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O renascimento de Marx
O renascimento de Marx
O renascimento de Marx
E-book808 páginas10 horas

O renascimento de Marx

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Sobre este e-book

O planeta está em profunda crise por causa do capitalismo e Karl Marx está sendo redescoberto em no mundo todo como o pensador que nos forneceu a crítica mais perspicaz.

O renascimento de Marx é o melhor, mais completo e mais moderno guia para compreender as ideias de Marx que apareceu desde a queda do Muro de Berlim. Escrito por especialistas internacionais de renome, de forma didática e acessível a um público mais amplo, reúne as mais vivas e instigantes interpretações contemporâneas da obra do velho barbudo. Apresenta o que ele realmente escreveu sobre 22 conceitos-chave para entender o marxismo, as áreas que precisam ser atualizadas por causa das mudanças ocorridas desde o final do século XIX e as razões pelas quais ainda seu pensamento anticapitalista é tão relevante no mundo de hoje. O resultado é uma coleção – já traduzida em vários idiomas ao redor do mundo – que se mostrará indispensável tanto para especialistas quanto para uma nova geração que se aproxima pela primeira vez da obra de Marx.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de set. de 2023
ISBN9788569536871
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    O renascimento de Marx - Amy E. Wendling

    1. Capitalismo

    Michael R. Krätke

    1.1 Capitalismo e sua história

    Hoje Marx goza de fama mundial como o teórico incomparável do capitalismo e seu crítico mais penetrante. O termo em si, no entanto, raramente aparece em seus escritos. Os socialistas franceses já o usavam nas décadas de 1840 e 1850, mas apenas para denotar certos aspectos do que agora entendemos por capitalismo. Quando Pierre Leroux (1797-1871) falou de capitalismo em seu panfleto contra a economia política Malthus et les économistes, ou y-aura-t-il toujours des pauvres? [Malthus e os economistas, ou sempre haverá pobres?] (1848), ele estava destacando o poder sem precedentes dos capitalistas e, mais especificamente, dos industrialistas, nos tempos modernos.³ Louis Blanc (1811-1882) empregou ocasionalmente o termo em várias edições de seu livro L’Organisation du Travail [A Organização do Trabalho] (1850), referindo-se à apropriação de capital por alguns à exclusão de outros.⁴ E Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), em seu The General Idea of the Revolution in the Nineteenth Century [A Ideia Geral da Revolução no Século XIX] (1851), tinha a mesma ideia em mente quando ressaltou o poder dos capitalistas no mercado imobiliário parisiense.⁵ Na Alemanha, foi Johann Karl Rodbertus (1805-1875), um fervoroso crítico da economia política clássica, que primeiro escreveu sobre capitalismo no sentido de um sistema social.⁶ Albert Schäffle (1831-1903), um professor liberal-conservador da economia política e um dos primeiros "socialistas acadêmicos [Kathedersozialisten]", tornou-se o primeiro a contrapor o capitalismo ao socialismo no título de um livro: Capitalism and Socialism [Capitalismo e Socialismo] (1870). Os socialistas tinham razão, ele admitiu, aludindo a Marx: a economia atual é caracterizada pelo modo de produção capitalista, ou seja, pela hegemonia do capitalismo.⁷ Economistas políticos da era clássica, como Adam Smith e David Ricardo, já tinham uma familiaridade de longa data com os termos capital e capitalista, mas não com capitalismo. O próprio Marx não usou a palavra mais que cinco vezes, de passagem, e apenas em manuscritos que permaneceram inéditos durante sua vida. No Manuscrito Econômico de 1861-63, o capitalismo aparece só uma vez, em um contexto onde poderia significar tanto o impulso sem limites de capitalistas para enriquecer e criar mais capital ou o processo total de acumulação de capital.⁸ Em seu primeiro rascunho de O Capital, volume II, escrito em 1865, ele escreveu sobre o "impulso do capitalismo [Trieb des Kapitalismus]’ e enfatizou que ele se desenvolve completamente apenas na base desse modo [capitalista] de produção.⁹ Está claro o que ele quis dizer com isso: o impulso do capitalismo nada mais é do que a propensão dos capitalistas em acumular capital além de todos os limites, em vez de consumir sua riqueza e usufruir dos espólios de suas atividades empresariais; é um impulso de criar quantidades cada vez maiores de capital, expandir a escala de produção e aumentar a produtividade do trabalho, e potencialmente provocar a superprodução cada vez maior de mercadorias.¹⁰ Em uma nota adicional escrita em 1877, que Engels incorporou à sua edição do volume II de O Capital (1885), Marx voltou a usar o termo capitalismo equivocadamente, referindo-se à produção capitalista ou ao motivo convincente dos capitalistas para o enriquecimento ou acumulação em oposição ao consumo pessoal.¹¹Em 1875, no contexto completamente diferente de seu "Conspecto sobre Estatismo e Anarquia de Bakunin, Marx usou capitalismo no sentido agora familiar, como um termo abreviado para o modo capitalista de produção",¹² que é como ele continuou a caracterizar a economia moderna até sua morte. Em sua carta aos editores do jornal russo Otechestvennye Zapiski (Notas Patrióticas), escrito em 1877, mas publicado por Engels somente após a morte de Marx, ele tentou corrigir a leitura do capítulo sobre acumulação primitiva no volume I de O Capital, que alguns de seus seguidores russos haviam abraçado. Neste capítulo, ele não ofereceu mais que um esboço histórico da gênese do capitalismo na Europa Ocidental, e agora se defendia de um crítico que queria transformar isso em uma teoria histórico-filosófica do desenvolvimento geral.¹³ Em seus rascunhos de uma carta à socialista russa Vera Zasulich, escrita em 1881, ele falou do sistema capitalista (como fez, aliás, na edição francesa e na segunda edição alemã do volume I de O Capital), mas não do capitalismo.¹⁴ É fácil entender por que Marx considerava que o termo capitalismo havia sido corrompido por seu uso em um sentido predominantemente moralizante que cobria apenas aspectos particulares do sistema econômico. O objetivo que ele estabeleceu para si foi o de identificar e explicar os fundamentos, os elementos básicos, e processos centrais do modo capitalista de produção. Não contente em destacar ou condenar alguns dos aspectos mais marcantes da economia industrial moderna, ele queria analisar todo o seu tecido ou estrutura interna, suas leis de movimento e a lógica de seu desenvolvimento. Sua teoria pretendia abranger tanto o todo quanto as partes constituintes do sistema capitalista, permitindo traçar tanto as origens quanto o desenvolvimento a longo prazo da economia e da sociedade (ocidental) moderna.

