Estado, poder e violência(s): perspectivas nas sociedades pós-coloniais
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Sobre este e-book
de análise e crítica dos modos e dispositivos de dominação na política mundial. O impacto deste movimento intelectual foi de tal densidade, que
hoje pesquisadores de diferentes orientações e áreas do conhecimento reconhecem o lugar central do encontro colonial na produção do
internacional moderno. Nesse contexto, torna-se relevante discutir a coexistência nas fronteiras entre os regimes oficiais e não oficiais de direitos
e liberdades, bem como as relações estruturais e de instrumentalidade em que a informalidade e a ilegalidade são negociadas pela soberania
política.
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Estado, poder e violência(s) - ThaÍs Janaina Wenczenovicz
A AMÉRICA LATINA E A TEORIA POLÍTICA MODERNA: DISPUTAS SEMÂNTICAS DE DEMOCRACIA
Isabela Lenoir Mendes
Introdução
A fragilidade das democracias latino-americanas costuma ser interpretada como um resultado da propensão regional à tradição autoritária. A dualidade democracia e exceção, porém, pode escamotear fenômenos mais complexos ao conjugarmos em seu entendimento os fatores históricos, econômicos e culturais que determinam a instabilidade da região. Neste capítulo, a partir da metodologia da razão de fronteira usada por teóricos decoloniais, como Aníbal Quijano e Walter Mignolo, propus-me a questionar a compatibilidade da teoria política moderna com a experiência de formação dos países latino-americanos. Trata-se, portanto, de delinear uma crítica epistemológica apta a compreender como a filosofia e as ciências europeias produziram concepções de Estado e democracia pretensamente universais, contudo, moldadas por seus interesses de hegemonia cultural e econômica. A teoria política europeia que emerge no alvorecer da era moderna conjuga-se, portanto, com a estruturação etnocêntrica do sistema-mundo globalizado, articulada segundo os padrões do colonialismo. O conceito de democracia insere-se nesse contexto e, portanto, sua análise deve compreender não só as implicações da colonialidade na sua realização, como também possíveis releituras de seu sentido diante de uma epistemologia renovada.
Ante a falência do utopismo da modernidade, há que ser recriada uma nova gramática capaz de sobrepor-se à razão senhorial que ainda hoje favorece uma minoria. Entretanto, o tempo presente expõe em demasia não só os limites do progressismo democrático diante da recorrência das múltiplas violências no subcontinente, como a persistência de uma tradição autoritária ligada ao militarismo e à ingerência de velhas oligarquias nos processos políticos latino-americanos. Enquanto a extrema-direita brasileira foi bem sucedida em ganhar espaço e visibilidade a partir das fraturas institucionais, as feridas históricas do passado colonial tornam-se mais evidentes e impossíveis de serem simplesmente tamponadas por vias eleitorais.
No presente capítulo, faço uma análise que tem como enfoque a teoria democrática a partir da experiência sócio-histórica latino-americana. Trata-se, portanto, de articular uma crítica primordialmente epistemológica que se envereda tanto por compreender a concepção da América Latina como o outro americano
excluído, como também entender a proposta de sua emancipação a partir da postura de sujeitos que tomam, para si, a tarefa de produzir um conhecimento localizado e desconectado do racialismo científico. A razão de fronteira, metodologia própria ao pensamento decolonial, permite reconhecer a captura da América Latina pelos processos de globalização como um desdobramento do empreendimento colonial e posterior ocidentalização após a Segunda Guerra Mundial. Partindo dessa crítica, é possível discutir, em termos amplos, as vicissitudes da formação dos Estados-nação na periferia do capitalismo, revelando, assim, a inconveniência do pensamento político moderno quando aplicado, sem ressalvas, à realidade diversa do contexto europeu.
