobres terreninos não queriam ouvir sobre seus direitos morais. Eles queriam dançar as entonações provocativas de amor escaldante. Violeta não conseguia entender isso? Não importa o quanto fora de moda ela era, ele tinha que admitir que ela seguia sendo uma professora de violão inspiradora. A mãe dele — também pateticamente cafona — o encorajou a ter aulas com ela, frisando que Violeta não aceitava qualquer um como seu pupilo.

    Alejandro ficou pensando quanto tempo ele seria capaz de aguentar Violeta. Uma coisa era certa: ele estava determinado a tocar em uma banda de pop, de qualquer jeito. Ele a presenteou com uma canção como ela havia pedido, concentrando-se no som de sua voz e do violão. Ele queria adoração, mesmo que fosse somente da parte de Violeta, e, quando acabou, ela disse: — Cheio de técnica e voz, mas com um coração relutante. Eu o colocarei em contato com Víctor Pérez. Ele ainda está procurando por alguém para a banda nova dele, Aconcágua. Talvez isso faça você acordar.

    Isso foi em 1970, o ano em que ele se encontrou completamente atônito sob a influência de Víctor Pérez e descobrindo a riqueza do repertório da Aconcágua. Treze anos depois, a rádio vomitava pop americano o dia inteiro, e os sons de Aconcágua haviam sido banidos. Alejandro estava certo sobre o futuro da música, mas não da maneira como ele esperava. Agora ele era considerado um homem velho pela juventude inquieta e achava que Flashdance...What a Feeling, de Irene Cara, e Girls Just Want To Have Fun, de Cindy Lauper, eram porcarias sem alma.

    Alejandro virou a guitarra, ligou a caixa de som e dedilhou uma corda. Seus dedos eram guiados de maneira confiante pelas cordas. Era impressionante como eles lembravam o caminho das escalas. Alejandro não tinha que procurar muito por uma melodia: ela surgia de dentro dele, definhando com desejo. Ele podia buscar por uma reserva interminável, na qual todas as notas eram tão jovens quanto no dia em que haviam nascido. Mas as palavras resistiam. Depois de tudo o que ele havia passado, elas pareciam infantis. Elas convulsionavam como peixes apanhados na rede de um pescador. Alejandro pegou as páginas bem-manuseadas de debaixo do travesseiro e as leu como se tivessem sido escritas há apenas alguns dias.

    Botas pisam na grama sob os pés,

    Almofarizes deixam corações em cinzas.

    Mas fora da vista deles,

    A flor da paixão sangra,

    E a liberdade é pesada

    Contra uma morte vazia.

    Tradicionalista e comum. Ele nunca seria capaz de imitar o talento de Víctor em conciliar tradição e modernidade. Ele lembrou de como Víctor dispensou suas tentativas de introduzir músicas divertidas e dançantes no repertório da Aconcágua. Alejandro reagiu piorando a situação: aqui está uma música sobre um gringo que quer transar em Valtiago, Víctor. Não? Que tal uma sobre Jesus Cristo se perdendo nos desertos de Terreno? Mas enquanto Víctor ria e balançava a cabeça, Alejandro sentia inveja. Ele era jovem, queria ser como Víctor, só que diferente. Ou melhor ainda, tomar o seu lugar.

    Alejandro serrou a si mesmo em pedaços como um mágico que foi longe demais. Finalmente, e apesar de si mesmo, o senso de justiça inato de Víctor começou a afetá-lo gradualmente, influenciando-o, juntamente com a seriedade de Pérez, que se recusou a render-se, até mesmo quando os militares o ameaçaram, e mesmo depois de ter passado a primeira noite na cadeia, quando o deixaram com marcas de cassetete por todo o corpo.

    Alejandro não estava apenas fascinado e invejoso de seu amigo; ele também estava encantado por Lucía Altameda, a esposa de Víctor.

    Alejandro correu os dedos pela placa de gesso úmida que formava a parede ao lado de sua cama. A linha da mandíbula de Lucía. Ele balançou a cabeça e começou a cantar em uma voz em falsete, dedilhando uma melodia simples em seu violão.

    Era uma vez um garoto do campo

    Um garoto do campo terrenino

    Um homem em quem ninguém podia confiar

    Mas ele pensava ser um herói

    Um verdadeiro herói popular azul,

    Não, não, não brinque

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