    No mundo de língua alemã, foi Werner Sombart (1863-1941) que conferiu a dignidade e o peso de um conceito acadêmico ao termo capitalismo¹⁵ em seu livro Modern Capitalism [Capitalismo Moderno] (1902). Ele mesmo considerava esse livro como uma continuação simpática do trabalho de Marx, e causou bastante sensação no mundo acadêmico, além de ajudar decisivamente a estabelecer o termo na linguagem cotidiana. Embora o capitalismo tenha entrado nos dicionários franceses e alemães já nas décadas de 1860 e 1870, no mundo de língua inglesa ele foi apresentado ao público em geral de modo um tanto hesitante na década de 1880.¹⁶

    1.2 Capitalismo: O que há numa palavra?

    Na década de 1840, quando Marx estava começando a se familiarizar com a economia política, ele descrevia seu objeto de estudo como o modo burguês de produção, relações de produção burguesas, ou o modo de produção da burguesia. Nos Grundrisse, ele o chamou de modo de produção fundado no capital, o modo de produção dominado pelo capital, ou o modo de produção do capital. De 1861 em diante, ele usou os termos modo de produção capitalista, relações capitalistas de produção, ou mesmo produção capitalista como uma abreviação. Em O Capital, volume I, ele também se referia ao modo capitalista de produção. Já na frase de abertura do primeiro capítulo, ele deixou claro que seu objeto de estudo não era apenas a economia capitalista, mas a estrutura mais ampla das sociedades onde reina o modo de produção capitalista.¹⁷Assim, pode-se descobrir, e se descobrirá, que a análise econômica que Marx faz do capitalismo moderno lidava com muito mais do que apenas relações de produção ou relações de troca. Ele se concentrou e investigou as várias formas de práxis (ou ação e interação) – as várias formas de trabalho, as formas de troca, as formas de organização, as formas da competição – bem como as várias formas de pensamento que determinam as categorias básicas compartilhadas por ambos os agentes práticos e observadores científicos (os economistas políticos) vivendo no capitalismo. Sua teoria do capitalismo, conforme descrita em O Capital e outros escritos, tem um escopo mais amplo do que qualquer outra teoria econômica: trata de muito mais do que apenas o modo de produção ou as relações de produção no capitalismo, e com mais do que o sistema econômico completo. A estrutura mais ampla da sociedade burguesa moderna, as relações sociais entre seus membros no nível da empresa individual, família ou mercado, suas relações de dominação e autoridade, seus conflitos e lutas, suas relações de cooperação e competição: tudo isso pertence à teoria geral do capitalismo que Marx imaginou. Na verdade, sua teoria crítica do capitalismo foi inspirada e informada pelo programa de pesquisa que ele havia delineado junto com Engels em A Ideologia Alemã. De acordo com o que eles chamavam de concepção materialista da história, a economia capitalista inevitavelmente moldaria e permearia a sociedade moderna e criaria um regime capitalista que a tudo abrangeria.

    Para os economistas clássicos, as grandes classes da sociedade moderna (capitalistas, proprietários de terras, trabalhadores) eram um dado estabelecido, assim como eram os mercados, o dinheiro, as manufaturas, ou os bancos. Para Marx, no entanto, a estrutura de classes da sociedade moderna era diferente de todas as estruturas anteriores de desigualdade social; suas características bastante específicas tinham que ser estudadas com cuidado, não tidas como algo garantido. Somente no último capítulo (inacabado) do volume III de O Capital, encontramos um fragmento no qual ele explicitamente faz a pergunta: O que constitui uma classe?¹⁸ A resposta a esta pergunta, que não foi dada por Marx, seria altamente complexa. Pois ele considerava as classes da sociedade moderna como classes baseadas no modo capitalista de produção.¹⁹ Antes, era necessário compreender todas as características essenciais desse modo de produção, só então se poderia responder à pergunta e explicar as relações e interações (incluindo o padrão de lutas de classes) entre essas características. A partir da década de 1840, Marx chamou sua teoria do modo capitalista de produção uma crítica da economia política. Dispersos ao longo de seus escritos econômicos, desde os primeiros manuscritos do início da década de 1840 até os últimos rascunhos escritos no início da década de 1880, ele elaborou a primeira e mais relevante crítica dos economistas políticos clássicos. Com algumas exceções destacadas e elogiadas por Marx, eles careciam de um senso de história e eram propensos a ver o modo de produção capitalista como a ordem natural dos negócios econômicos, ou a ordem econômica mais adequada à natureza humana. Em contraste agudo a essa visão, Marx considerava o capitalismo como uma ordem econômica historicamente específica, um sistema econômico que teve um começo e chegaria ao fim algum dia. Qualquer teoria verdadeira do capitalismo tinha que revelar e demonstrar suas especificidades históricas como uma ordem econômica e social, qualquer crítico do capitalismo tinha que se concentrar no que era específico da época capitalista e somente dessa época.

    Assim, Marx absteve-se de lidar com produção ou trabalho ou câmbio em geral e zombou dos economistas – particularmente os economistas alemães – que se entregavam a tais exercícios. Discorrer sobre as poucas características que todas as fases de produção têm em comum não poderia fornecer nada além de generalidades vazias e o tipo de momentos abstratos com os quais nenhum estágio histórico efetivo da produção pode ser compreendido.²⁰ Essa maneira de proceder só poderia confundir, e em algum momento até mesmo apagar, as especificidades históricas do capitalismo moderno. No entanto, para fazer essas características específicas se destacarem com clareza, era necessário superar uma dificuldade óbvia: as categorias básicas pertencentes ao modo capitalista de produção – mercadoria, troca, dinheiro, mercados, comércio, até mesmo capital, e trabalho assalariado, bem como propriedade fundiária, imóveis, crédito e sistema bancário – haviam sido utilizadas (e as respectivas relações econômicas haviam existido de uma forma ou de outra) muito antes da era do capitalismo moderno. Na verdade, eles existiram em várias combinações, embora não nas mesmas formas ou nas mesmas combinações que ocorreram na era moderna. A tarefa de teorizar o capitalismo moderno era, portanto, desnudar o que havia de distintivo sobre essas relações, e as categorias correspondentes, na ordem econômica e social capitalista.Marx tratou brevemente da mercadoria como tal, do dinheiro como tal ou, em geral, para citar dois dos exemplos mais famosos de O Capital. Ele também apresentou algumas reflexões sobre o processo de trabalho humano em geral. Mas o verdadeiro impulso de sua exposição e argumento foi sempre o de que as categorias econômicas trazem consigo as marcas da história.²¹ Levando isso em conta, ele procurou identificar e mapear as características específicas, até mesmo únicas, que mercadorias, dinheiro, troca de mercado, salário de trabalho, produção, consumo, crescimento econômico etc., assumiam no capitalismo moderno. Não poderia haver teoria do capitalismo sem algumas leis causais ou funcionais. Mas, para Marx, todas essas leis ou tendências só podiam ser gerais no sentido de que eram válidas para todos os tipos de capitalismo dentro da economia capitalista mundial, ao longo de sua história pregressa e também enquanto perdurasse a época capitalista. As leis gerais da ordem econômica capitalista permaneceram como leis históricas, em contraste com leis da natureza supra-históricas ou a-históricas, ou a ordem natural ou estado de natureza da vida econômica que muitos economistas clássicos e neoclássicos tinham em mente.