Não se trata, portanto, de apenas constatar a inviabilidade de uma modernidade tardia nos países latino-americanos, mas também de perceber como esse processo de nacionalização, além de frágil, dadas às conjunturas locais, encobriu outros tipos de relação de poder e de organização dentro das sociedades indígenas. Reivindicar a democracia, portanto, é uma tarefa que demanda tanto reconhecer os riscos do esvaziamento desse conceito diante das disputas por hegemonia, como o exercício criativo de perceber que seu sentido não deve ser cristalizado por uma perspectiva histórica única.
1. O giro decolonial e a reinvenção da América Latina
Para além da ideia de designar a parcialidade territorial dentro de um todo geográfico mais amplo, o prefixo em subcontinente
é representativo de um espaço para lá
que jamais veio a ser uma civilização em sua completude: há algo de alquebrado e não desenvolvido, diante da imagem de sociedades consagradas por sua própria história. O latino-americano é demarcado, pois, inicialmente, por sua definição a partir de uma negativa, percebe que não há quaisquer sobreposições possíveis de sua identidade àquelas nas quais, paradoxalmente, ele deveria se espelhar. A América Latina é, portanto, em sua nomenclatura e adjetivação, um produto da Modernidade europeia, e, contiguamente, um outro
americano submetido ao domínio dos Estados Unidos no processo de ocidentalização do mundo no decorrer do século XX.
Desde o século XIX, entretanto, a intelectualidade latino-americana foi capturada por teorias positivistas que disseminavam suas tendências de sistematização e classificação dos objetos, de maneira a influenciar tais cientistas a fazerem uma leitura racializada da própria sociedade em que estavam inseridos. Curiosamente, enquanto o racialismo torna-se uma corrente bem-sucedida em construir argumentos convincentes sobre a superioridade de alguns povos em relação a outros, o humanismo moderno criava, a partir da figura da cidadania
, uma categoria jurídica hábil a, idealmente, equiparar os diferentes, segundo o pressuposto de igualdade que atravessa, universalmente, os indivíduos dentro de um Estado-Nação (Gouveia, 2016). A legitimação do racismo é, portanto, a chave pela qual é possível romper a aparente contradição entre as aspirações humanistas e a persistente desigualdade no contexto espaço-temporal em que elas se espraiam.
No entanto, os efeitos de tal racialização ultrapassam a racionalidade necropolítica de governo nos limites de determinado território, para impactar, de modo profundo, a posição ou interpretação que se dá a um país ou região em todo o sistema-mundo. Segundo Gouveia (2016), entre os mais diversos pensadores que se esforçaram para teorizar a hierarquia entre raças, está o filósofo francês Gustave Le Bon, o qual dizia conviver, no continente americano, duas raças europeias – e, portanto, superiores – ocupando, contudo, distintos espaços geográficos, sejam elas as raças espanhola e inglesa. No entanto, ainda que ambas fossem dotadas de brilhantismo próprio, seria possível detectar uma grandiosa diferença entre os povos de colonização hispânica e os de colonização anglo-saxônica. Gouveia endossa que, segundo tal epistemologia, a raça inglesa seria dotada de qualidades inigualáveis como energia, perseverança e vontade, e desse espírito pioneiro adivinha o resplendor civilizatório de seus descendentes. As instituições, por conseguinte, seriam parte dessa herança inata à superioridade intelectual saxônica, de modo que a decadência política latina, dentre outros aspectos deteriorados de sua constituição, seria um inexorável elemento determinado pela inexistência desse legado colonizador inglês (Gouveia, 2016). Ademais, os latino-americanos estavam condenados por sua mestiçagem que contaminava com primitivismo e barbárie toda a formação dessas sociedades, incapacitadas para a ciência, as artes, o comércio e a indústria.
