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Sistema Único de Sofrimento
Sistema Único de Sofrimento
Sistema Único de Sofrimento
E-book200 páginas2 horas

Sistema Único de Sofrimento

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Sobre este e-book

Entre fogos de artifício, rodas de samba e conversas animadas nos bares de um bairro
periférico, uma mistura de estrondosos estampidos e ruidosas sirenes rompem de vez
a calmaria. A troca de tiros entre polícia e bandidos acaba com a triste matemática de
quatro mortos e dois feridos. Um deles bem que tentou fugir, mas a surpresa ao ver o
homem fardado em seu caminho o fez atirar. O homem da lei, que já não estava a
trabalho naquele instante, reage e também o alveja. Baleados, ambos caem.Atendidos
pela mesma ambulância, somente no meio do caminho até o hospital de urgência é
que os melhores amigos da infância, agora em lados opostos do sistema, se
reconhecem. Um encontro que abre feridas antigas e revela um assustador fato em
comum: os dois têm o mesmo inimigo.Entre ações desastrosas, amores perdidos e a
cruel realidade da periferia, eles descobrem que, no fundo, ninguém é herói, tampouco
vilão.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento23 de jan. de 2024
ISBN9789893757864
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    Pré-visualização do livro

    Sistema Único de Sofrimento - Valter Ferreira

    sistema-unico-de-sofrimento-ebook.jpg

    DEDICATÓRIA

    Dedico esta obra a todos que me ouviram, incansavelmente (vez ou outra mesmo cansados), falar dela. A todos aqueles que lutam por uma vida um pouco mais digna e, em especial, ao Marcelo D2 e ao Leandro Sapucahy que, por meio dos versos da canção Numa cidade muito longe daqui, de autoria de Arlindo Cruz, Acyr Marques e Franco, me inspiraram a escrever essa estória.

    AGRADECIMENTOS

    Agradeço à vida, que me fez ver, ouvir e conhecer tantas histórias, apesar de elas, infelizmente, machucarem tanto a tanta gente. Que eu possa ajudá-las a chegarem cada vez mais longe, alcançando mais pessoas e que essas pessoas façam algo para que tais histórias parem de se repetir.

    À Alini, minha fiel escudeira, que tenta sempre me apoiar, ao meu filho, Gabriel, que por si só é uma razão para eu continuar levantando da cama, e minhas enteadas, Gabi e Julia, que são sempre o combustível para buscar um mundo melhor.

    Em especial, agradeço aos meus amigos Ricardo Fausto Miranda e Renata Rocha que, muito mais do que bons ouvintes, foram peças fundamentais para evitar que eu falasse besteiras quando eu não possuo o lugar de fala.

    MUITO OBRIGADO!

    CAPÍTULO 1

    O som do cavaquinho dá o tom para que a ritmada alternância de dedos na pele do repique de mão chame o pandeiro, que firma o pagode e segura o ritmo até que o tantan entre na marcação. No meio da roda, uma mesa sustenta os copos de cerveja que aliviam as goelas a cada intervalo entre uma canção e outra. No entorno da roda de samba, o público vai ao delírio quando o vocalista canta outra música do Fundo de Quintal, afinal é das mais antigas que o pessoal gosta, o chamado Samba Raiz.

    Era quinta-feira, perto das 23h, e o samba estava perto de seu final, quando a estrondosa sirene da ambulância destoou da baixaria harmoniosa do violão, que dava a deixa para que o tom subisse e o refrão de A Amizade embalasse os já mais alterados pelo álcool que, abraçados aos velhos amigos que acabaram de conhecer, cantavam a plenos pulmões, jurando: … a amizade, nem mesmo a força do tempo irá destruir.... Nenhuma lágrima rolou, no entanto, daqueles rostos já rubros e emocionados sob os melhores efeitos etílicos. O clamor vindo da sirene era mais alto e mais dolorido do que qualquer verso do samba mais sofrido que saísse daquelas vozes afoitas por esquecer as dificuldades de um dia a dia tortuoso. Sair da realidade era tudo o que queriam, mas ela sempre grita mais alto. E aquela era a realidade de muitos dos que ali estavam. Um tapa na cara piscando em vermelho e azul, enquanto o silêncio ensurdecedor do samba dava protagonismo a mais um triste e rotineiro caso de jovens lutando pela vida — ou contra ela.