    1.3 As características básicas do capitalismo moderno

    Em O Capital, Marx fez breves resumos do que, em sua opinião, eram as características cruciais do capitalismo como sistema econômico. No fim do volume III de O Capital, na última seção que trata de Os Rendimentos e suas Fontes, ele descreveu brevemente alguns dos principais elementos que diferenciavam o capitalismo de todos os outros modos de produção históricos. A primeira característica que ele enfatizou foi que toda produção era produção de mercadorias, todos os produtos eram produzidos como mercadorias e assumiam a forma de mercadoria. A produção de mercadorias como tal era muito mais antiga e mais difundida que o capitalismo. O que distinguia o capitalismo, no entanto, era que ser mercadoria constitui o caráter dominante e determinante de seu produto.²² No modo capitalista de produção, todo produto é transformado em mercadoria, todo tipo de produção é transformado em produção de mercadorias, uma vez que os meios e condições de produção, de qualquer produção, foram transformados em mercadorias. O papel crucial aqui é reservado para a força de trabalho humana. Uma vez transformado em mercadoria, todo produto do trabalho humano torna-se uma mercadoria em potencial. No capitalismo, a produção de mercadorias torna-se universal, a forma geral da produção.²³ Deve-se notar que, neste resumo, Marx explicitamente fez a distinção-chave entre a produção de mercadorias e mercadorias como produto do capital. Ambas parecem coexistir no modo capitalista de produção, e ambas são essenciais para apreender o caráter específico do capitalismo como modo de produção. No último capítulo do primeiro rascunho do volume I de O Capital, ele explicou melhor as características específicas da mercadoria como produto do capital. Tais mercadorias são diferentes: (1) elas são produtos de massa, não produtos únicos, e são claramente produtos de trabalho social organizado em grande escala; (2) eles são produzidos para um mercado de massa, não para clientes individuais; e (3) representam o valor de capital usado em sua produção mais a mais-valia criada no mesmo processo. Para seus produtores e seus proprietários, essas mercadorias só são importantes na medida em que carregam uma certa quantidade de valor e de mais-valor a serem realizados no mercado.²⁴ Logo, a fórmula mais precisa para o capitalismo moderno não seria produção de mercadorias por meio de mercadorias, mas sim produção de mercadorias como produto do capital por meio de mercadorias como produto do capital. Mercadorias e mercadorias como produto do capital entram no mercado e têm de passar pelo processo de circulação. Como disse Marx, existem vários processos definidos que os produtos precisam percorrer e no qual adquirem certos caracteres sociais,²⁵ transformando-os em mercadorias como produto do capital.A segunda característica que marca o modo de produção capitalista é o domínio do capital – a ser distinguido do domínio dos capitalistas. No capitalismo, e somente no capitalismo, toda produção de mercadorias é apenas um meio para um fim dominante e abrangente, a produção de mais-valor. Esta é a finalidade direta e motivo determinante da produção.²⁶ Como Marx enfatizou, capital – ou a relação capital/trabalho assalariado – é a relação de produção dominante no capitalismo. Toda produção capitalista é produção de valor e, em particular, de mais-valor. Uma vez produzida e realizada, o mais-valor permite e obriga a formação de novo capital, de modo que, no final, o capital produz capital, e cada vez mais capital. Na segunda parte de seu resumo, portanto, Marx recapitulou brevemente seu conceito de capital como uma relação de produção historicamente específica. Capital, como ele enfatizou em sua magnum opus, não é uma coisa, mas uma relação social entre pessoas, intermediada por coisas.²⁷ A única relação entre pessoas que Marx invocou em seu resumo foi a relação entre capital e trabalho assalariado, ou entre capitalistas como portadores e proprietários de capital e trabalhadores assalariados como portadores de trabalho assalariado e proprietários de sua única mercadoria, sua força de trabalho. O capital, para se tornar e permanecer capital, deve ser valorizado, seu valor tem de ser aumentado, sua quantidade tem de crescer. Assim, o capital deve ser entendido não como uma coisa, mas como um processo contínuo no tempo e no espaço, o processo de produção e apropriação do mais-valor, da realização de mais-valor, e da acumulação de capital ou da transformação de mais-valor em novo capital (reprodução expandida do capital em uma escala social). A reprodução de trabalhadores assalariados como trabalhadores assalariados é uma parte necessária dessa produção geral.²⁸ O resumo de Marx é realmente muito curto. Se nos contentássemos com isso, seu conceito de capitalismo se resumiria a apenas dois componentes: produção de mercadoria e a relação capital/trabalho assalariado. Mas naturalmente há muito mais, e o resumo de Marx na verdade nos direciona para uma série de pontos-chave para uma compreensão adequada de sua teoria do capitalismo moderno.

    1.4 Valor, dinheiro, concorrência

    Se o capitalismo tende a se tornar a forma absoluta²⁹ de produção de mercadorias, como Marx nos disse, segue-se que o capitalismo se tornará um modo de produção completamente baseado no valor.³⁰ É somente no capitalismo que as relações de produção e troca (ou relações de mercado), em princípio todas as relações econômicas, tornam-se completamente impregnadas e dominadas pela relação específica entre pessoas economicamente ativas que Marx denominou como a relação de valor. Valor era um conceito básico para Marx. Sem ele, nem a troca de mercadorias e o dinheiro nem o capital eram concebíveis. Não se pode apreender o conceito de mais-valor sem ele. O que é mais impressionante na teoria de Marx, no entanto, é o elo entre valor e capitalismo. Como Marx argumentou ao longo dos três volumes de O Capital, as formas de valor podem existir simplesmente através da troca de mercadorias no mercado. Mas a verdadeira substância do valor – o trabalho social como uma abstração socialmente válida (ou trabalho abstrato) – só entra em plena existência e só adquire relevância econômica prática graças ao desenvolvimento do modo e métodos de produção distintamente capitalistas – isto é, em um regime de produção industrial em massa. Além disso, somente se muitos capitais estiverem sempre e em toda parte competindo livremente uns com os outros e puderem circular livremente entre as indústrias, é possível que o valor de cada mercadoria seja determinado, como Marx supôs, pela quantidade média de trabalho social necessário para reproduzi-la sob as condições tecnológicas que prevalecem em média em cada indústria. Em contraste com muitos dos economistas clássicos, Marx não afirmou que as relações de valor reinaram supremas nos tempos pré-capitalistas e perderam sua importância nas condições do capitalismo moderno. A seu ver, só quando o modo capitalista conquistou todas as esferas de produção que a lei do valor tornou-se plenamente válida para todas as transações de mercado envolvendo mercadorias e mercadorias como produtos do capital.