Ainda que tais conflitos entre a identidade saxônica e a latina sejam acirrados no contexto do século XIX, outrossim também permeados e estimulados pela guerra hispano-americana, a ideologia racialista não é triunfante devido à sua capacidade de mobilizar provas relevantes para suas suposições (Gouveia, 2016). Nos dizeres de Wallerstein (2007), ela está inevitavelmente imbricada à revolução epistemológica que tem sua origem no expansionismo marítimo europeu, e da qual advém, posteriormente, o universalismo científico como desdobramento. Trata-se, de modo mais claro, da necessidade de legitimação do poder e do domínio que, sobremaneira, é mais dificultosa de ser conquistada entre aqueles que estão, de várias maneiras, submetidos.
Enrique Dussel (1993) bem define o nascimento da Modernidade como um processo brutalmente violento de sacrifício e controle do Outro
não europeu, que, a partir de então, é encoberto de sua singularidade. Negado e despossuído, esse Outro
é descaracterizado de seu entorno e de sua subjetividade para ser inserido como instrumento ao modo totalizante de existência europeu. Dussel define, portanto, a conquista da América do Sul como uma relação militarizada de subjugação orientada por um Eu-conquistador
que, assim deificado, torna-se protótipo do ego cogito.
A ordem mundial que se solidifica mais de quinhentos anos após esses eventos perpetua-se, segundo a análise de Aníbal Quijano (1992), mediante uma relação de dominação direta, política, social e cultural entre os poucos beneficiários – europeus, e seus descendentes europeus e norte-americanos – e as vítimas conquistadas, em verdade distribuídas por todos os continentes. Ainda que o sistema de exploração colonial tenha sido formalmente extinto pelos processos de independência jurídico-políticas no século XIX ou XX, a desproporção de forças ínsita à estrutura colonial é, então, engessada em categorias pretensamente a-históricas, como raça ou nação, a partir das quais se articulam relações de subjugação outras do tipo classista ou estamental. O efeito persistente da colonialidade depende, portanto, do enrijecimento do imaginário dos povos dominados que, em longo prazo, tomam as invenções do mundo europeu como o ápice das manifestações de inteligência humana, admirando-as, de todo modo, como sonho distante e, simultaneamente, submergindo em um senso coletivo de autodesprezo por jamais conseguir alcançá-las.
Por conseguinte, a decolonialidade pode ser definida, a princípio, como o exercício rebelde e criativo de um grupo de intelectuais que refletem sobre a descaracterização da cultura nas regiões periféricas conforme os parâmetros das elites brancas europeias. O objetivo primeiro do grupo denominado Modernidade/Colonialidade é encontrar caminhos para um giro epistêmico que possibilite a valorização e reelaboração de saberes e práticas que, durante todo o empreendimento colonial, tiveram seu destino vinculado à destruição de corpos pelo genocídio e pela escravidão.
A perspectiva decolonial, portanto, compreende os processos da economia política a partir de seu entrelaçamento com os processos de mudanças culturais, de modo que se torna muito mais complexo, por essa via de análise, concluir qual dos fatores é determinante para o desencadeamento de outro. Como apontam Castro-Gómez e Grosfoguel (2007), a tarefa desses intelectuais é possibilitar uma compreensão outra do capitalismo que não se encerre em leituras meramente economicistas, tampouco exclusivamente culturais, tendo em vista que tal sistema estrutura-se em uma rede global de poder da qual podem ser destrinchadas inúmeras hierarquias que exercem influência mútua umas sobre as outras. De acordo com tal perspectiva, não há, por assim dizer, estruturas autônomas de dominação, sequer aquela que se sobrepõe às demais como o ponto cervical que sustenta todo o sistema.
Nelson Maldonado-Torres (2008) reflete que, tradicionalmente, entende-se que o indagar filosófico é originado a partir de uma postura de assombro diante do mundo. A filosofia, então, é atravessada pelo estranhamento daquilo que, anteriormente, nos parecia familiar e factível. Na avaliação de Maldonado-Torres (2008), contudo, a pulsão do pensamento decolonial não é invocada pelo espanto, mas sim pelo horror que a perversidade do mundo suscita. Não se trata, pois, de revelar uma verdade dissimulada nas entrelinhas dos fatos: os teóricos decoloniais