    Claro que poderia ser qualquer outra coisa: talvez uma senhora que sofrera uma queda nos estreitos degraus que levam ao subsolo, onde fica sua humilde residência em um cortiço; talvez alguém que bateu o carro, depois de sair bêbado de um bar (quem sabe daquele mesmo bar); até mesmo alguém que tenha sido atropelado por este motorista, que fugiu após o incidente. Sim, as possibilidades eram inúmeras, mas parece que a sirene grita mais alto quando o mundo do crime leva mais um semelhante.

    E ali estavam, ao som da estridente sirene, dois rapazes, com seus vinte e poucos anos (vinte e muitos, talvez), implorando por mais uma chance, mais algum tempo nesta vida, neste plano, seja lá como cada um queira praticar sua fé. As roupas estilosas, condizentes com a moda local, tingidas de vermelho, bem como a farda, que sequer deveria vestir aquele corpo no momento em que fora alvejado. Duas macas, dois tubos de oxigênio, um socorrista, um motorista e um policial, com seu ódio destilando uma vontade absurda de acabar de uma vez por todas com a vida daquele corpo inerte mas ainda pulsando. Ele sabia que não podia fazer isso, não ali, não com testemunhas. Mas não achava justo ver o amigo ferido na maca ao lado, também desacordado, embora com ferimentos mais leves. Um homem de bem, com tanto sofrimento nas costas, querendo garantir a paz e a tranquilidade para a sociedade, atingido por um traficante pé de chinelo, que sequer aguentou a pressão de lutar quando seus comparsas entraram em confronto com a polícia. Saiu correndo como um covarde. Foda-se se também carregava sofrimento nas costas. Foda-se o que o levara até ali. Entrou naquela vida por vontade própria. Baleou o agente da lei porque quis. Merece o fim que terá em breve. Mas não ali. Não com testemunhas.

    Se tivesse chegado antes dos moradores, sem dúvidas teria montado a cena perfeita e aquele peso na Terra já não estaria mais respirando. Era simples, bastava terminar o que o Tenente Martins começou e alegar que quando chegou o meliante já estava sem vida. Provavelmente o Tenente seria até condecorado, afinal teria cancelado o CPF do fugitivo de uma violenta perseguição. Nem fariam exame de balística, a cena estaria tão clara que não precisaria. Por segurança, daria mais um tiro para o alto com a arma do colega, para que não encontrassem mais balas no presunto do que faltava em sua arma.

    Infelizmente para ele, os moradores ouviram os tiros e quando saíram para a rua viram os dois corpos no chão, cerca de 20 metros de distância um do outro. — Mas que porra aconteceu aqui? — perguntou um. — Os caras se mataram. — afirmou outro. — Não, porra, eles estão vivos, chama a polícia! — sugeriu um terceiro. Alguns preferiam terminar o serviço que o rapaz começou e matar aquele gambé imundo que provavelmente estava ali para apavorar a vizinhança, já que para eles todo mundo ali era bandido. Estavam sempre dispostos a parar a molecada, dar tapa na orelha e botar pânico, mesmo se não tivessem feito nada. Parecia que sentiam prazer nisso. Tinha que ser feito. Era um a menos pra encher o saco da comunidade. Ali mesmo. Com testemunhas. Foda-se. Ninguém abriria o bico, todos sabiam o que acontecia com cagueta na quebrada. Maldita hora que apareceu aquela mulher gritando: — Para! Para! Eu conheço ele. — Essa vaca salvou a vida do filho da puta. Ela mesma ligou para o SAMU, que chegou bem rápido, mas não antes da polícia, que já estava próxima ao local, devido à ocorrência envolvendo policiais e uma quadrilha de traficantes perto dali.