    É verdade que as famosas formas de valor – da simples forma de valor à forma do dinheiro analisada por Marx no primeiro capítulo do volume I de O Capital – surgiram e já estavam até totalmente desenvolvidas muito antes do surgimento do capitalismo moderno. No entanto, é no capitalismo moderno que elas, pela primeira vez, avançam sobre os pensamentos e as ações de todos e assumem a qualidade fixa das formas naturais de vida social, ou, como categorias, adquirem a qualidade de formas de pensamento socialmente válidas e, portanto, dotadas de objetividade.³¹ Somente no capitalismo moderno o duplo caráter do trabalho humano produtor de mercadorias se torna dominante: por um lado, útil, um trabalho útil e concreto que produz coisas ou valores de uso úteis; por outro, um trabalho social abstrato, baseado na igualdade social de todos os produtores do mercado e produtivos de coisas para troca ou valores. Uma vez que o valor e a qualidade geradora de valor do trabalho social tenham sido firmemente estabelecidos, a divisão social do trabalho na forma histórica de uma divisão do trabalho entre produtores privados que criam mercadorias para um mercado pode ser estendida e intensificada para além de todos os limites tradicionais. Por ora, a lei reguladora do valor traz coerência social entre produtores independentes – não obstante todos os acidentes e flutuações irregulares de trocas do mercado.Quando e onde o valor prevalece, o mesmo acontece com o dinheiro. É somente no capitalismo, entretanto, que o dinheiro como relação social prevalece. O capitalismo é a primeira ordem econômica histórica – e a primeira ordem societária – na qual todas as bolsas de mercadorias se transformam em um processo completo de circulação de mercadorias que acaba sendo dominada pela circulação de dinheiro.³² As interações econômicas tornam-se totalmente monetizadas, sempre mediadas por transações monetárias. A vida cotidiana, muito além do reino das ações do mercado, é permeada pelo dinheiro como meio e motivo de ação econômica. Nas sociedades capitalistas, todos se tornam proprietários de dinheiro e usuários de dinheiro, o dinheiro prova ser o nervo de todas as relações sociais. Por outro lado, o capitalismo retoma o sistema monetário que encontrou como um dado de realidade em seus estágios iniciais e conduz seu desenvolvimento histórico para se tornar algo diferente. Primeiro, gera um sistema monetário completo, no qual o dinheiro tende a ser finalmente substituído por crédito, de modo que o primeiro sistema de crédito completo na história passa a existir e o capitalismo se transforma em uma economia de crédito em todos os aspectos. Em segundo lugar, a circulação do dinheiro torna-se dominada pelos movimentos de capital. A circulação – ou, mais especificamente, os ciclos e giros – do capital determinam a circulação de dinheiro em uma economia capitalista, e o dinheiro circulante torna-se, cada vez mais, apenas mais uma forma de capital, o capital monetário. O volume II de O Capital é amplamente dedicado à análise dessa grande mudança e suas implicações.O capitalismo é a primeira ordem econômica dominada pelo dinheiro em todos os aspectos, e é com o dinheiro que o movimento do capital começa e termina. Em sua forma mais elementar e superficial, o capital pode ser considerado apenas um processo no tempo que leva de uma quantia de dinheiro a um aumento da quantidade de dinheiro (D – D’), qualquer que seja a fonte ou razão desse aumento. Em termos de mercado, como Marx afirma no volume de O Capital, o processo aparece como uma série de trocas, de dinheiro contra mercadorias e de mercadorias contra dinheiro, mais dinheiro: D–M–D’. Já em sua forma elementar, esse processo mostra duas características que se destacam no capital: (1) sua metamorfose contínua à medida que se move de uma forma de valor, a mercadoria, para outro, dinheiro, e no sentido oposto; e (2) uma alteração no valor envolvido. Mesmo antes do capitalismo, os capitalistas buscavam se enriquecer e aumentar o valor de seu capital.

    É apenas no capitalismo moderno, entretanto, que esse enriquecimento se transforma em um empreendimento sistemático e, em princípio, sem fim. Cada capitalista individualmente pode falir, os capitais individuais podem perder e perdem seu valor ou desaparecem por completo. Mas o capital como relação social, o capital em geral, sobreviverá enquanto o processo de aumento de valor – e, portanto, o enriquecimento dos capitalistas – continuar. Uma vez que o dinheiro tiver se desenvolvido completamente e existir de modo independente de trocas particulares relacionadas a mercadorias particulares, uma vez que o dinheiro tiver adquirido o caráter de dinheiro como dinheiro, como Marx afirmou,³³ a busca pela riqueza muda. Aqueles que estão ansiosos para enriquecer agora são capazes de adquirir riqueza social abstrata (valor) em uma forma abstrata e durável (dinheiro). Não há limite para esta acumulação de riqueza abstrata. Assim, a busca da riqueza, a aquisição de quantias cada vez maiores de riqueza abstrata na forma de dinheiro, torna-se um fim em si mesma e se transforma em um processo sem fim, sem medida ou objetivo intrínseco. Os capitalistas ganham uma nova lógica e um motivo abrangente para todas as suas ações econômicas – a valorização do capital, a transformação de uma determinada quantidade de riqueza, em forma monetária, em um movimento sem fim envolvendo o aprimoramento e o crescimento da riqueza ou valor abstratos. O que torna os capitalistas modernos diferentes de qualquer outra pessoa que tenta acumular uma fortuna ou enriquecer? Eles tentam, com sucesso, entrar no processo de criação de valor propriamente dito, ou seja, assumir o controle da produção de mercadorias e assumir o comando sobre o trabalho social de outras pessoas para produzir mais valor. Assim, sob o controle e comando dos donos do capital, o processo de produção de mercadorias e a criação de valor é transformada em um processo de produção especificamente capitalista. Nesse tipo de produção, o objetivo é o aprimoramento sem fim do capital original, produzindo valor e cada vez mais valor para transformar capital em mais e maior capital. Segue-se que os capitalistas que se voltam para a produção de mercadorias a fim de valorizar o seu capital prosseguirão com a produção infinita de massas cada vez maiores de mercadorias e quantidades de valor, controlando processos de produção e comandando quantidades cada vez maiores de trabalho social.

    1.5 Exploração e acumulação

    Como a produção de mercadorias pode se transformar em um processo de valorização que aumenta continuamente o valor do capital? Marx encontrou a chave para uma resposta no conceito de mais-valor e no processo de exploração dos trabalhadores assalariados. Supondo que os trabalhadores assalariados sejam contratados por capitalistas que lhes pagam o salário corrente e não os enganam, eles são capazes – pelo menos acima de um certo nível de produtividade – de produzir um valor maior que o de seus salários durante o período de tempo pelo qual cedem o controle de sua força de trabalho a um capitalista. Novamente, supondo que todos os trabalhadores assalariados produzem mercadorias pelo seu valor social e que seus salários são iguais ao valor de sua força de trabalho, uma parte considerável do produto de valor de seu trabalho diário ou semanal acaba por ser mais-valor. Para se apropriar desse mais-valor (e para valorizar seu capital) todo capitalista deve organizar o processo da produção de mercadorias em seu campo ou ramo específico tão efetivamente e da forma mais eficiente possível. Todo capitalista tem de colocar os trabalhadores assalariados que contrata para trabalhar, de forma tão eficaz e eficiente quanto possível. Para fazê-los produzir mais-valor numa quantidade cada vez maior, ele tem de mudar todo o processo de trabalho. Primeiro, deve fazer os trabalhadores assalariados trabalharem mais horas e/ou realizarem mais trabalho – ou trabalho de maior intensidade ou complexidade – no mesmo período de tempo. Segundo, ele deve aumentar a produtividade de seu trabalho, para que produzam maiores quantidades de mercadorias no mesmo período de tempo. Da mesma forma, a análise que Marx faz do processo de produção sob o regime do capital era concentrada nos métodos pelos quais os capitalistas tentam aumentar a produção de mais-valor de seus empregados. Inventando e aplicando esses métodos de produção de mais-valor absoluta e relativa de maneiras cada vez mais astutas e sistemáticas, os capitalistas mudam o mundo da produção de mercadorias. O capital torna-se capital industrial, enquanto trabalhadores assalariados tornam-se uma classe trabalhadora moderna de trabalhadores de indústria ou fábrica.

    À medida que seguem seu impulso de aumentar a produção de mais-valor e explorar seus trabalhadores assalariados de forma mais eficiente, os capitalistas trazem um novo modo de produção industrial: o mundo das manufaturas e das indústrias de grande escala ou o sistema fabril. Eles desenvolvem tudo ao extremo: a especialização de trabalhadores e ferramentas, a divisão do trabalho dentro das manufaturas e fábricas, o uso de máquinas, a especialização de máquinas, a subordinação dos trabalhadores a sistemas completos de maquinários, o desenvolvimento de fábricas em complexos industriais e distritos industriais inteiros. Os capitalistas prolongam sistematicamente a jornada de trabalho, intensificam o trabalho para além de todos os limites e aumentam a produtividade do trabalho por todos os meios possíveis. Eles tornam-se inventivos e inovadores, fazem uso dos insights de ciência e tecnologia, começam a integrar tecnologia e ciência ao sistema industrial, organizam e reorganizam os processos de produção em um frenesi sem fim. A produção industrial em massa no sistema fabril estava no centro da compreensão de Marx do capitalismo como um modo de produção. Ele ficou fascinado com o impacto revolucionário da indústria de grande escala moderna em todos os artesanatos, manufaturas, e indústrias domésticas tradicionais, e previu as tendências para a automação e a mecanização da agricultura.

    Na visão de Marx, o capitalismo industrial devia sua dinâmica sem precedentes a duas forças motrizes. A primeira foi a luta constante entre os empregadores capitalistas que procuravam explorar os seus trabalhadores da forma mais eficiente possível e os trabalhadores assalariados resistindo por todos os meios possíveis a esse esforço de maximizar a exploração de sua força de trabalho – uma luta em parte travada por intermédio de novas invenções, a aplicação de novas máquinas, reorganizações do processo de trabalho e a substituição das habilidades e da experiência dos trabalhadores por todos os tipos de dispositivos mecânicos ou automáticos. A segunda foi a luta que os capitalistas travaram uns com os outros, em um processo cada vez mais furioso de concorrência nos mercados e fora dos mercados. Marx não se juntou ao coro de críticos contemporâneos da concorrência, nem tampouco seguiu aqueles que exaltavam suas virtudes. Como o capital só poderia existir como tantos capitais de posse de muitos capitalistas (embora o capital em geral e a classe capitalista tivessem uma realidade própria), a concorrência entre eles era inevitável.

    Para o avanço das mudanças tecnológicas e organizacionais no sistema industrial, a concorrência interminável entre capitalistas era crucial. Quem explorasse melhor seus trabalhadores, quem fosse mais inovador e mais capaz de introduzir e aplicar tecnologias avançadas, quem fosse mais rápido e inteligente na reorganização de usinas e fábricas inteiras, emergiria como o vencedor. Quem executasse melhor no mercado e fosse capaz de transferir grandes quantidades de capital mais rapidamente entre ramos da indústria, venceria.

    Graças ao conflito entre capitalistas e trabalhadores assalariados e à concorrência entre capitalistas, o capitalismo industrial moderno tornou-se o modo de produção mais dinâmico, volátil, inovador e progressivo da história, mas também o mais perturbador e, em muitos aspectos, o mais destrutivo. A dinâmica do capitalismo poderia se desdobrar uma vez que tivesse permeado a produção social em toda a sua largura, comprimento e profundidade, transformando-a em produção em massa e conquistando, bem como transformando, os mercados. Este é um dos principais insights da teoria do capitalismo de Marx: ela define sua avassaladora dinâmica intrínseca, seu caráter revolucionário impulsionando a economia e a mudança social em uma escala e velocidade sem precedentes. É fácil ver de onde vem todo o impacto da dinâmica do capital industrial a partir de. O resultado do processo de valorização é um quantum de mais-valor que é apropriado pelos capitalistas engajados na produção industrial. Eles usam sua riqueza aumentada de maneiras diferentes. Na visão de Marx, a escolha para os capitalistas era óbvia: eles poderiam gastar a riqueza adicional e parar de agir como capitalistas ou poderiam agir como capitalistas e transformar o mais-valor que ganharam em capital adicional.