    Ninguém conhecia o rapaz negro que recebia os primeiros cuidados e era colocado dentro da ambulância, pelo menos foi o que todos disseram, quando inquiridos pelos policiais. Já Daniel Martins foi facilmente identificado pelos ocupantes da primeira viatura que chegou. Mesmo sem a identificação anexada ao uniforme, foi fácil fazer o reconhecimento. Era um policial jovem, com alguns anos de corporação, muito dedicado e obstinado, em pouco tempo galgou patentes e chegou a Tenente. Todos na corporação tinham certeza de que iria muito longe na carreira. O comportamento um tanto violento sempre foi encarado com normalidade e até certa admiração. Não tinha como ser mole fazendo aquele trabalho. Cansou de levar suspeitos detidos em flagrante para a delegacia e vê-los nas ruas semanas depois. Então, optava sempre por dar uma dolorosa lição e garantir que os meliantes não quisessem esbarrá-lo novamente por aí. Às vezes encontrava um ou outro que não estava fazendo nada de errado mas, para ele, tinha aparência suspeita, aí o encostava na parede, dava um tapa na orelha e um soco nas bolas enquanto o revistava e o mandava embora, sempre alertando que estava de olho e se o pegasse fazendo merda o bicho ia pegar. Tinha que falar no linguajar deles, né? Senão não entendiam.

    Após Claudiney Silva Carvalho ser devidamente verificado e socorrido, foi a vez de Daniel Martins Pinto receber os primeiros socorros e ser introduzido na ambulância, liberando para que o experiente motorista deixasse a cena do crime conduzindo os dois rapazes, ainda desacordados, com a sirene pedindo passagem, rumo ao Pronto Socorro.

    CAPÍTULO 2

    A sensação de dirigir uma ambulância é algo indescritível para Raimundo. Basta apertar aquele botãozinho que a mágica acontece. Como é lindo ver todos aqueles carros saindo de sua frente, como o mar vermelho se abrindo para Moisés. Já até pensou em forjar uma espécie de cajado em miniatura para grudar em cima do botão mágico. Seria sensacional, mas as pessoas podiam achar estranho, então era melhor guardar isso na imaginação. Nunca comentou com ninguém, mas em duas ou três ocasiões (várias, na verdade, embora não admitisse nem para si mesmo) ligou a sirene por puro prazer, sem nenhum paciente ocupando a parte traseira da van, só para ver aquele trânsito caótico se abrindo para ele passar.

    No interior do veículo há um painel com vários desses botões, que ligam diferentes tipos de sons e Raimundo os alterna em distintas ocasiões. Naquele dia, por exemplo, com duas vítimas graves como passageiras, foi obrigado a acionar a mais barulhenta, principalmente quando virou a toda velocidade na rua de cima de uma faculdade, dessas que mais parecem comércio, basta pagar direitinho que no fim do curso o papel timbrado te aguarda para entrar no avassalador mercado de trabalho que, sem dúvidas, te devorará antes que se arrependa de ter passado na frente de tal instituição. A lenda urbana diz que basta deixar cair o RG na porta que você já passou no processo seletivo. Ali, uma multidão se aglomerava no meio da rua, parecendo esquecer o mundo, ao som de uma batucada que afrontava o potente som de suas sirenes. Uma freada brusca — pra dar aquele susto — e o dedo no botão de som mais estridente fez o samba parar imediatamente e o grupo dispersar do meio da via. Os olhares assustados daquelas pessoas, em maioria alunos, cabulando a aula do professor de Economia ou de Teoria Política, misturados a moradores da comunidade ali de perto, excitava um pouco Raimundo, que sentia um certo poder em suas mãos e pés. Um poder que não sentia quando estava em sua humilde residência de tijolos à mostra e geladeira vazia. Ali ele era um herói, com duas vidas dependendo de sua destreza para chegarem pulsando ao seu destino.

    O barulho, junto à freada brusca e o balançar do veículo, despertou Daniel. A estranha sensação de estar em um pesadelo então tomou conta de seu pensamento. Aquela luz forte, balões de oxigênio sobre sua cabeça, uma pessoa com uma máscara cirúrgica cobrindo quase todo o rosto (não chegava a ser horripilante como as máscaras da peste negra, mas naquele momento assustou quase tanto quanto) formavam um quadro confuso em sua cabeça. Não lembrava do que tinha acontecido. Sua última lembrança era de sua velha amiga ligando e pedindo que a ajudasse com seu filho. O garoto era apenas mais um dos tantos que não conheceram o pai e aquela mulher tinha um bom lugar em seu coração, era impossível negar um chamado seu.