    Transformar mais-valor em capital recém-acumulado é o resultado lógico do processo de valorização. Assim, a busca da riqueza abstrata no capitalismo se transforma em um processo ilimitado e interminável de acumulação de capital, na medida em que o capital produz cada vez mais capital. Acumulação inclui a reprodução dos componentes materiais do capital industrial, do dinheiro investido, mas também do capital como relação social. Os capitalistas saem do processo como agentes mais ricos e mais poderosos, possuindo mais ou maior capital, enquanto os trabalhadores assalariados saem pobres e sem propriedade como antes, dependentes da classe dos capitalistas para empregos e rendas e ainda mais sob o domínio de capitais cada vez maiores. Para os capitalistas, a acumulação de capital não tem fim ou medida intrínsecos. Nenhum capital jamais poderá ser grande o bastante. Há apenas uma medida externa para a quantidade de capital que um capitalista pode deter, e é o tamanho do capital possuído por seus concorrentes. Como todo capitalista acumula para acompanhar a taxa de acumulação de seus concorrentes, a acumulação continuará em ritmo acelerado. Este processo acelerado de acumulação onde todos os capitalistas reorganizam os processos de produção que eles controlam e disputam uma corrida uns contra os outros, introduzindo novas tecnologias e substituindo máquinas em suas fábricas a uma velocidade cada vez maior, forma a culminação (planejada) da análise de Marx do processo de acumulação no volume I de O Capital.³⁴ Nesse processo, o capital é não apenas reproduzido em escala cada vez maior, mas também sofre constantes mudanças que são mensuráveis em termos de tecnologia e valor. Duas outras mudanças históricas fluem da dinâmica intrínseca do capitalismo moderno. Os capitalistas, em sua busca por riquezas cada vez mais abstratas, são levados a ultrapassar todos os limites, a desconsiderar e dissolver todas as fronteiras tradicionais, para romper e destruir tudo o que possa se colocar na sua frente. Quanto maior o ganho prospectivo – a taxa potencial de lucro – mais impiedosamente os capitalistas estão preparados para derrubar todas as barreiras à movimentação de capital. Capital e capitalistas espalhados em todas as direções, mercados em expansão e o alcance e escopo de produção, entrando em novos campos de produção e se apropriando de recursos naturais, terra e força de trabalho onde quer que os encontrem. O que Marx chamou nos Grundrisse de tendência propagandística inerente ao capitalismo se materializa na expansão do modo de produção capitalista de uma região ou território para outro, na construção de um mercado mundial. A tendência de criar o mercado mundial está imediatamente dada no próprio conceito do capital.³⁵ O capital se esforça para produzir, no maior nível, para o mundo inteiro, e explorar todos os recursos do mundo. Os capitalistas concorrentes de muitos países expandem o alcance do mercado e o alcance da produção para além de todas as fronteiras regionais e nacionais. Eles, assim, transformam o capitalismo em um sistema mundial – não apenas de comércio e troca, mas, em última análise, de produção e reprodução – que eventualmente abrangerá todo o globo e transformará todas as pessoas e todos os países em partes de uma mesma ordem. O impulso permanente para expandir mercados existentes e abrir outros novos e maiores, bem como fazer pressão para a criação de novos ramos e áreas industriais, dá um reforço atrás do outro ao impulso intrínseco de aumentar a produtividade do trabalho e a exploração da força de trabalho humana. O capitalismo exibe formas historicamente específicas de movimento e segue trajetórias historicamente específicas de desenvolvimento. Muitas dessas formas de movimento foram descritas e investigadas pela primeira vez por Marx. Os exemplos mais impressionantes podem ser encontrados no volume II de O Capital, onde Marx analisou as diferentes formas do ciclo do capital e a forma e o mecanismo de sua rotação periódica.³⁶ Essas formas específicas de movimento pertencem a cada capital industrial individual. Para o capital social como um todo – o capital de um país inteiro, por exemplo – ele encontrou outra forma historicamente específica, o ciclo econômico moderno, ou ciclo de negócios, que ele apelidou de ciclo industrial. Esse fenômeno, amplamente estudado por Marx do fim da década de 1840 em diante, destaca-se como a única característica abrangente do capitalismo industrial moderno. É o sistema fabril e sua tremenda capacidade de expandir a escala de produção em curto prazo, juntamente com a dependência cada vez maior do mercado mundial, que dão origem a esta forma específica de movimento. No volume I de O Capital, Marx argumentou que a vida da indústria se converte numa sequência de períodos de vitalidade mediana, prosperidade, superprodução, crise e estagnação.³⁷ Esse ciclo de rápidas expansões, excessos e contrações da produção industrial e dos mercados se repete interminavelmente. Esse caminho característico da indústria moderna, que toma a forma de um ciclo decenal (interrompido por oscilações menores)³⁸ depende de muitas pré-condições. Estas são a formação e a constante reforma de um exército industrial de reserva – uma população excedente de trabalhadores desempregados ou subempregados – ou o desenvolvimento de um sistema de crédito que permite que os capitalistas individuais façam uso de porções do capital social total, independentemente da taxa e da quantidade de acumulação que são capazes de realizar por conta própria. A forma característica do ciclo industrial, como Marx o viu, está, portanto, intimamente ligado aos ciclos de emprego e desemprego, bem como aos ciclos de crédito e investimento. Capitalismo, de acordo com Marx, é o primeiro modo de produção histórico a se mover nesse peculiar padrão cíclico de crescimento. O capitalismo como um todo se move em tais ciclos periódicos porque gera crises não apenas parciais, mas também gerais, de superprodução de mercadorias e superacumulação de capitais. Crises gerais – um fenômeno contestado em tempo de Marx assim como no nosso – são o momento decisivo e determinante do ciclo industrial. Como o capitalismo se move de crise para outra, como essas crises ocorrem em escala cada vez maior e se transformam em crises do mercado mundial, o ciclo industrial deve ser tratado como um ciclo de crises. Por último, mas não menos importante, no volume III de O Capital, Marx viu o capitalismo como um "mundo encantado e distorcido [verzauberte und verkehrte Welt]³⁹ que os atores econômicos perceberam através das lentes de formas econômicas muito peculiares. Eles eram atormentados por um tipo estranho de fetichismo ou por uma variedade de formas de pensamento insanas, absurdas ou ilusórias. Essas formas mundanas de pensamento econômico reapareceram nas categorias de economia política, e os economistas políticos, bem como os capitalistas reais e os trabalhadores, viviam sob o feitiço das mistificações. Desde o início, com sua famosa análise do fetichismo do mundo das mercadorias, Marx tentou decifrar os personagens misteriosos inerentes às formas de interação econômica no capitalismo. Um exemplo famoso – que, para seu grande aborrecimento, foi amplamente negligenciado por seus seguidores – foi o fato de que a forma do salário deu ao valor da força de trabalho da mercadoria a aparência de algo bem diferente, o valor do trabalho ou o preço do trabalho. Nesta forma e na linguagem econômica e pensamento compartilhado por capitalistas e trabalhadores, o próprio fato da exploração torna-se nebuloso e chega a desaparecer da consciência das partes envolvidas nele. As formas misteriosas, da forma mercadoria, ou forma valor, à forma dinheiro e muitas outras, constituem todo um mundo de mistificações". Marx não se contentou com a análise do fetichismo da mercadoria no primeiro capítulo do volume I de O Capital, mas continuou a empreitada ao longo de todos os três volumes. Em particular, ele se esforçou muito para mostrar como e por que o capital, a relação de produção dominante do capitalismo moderno, se transformou em uma ‘coisa’ ou ser muito misterioso, que os economistas políticos bem como agentes econômicos práticos acharam muito difícil de entender. Já na análise inicial do capital tal como aparece na circulação de mercadorias e dinheiro, ele o decifrou como o fetiche do capital ou o valor de criação de valor⁴⁰ mesmo como um sujeito automático.⁴¹ E, no final do volume III, Marx trouxe suas análises das formas misteriosas e aparências em conjunto e procurou apresentá-las como elementos de um tipo particular de religião da vida cotidiana, pertencente ao capitalismo moderno. Na chamada fórmula trinitária, que condensa a produção e relações de distribuição do capitalismo moderno na interação de lucro do capital, aluguel da terra e salários do trabalho, ele capturou o próprio cerne dessa religião ou ideologia da vida cotidiana, que só existe no capitalismo moderno – "o mundo encantado, distorcido e de ponta-cabeça, em que monsieur Le Capital e madame La Terre vagueiam suas fantasmagorias como caracteres sociais e, ao mesmo tempo, como meras coisas.⁴² Essas falsas aparências, a reificação recorrente das relações e personificação" das coisas, o mundo das mistificações, pertencem à própria essência do capitalismo moderno, na visão de Marx.

    1.6 A emergência e o desenvolvimento históricos do capitalismo

    A teoria do capitalismo de Marx pretendia ser uma teoria geral, mas ele não a concebeu como uma teoria do capitalismo puro, além e independentemente de tempo e espaço. Embora Marx já distinguisse entre a pré-história e a história contemporânea do capitalismo nos Grundrisse, e, embora tenha decidido concentrar-se neste último, possamos encontrar um grande número de elementos históricos em O Capital de Marx, e eles de forma alguma sejam meras digressões ou ilustrações. Devido à sua dinâmica intrínseca, a economia e a sociedade capitalistas devem ser consideradas não como um cristal inalterável, mas um organismo capaz de transformação e em constante processo de mudança.⁴³ O capitalismo passou por um rápido desenvolvimento, às vezes transformações reais. Sua história contemporânea não pode ser considerada um processo de reprodução infinitamente repetido e uma reprodução expandida das mesmas estruturas básicas. É por isso que várias leis gerais que Marx postulou para a época capitalista não são apenas leis de movimento, mas leis de desenvolvimento e mudança. O capitalismo, insistia Marx, não era um estado da natureza, nem poderia ser entendido como um sistema autopoiético que cria suas próprias pré-condições e componentes necessários. Dinheiro, mercados, divisão do trabalho, até mesmo o comércio mundial, o trabalho assalariado e a propriedade da terra eram todos pré-requisitos do capitalismo que existiam muito antes dele. A teoria geral, devidamente construída, deveria, portanto, fornecer pistas, mesmo as primeiras equações, para uma investigação da história do capitalismo. E reflexões históricas eram necessárias agora e depois para apreender as peculiaridades do capitalismo moderno.

    O volume I de O Capital, nos capítulos sobre a chamada acumulação primitiva, o esboço histórico de Marx sobre o surgimento do capitalismo na Europa Ocidental, não tinha a forma de uma narrativa, mas seguia, e exemplificava, a lógica básica exposta em sua teoria geral. O capitalismo pressupunha como uma de suas instituições centrais a relação capital/trabalho assalariado. Para isso ser estabelecido, os produtores ou trabalhadores tinham que ser separados de todos os meios de produção e subsistência que lhes permitiam sobreviver como produtores independentes, e os meios de produção e subsistência tinham que ser apropriados e monopolizados nas mãos de uma classe de donos de capital e uma classe de proprietários de terras. Usando os exemplos principalmente da Inglaterra e Escócia, Marx queria mostrar como isso aconteceu na realidade, ao invés de nas lendas tão caras aos economistas clássicos e na apologética do capitalismo moderno; era uma história de violência, pilhagem e crime, baseada na violação da lei e na extirpação de velhas leis, tradições e costumes.⁴⁴ Encontramos em O Capital muito mais ideias sobre as origens e desenvolvimento do capitalismo na Europa Ocidental.⁴⁵ As seções sobre capital comercial, sobre mercados financeiros e de capital com juros, e em propriedade fundiária e renda fundiária⁴⁶ proporcionam esboços históricos mais longos e mais curtos da ascensão e transformação do capital comercial, crédito e sistema bancário, da propriedade fundiária e da agricultura. Nessas seções, o objetivo de Marx era extrair o que distinguia as formas mais antigas de comércio, crédito ou agricultura das modernas, capitalistas, e identificar quais transformações haviam sido necessárias a fim de integrar comércio, crédito e agricultura no sistema econômico do capitalismo moderno.⁴⁷ Marx estava bem ciente da variedade de capitalismos em seu tempo, bem como das mudanças que ocorrem nos países capitalistas mais avançados. A Inglaterra, a pátria do capitalismo industrial, fora seu modelo para o estudo do desenvolvimento industrial, o país mais desenvolvido que mostrou aos menos desenvolvidos, a imagem de seu próprio futuro.⁴⁸ Mas, da década de 1860 em diante, o desenvolvimento industrial começou a avançar em outras partes do mundo, desafiando a supremacia da Grã-Bretanha no mercado mundial. Para futuras edições de O Capital, Marx já havia decidido tratar dos Estados Unidos como exemplo do mais alto grau de desenvolvimento capitalista; ele, não a Inglaterra, seria o país modelo capitalista do futuro.⁴⁹ Enquanto o desenvolvimento da produção capitalista permanecesse incompleto, suas leis e tendências não poderiam se tornar predominantes. Em todos os três volumes de O Capital, Marx enunciou várias leis e tendências do capitalismo. No volume I, essas eram principalmente leis e tendências do desenvolvimento industrial, pertencentes à manufatura moderna e à produção em massa no sistema fabril. Subsequentemente, ele estabeleceu várias leis ou tendências intrínsecas da acumulação capitalista. Então, no final, ele tentou reunir tudo em uma lei geral de acumulação capitalista. Essa lei, a culminação da teoria de Marx como exposta em O Capital, volume I, tem sido objeto de muitos debates desde 1867. É de fato uma lei bastante complicada, um resumo de muitas tendências, ligando a quantidade e o crescimento da riqueza social, a extensão e energia do crescimento, ou acumulação, do capital e do desenvolvimento do proletariado (a classe dos trabalhadores assalariados, incluindo o exército operário ativo, o exército industrial de reserva e os trabalhadores pauperizados). Então, o que encontramos é mais como um pacote de tendências interconectadas que Marx reuniu em uma única lei. No entanto, a lei geral absoluta da acumulação capitalista foi enunciada com muitas reservas e ressalvas; como todas as outras leis, ele acrescentou, ela é modificada, em sua aplicação, por múltiplas circunstâncias, cuja análise não cabe realizar aqui.⁵⁰ Mas uma observação atraiu maior atenção – e, subsequentemente, a crítica mais pesada. Segue-se, escreveu Marx, que à medida que o capital é acumulado, a situação do trabalhador, seja sua remuneração alta ou baixa, tem de piorar.⁵¹ Em outras palavras, a desigualdade social e econômica entre capitalistas e trabalhadores – e também a dependência dos trabalhadores e sujeição ao domínio do capital, daí a desigualdade de poder social – irá aumentar no decorrer do desenvolvimento capitalista. O aumento dos salários, mesmo contínuo, é totalmente compatível com tal pretensão, desde que o crescimento de capital o supere. Infelizmente, Marx tentou coroar seu argumento com outra fórmula abreviada, alegando que a acumulação de riqueza andaria inevitavelmente de mãos dadas com uma acumulação de miséria⁵² – uma reivindicação que induziu muitos a interpretar sua lei como uma lei de miséria. Por outro lado, Marx deve sua redescoberta periódica e fama na mídia ao fato de que muitas das tendências que ele investigou têm constantemente se reafirmado. Ele é, por exemplo, repetidamente creditado como sendo o descobridor e primeiro analista da tendência à concentração e centralização do capital (que ele observou e incluiu em sua teoria da acumulação), o desenvolvimento do sistema fabril e a tendência à automação, à industrialização da agricultura, à disseminação da globalização e a construção de uma economia mundial capitalista, o surgimento do capital associado e a ascensão dos administradores, a aceleração da circulação, as revoluções tecnológicas, a ascensão dos mercados financeiros e o sistema de crédito moderno.