    Naquele instante, no entanto, não se lembrava de ter ido até a casa dela, não sabia se o menino estava bem, aliás, não sabia sequer se ele mesmo estava bem. Nem imaginava o porquê de estar naquela ambulância, afinal, com aquelas sirenes e todo aquele chacoalhar, só podia se tratar disso. Tentou falar algo e a voz se negou a sair, parecia que faltava ar em seu pulmão. Fechou bem os olhos e piscou repetidas vezes, na esperança de aquilo tudo se tratar de um sonho apenas. Que nada, a dor que veio na tentativa de se levantar deixou bem claro que era real. Muito real. Com uma dor mais forte do que se lembrava já ter sentido, virou vagarosamente a cabeça para a direita e tentou perguntar ao enfermeiro — ou médico, seja lá o que fosse — o que havia acontecido. Apenas um som indefinível saiu de sua boca. Experiente, o socorrista olhou em seus olhos e colocou o dedo indicador frente aos lábios, soprando um quase inaudível shhhhhh, terminando com um: — vai ficar tudo bem! — que já tinha decorado, de tanto que repetira para seus muitos pacientes. Na maioria dos casos, realmente ficava, e o médico socorrista Fábio tinha quase certeza que essa era a situação de Daniel. Não tinha tanta com relação ao outro paciente, ferido em região bem mais comprometedora.

    Por falar no outro paciente, era importantíssimo que o policial não visse que tinha mais um enfermo na ambulância, afinal não se sabia quais os verdadeiros estados de ambos, eram necessários exames mais detalhados para ter certeza. O choque de se lembrar de momento tão traumático podia ser fatal em determinados casos. Fábio tratou de se colocar entre os olhos de Daniel e a outra maca e pedir para que não se mexesse, na intenção de impedi-lo de virar a cabeça. Aos poucos, porém, a consciência foi sendo retomada e as primeiras palavras enfim saíram de sua boca:

    — O que aconteceu?

    — Nada demais — respondeu o médico — vai ficar tudo bem.

    Sem que Fábio pudesse impedir, no entanto, Daniel virou a cabeça e viu a maca ao seu lado. — Quem é? — perguntou.

    — Foi uma noite movimentada. Quando tudo estiver bem esclarecido e o senhor devidamente cuidado, alguém explica melhor. Mas é muito importante que repouse e não faça esforço para se comunicar.

    A experiência do socorrista só não foi maior do que a boca do policial que fazia a segurança das vítimas (da vítima, na verdade. Ele queria mais que o bandido se fodesse).

    — Esquenta não Tenente, logo você vai estar bem e nois resolve essa treta aí.

    A virada de cabeça urgente de Daniel doeu muito, foi como se tivesse levado um novo tiro, embora nem soubesse que já havia sido ferido por um. A dor maior veio segundos depois. No caminho entre o teto branco da ambulância e os olhos castanhos do homem fardado, uma mancha disforme chamou sua atenção. Antes mesmo de identificar quem era o colega que o acompanhava, voltou seu olhar para a figura que rapidamente ganhou nítidos contornos. As linhas antes indefinidas se tornaram claras diante de seus olhos, que não demoraram a entender de quem se tratava.

    — Se o senhor não ficar quieto, serei obrigado a mandar parar essa ambulância e enxotá-lo daqui! — brigou o socorrista.

    O policial se assustou com a exclamação do médico. Quem ele pensa que é pra falar assim com uma autoridade? Sim, às vezes uma farda dá superpoderes ao indivíduo. Pensou em usar sua frase predileta: Pelos poderes de Greiscow, mentira, não era essa, mas aquela carteirada tradicional: com quem você pensa que está falando?, mas achou melhor não lançar mão de seu trunfo naquele momento. Era

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