    1.7 A Crítica de Marx ao Capitalismo Moderno

    Ao avaliar os pontos fortes e fracos da crítica de Marx ao capitalismo, devemos lembrar o fato, surpreendente para muitos, de que ele nunca hesitou ou deixou de elogiar as conquistas do modo de produção capitalista. Em nítido contraste com o humor predominante entre os companheiros socialistas, Marx não escondeu sua admiração pelos empresários pragmáticos que conseguiram mudar o mundo do comércio, indústria e finanças na frenética busca de seus próprios interesses estreitos. Nas palavras do Manifesto do Partido Comunista: A burguesia desempenhou na história um papel eminentemente revolucionário.⁵³ Ela criou forças produtivas mais numerosas e colossais do que todas as gerações passadas em seu conjunto,⁵⁴ e não pode existir sem revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais.⁵⁵ O capitalismo, na visão de Marx, provou ser uma potência de inovação, de desenvolvimento tecnológico, de mudanças organizacionais e descobertas científicas. Ele nunca deixou de aclamar as tendências civilizatórias inerentes ao modo de produção capitalista, embora, em 1848, como em anos posteriores, ele nunca tivesse ignorado ou negado os males sociais, a destruição e a degradação que seu domínio infligiu aos seres humanos e à natureza. O que Marx rejeitou totalmente foi a falsa crítica contemporânea da economia política (e do capitalismo), as variedades de românticos, reacionários, ou o anticapitalismo utópico e ingênuo que prevaleceu em vários setores. Em nítido contraste com a crítica moralizante amplamente popular em sua época, ele não criticou o capitalismo como um sistema de injustiça nem o condenou como a fonte de todos os males. Ele via o capitalismo não como um caminho errado desviando a humanidade de seu verdadeiro destino, mas como uma necessidade e uma fase em grande parte progressiva da história humana. Então, é muito improvável que ele fosse em algum momento apoiar qualquer uma das críticas ao capitalismo centradas em lucros exorbitantes, crescentes desigualdades de renda e riqueza, insegurança perene, poder descontrolado do dinheiro e das finanças, crescimento sem limites, globalização desenfreada que devasta mundos sociais tradicionais, ou uma concorrência cada vez mais dura forçando todos a uma corrida de ratos até o fundo.

    Marx via todos esses aspectos com muita clareza e os considerava inevitáveis consequências do desenvolvimento capitalista. Mas sua crítica ao capitalismo operava em outro nível. O argumento mais forte em sua teoria geral é que a lógica interna do capitalismo, como sistema econômico, o impele a enfraquecer, minar e, eventualmente, destruir as próprias pré-condições de sua existência. O capitalismo chegará ao fim por causa de suas tendências inerentes à autodestruição. Marx tinha certeza disso, embora nunca tivesse entrado em especulações sobre como o fim viria nem lançado a hipótese de um colapso iminente do sistema capitalista. Como Marx disse numa frase frequentemente citada de O Capital referindo-se ao desenvolvimento da indústria em grande escala e a industrialização em curso da agricultura: A produção capitalista só desenvolve as técnicas e a combinação do processo de produção social na medida em que solapa os mananciais de toda riqueza: a terra e o trabalhador.⁵⁶ E as contradições internas do modo de produção capitalista? Pode-se pensar que alguém como Marx, que procurou desnudar as contradições internas do capitalismo – desde as mais simples e mais gerais (como a contradição entre valor de uso e valor de troca como os dois lados da mercadoria) até o mais complexo – os veria como fraquezas centrais, até mesmo pontos de ruptura, em seu tecido.⁵⁷ Não exatamente. Em O Capital, assim como em outras obras, as famosas contradições serviram para Marx localizar e compreender a dinâmica interna do capitalismo e identificar a origem das mudanças em curso. Contradições reais não podem ser abolidas – pelo menos não dentro da estrutura existente de troca de mercadorias ou capitalismo – mas elas, ou melhor, as partes conflitantes envolvidas, encontrarão ou criarão uma nova forma em que elas podem se mover.⁵⁸ As contradições do capitalismo devem e irão se desenvolver: o desenvolvimento das contradições de uma forma histórica de produção constitui, todavia, o único caminho histórico de sua dissolução,⁵⁹ e é exatamente esse desenvolvimento das contradições intrínsecas que Marx usa como ferramenta analítica. Marx tentou mostrar como o capitalismo, seguindo sua lógica intrínseca em vários pontos, poderia e acabaria por se prejudicar. Já nos Grundrisse, ele deu um lugar especial a uma lei do desenvolvimento capitalista, a lei da queda tendencial na taxa de lucro. Esta, do ponto de vista histórico, é a lei mais importante,⁶⁰ porque mostra como e por que o capitalismo (industrial) vai minar a si mesmo. O capital implacavelmente desenvolve todas as forças produtivas, mas o desenvolvimento histórico, alcançado certo ponto, suprime, em lugar de pôr, a autovalorização de capital. Para além de certo ponto, o desenvolvimento das forças produtivas devém um obstáculo para o capital,⁶¹ porque a queda da taxa geral de lucro sufocará lentamente a acumulação de capital, e o frenesi de acumular, inovar, introduzir novas tecnologias murchará. Apesar de várias tentativas (em 1857-58, 1864-65 e depois), Marx não conseguiu estabelecer a queda da taxa de lucro como uma lei ligada às mudanças tecnológicas que o capital industrial continua avançando. Se fosse o caso, como sugeriu Engels, que ele tivesse estabelecido a famosa lei sem falhas, a consequência poderia ser (como o próprio Marx indicou) que os capitalistas perderiam o impulso para a mudança tecnológica, a competição perderia sua vantagem, as taxas de acumulação e crescimento diminuiriam, e o capitalismo afundaria em uma estagnação duradoura. Um argumento semelhante pode ser derivado do fenômeno das crises e ciclos e a maneira como Marx o tratou. Ele claramente via crises recorrentes como uma forte evidência de apoio de que os capitalistas não conseguiam dar conta nem governar as forças produtivas e de mercado que eles estavam constantemente desencadeando e que o capitalismo como sistema econômico e social estava fora de controle de todos, incluindo da classe dominante capitalista. Os capitalistas não dirigiam o capitalismo e não governavam a concorrência, especialmente a competição global que assolava o mercado mundial. Periodicamente, todo o sistema capitalista, não apesar, mas por causa dos tremendos poderes produtivos que criou, caiu numa espiral de turbulência e desordem – a um alto custo para os trabalhadores, para toda a sociedade e para a natureza. Por outro lado, Marx via as crises no capitalismo como momentos de catarse necessária, quando a desvalorização e destruição do capital criaram um novo espaço e permitiram um novo começo. Assim, as crises não significavam necessariamente a ruína do capitalismo, mesmo que, como Marx supôs, elas se tornassem cada vez mais graves e causassem uma devastação cada vez maior a longo prazo. Em ambos os aspectos, as contradições internas do capitalismo desempenharam um papel, mas apenas como pistas analíticas para apreender o fenômeno em questão.

    A crítica mais fundamental do regime capitalista que podemos encontrar em Marx é diferente de seu argumento sobre suas tendências autodestrutivas. No entanto, apoia o ponto anterior, porque essas tendências só

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