Espelho do autoritarismo brasileiro: a crise da democracia e suas relações com o Poder Judiciário
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Espelho do autoritarismo brasileiro - André Giovane de Castro
À minha família, com amor e reconhecimento.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
Filhos da época
Somos filhos da época
e a época é política.
Todas as tuas, nossas, vossas coisas,
diurnas e noturnas,
são coisas políticas.
Querendo ou não querendo,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um aspecto político.
O que você diz tem ressonância,
o que silencia tem um eco
de um jeito ou de outro político.
Até caminhando e cantando a canção
você dá passos políticos
sobre um solo político.
Versos apolíticos também são políticos,
e no alto a lua ilumina
com um brilho já pouco lunar.
Ser ou não ser, eis a questão.
Qual questão, me dirão.
Uma questão política.
Não precisa nem mesmo ser gente
para ter significado político.
Basta ser petróleo bruto,
Ração concretada ou matéria reciclável.
Ou mesa de conferência cuja forma
se discutia por meses a fio:
deve-se arbitrar sobre a vida e a morte
numa mesa redonda ou quadrada.
Enquanto isso matavam-se os homens,
morriam os animais,
ardiam as casas,
ficavam ermos os campos,
como em épocas passadas
e menos políticas.
Wislawa Szymborska
PREFÁCIO
Prefaciar uma obra com a proposta de discutir o autoritarismo no campo das práticas punitivas, pelo viés da análise da atuação do Poder Judiciário brasileiro, é uma tarefa desafiadora e, ao mesmo tempo, motivadora. Desafiadora, porque se trata de tema sensível e multifacetado, que não pode ser abordado a partir de uma leitura acrítica e generalizante; motivadora, porque me colocou em contato com uma pesquisa sólida, que foi conduzida, sob minha orientação, por um jovem pesquisador do interior do Estado do Rio Grande do Sul, no contexto de um Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu com área de concentração em Direitos Humanos vinculado a uma Universidade Comunitária¹, a evidenciar, por esses atributos, tratar-se de um livro de extrema relevância acadêmica.
André Giovane de Castro soube, na esteira da vasta produção bibliográfica que já acumula – publicada em formato de livros e artigos científicos publicados em importantes periódicos científicos nacionais – avaliar com clareza e serenidade a temática a que se propôs. O livro, que se inicia com a discussão acerca de uma tradição autoritária
que marca as instituições nacionais desde o período colonial, evidencia como a estrutura descentralizada com que se dava o exercício do poder dos senhores proprietários de terras instituiu espaço profícuo para a implantação de tiranias privadas, uma vez que a autoridade dos senhores escravocratas era absolutamente inquestionável, que ainda ecoa no tempo presente.
No período colonial, a autoridade dos senhores não incidia somente sobre a população escrava. Existia, entre os escravos e os senhores, uma população legalmente livre, mas que não tinha condições para exercício dos direitos civis, razão pela qual ela também dependia dos grandes proprietários rurais para ter onde morar, trabalhar, e se proteger do arbítrio tanto dos governantes quanto dos demais proprietários. A autoridade do patriarca, neste contexto, se dilatava, alcançando, além dos seus familiares consanguíneos, todos aqueles que viviam sob o seu domínio territorial (escravos, camponeses agregados
etc.). A própria justiça estatal tinha um alcance limitado, não ultrapassando os confins das porteiras das grandes fazendas, onde os senhores imperavam de modo absoluto. No período analisado, as Ordenações do Reino Português constituíam apenas um pano de fundo para o exercício pouco – e às vezes não regulamentado – do poder punitivo que era delegado aos donatários pelo rei.
Com a independência do País, como observa criticamente o autor da obra, não se introduziu nenhuma mudança radical na sua estrutura política e na sua forma de organização social, justamente em virtude da força da cultura política colonial e do fato de que o processo de declaração da independência foi conduzido de forma bastante pacífica, uma vez que foi resultado de negociações entre a elite brasileira, a Coroa portuguesa e a Inglaterra. O povo assumiu, nesse processo, uma postura de simples espectador, tanto que a notícia da independência só chegou a alguns lugares meses depois da sua declaração.
A invasão
do público pelo privado, em que pese ser fruto do período em que a sociedade brasileira ainda era essencialmente rural, não foi suplantada com o processo de urbanização do País iniciado a partir da declaração da independência. Isso porque, com a formação dos centros urbanos, os cargos relativos à vida citadina (carreiras burocráticas, profissões liberais etc.) foram sendo paulatinamente ocupados pelos próprios aristocratas rurais e seus descendentes que, transportados para as cidades, carregaram consigo o ideário que permeava sua primitiva condição no espaço rural. Com isso, todo o aparato administrativo do País, mesmo durante o período republicano, foi formado por elementos intrinsecamente relacionados ao velho sistema senhorial do período imperial.
É por isso que os bacharéis brasileiros da época, em que pese a contaminação
ideológica de cariz iluminista decorrente da sua formação – inicialmente em terras portuguesas, posteriormente nas Faculdades de Direito implantadas em solo brasileiro –, representavam, em última análise, um estrato social que sustentava seu discurso libertário na base do açoite – por mais paradoxal que isso possa parecer.
Com isso, a transposição dos ideais liberais para o domínio brasileiro foi pautada pela seguinte equação: afirmação dos direitos de liberdade para as classes dominantes versus manutenção da opressão sobre os setores subalternos, como decorrência da manutenção do trabalho escravo como base de sustentação das elites.
Com as rupturas significativas ocorridas no Brasil entre os séculos XIX e XX, representadas pelo fim do trabalho escravo (1888) e do regime monárquico (1889), houve reflexos na forma como se estruturou o controle social sobre as camadas vulneráveis da população. Tal controle era exercido a partir de uma dinâmica pendular e contraditória entre a sacralização (caridade) e a secularização (dever), característica do exercício do poder na sociedade brasileira em decorrência das permanências culturais herdadas do modelo institucional do Estado absolutista português (sacralização) e do processo de ruptura iniciado com a emancipação política (1822) rumo à constituição do Estado brasileiro (secularização)².
Verifica-se, portanto, uma interpenetração do ideário burguês com permanências históricas da cultura política do Antigo Regime e do escravismo, que deu suporte a uma prática jurídico-política e a uma afetividade absolutista, que desafiaram a racionalidade do capitalismo e seu ideário, que se queria implantar
³.
Constata-se, assim, nesse período, um certo afinamento das elites brasileiras com a política europeia de organização da justiça criminal (modernização, ainda que conservadora), mas a estrutura social até pouco tempo calcada na escravidão segue sendo responsável pela manutenção de mecanismos arcaicos de sustentação do poder destas elites.
O cotejo entre o Código Penal republicano de 1890 e a Constituição de 1891 deixa clara essa dinâmica pendular: ao passo que o primeiro foi marcado por traços eminentemente repressivos, em especial no que diz respeito aos chamados Crimes contra a liberdade de trabalho
⁴, a segunda foi informada por princípios liberais, o que resta claro a partir da leitura dos dispositivos referentes à declaração dos direitos dos cidadãos. Quer dizer, à inclusão na cidadania por meio da Carta Constitucional correspondia a exclusão por meio do Código Penal sempre que estivesse ameaçada a liberdade de trabalho
⁵.
Torna-se possível, portanto, a afirmação de que a substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre redundou na formação de uma estrutura de classes na qual a classe dominante – então representada pelas oligarquias cafeeiras ligadas à área mais dinâmica do ponto de vista econômico da sociedade brasileira da virada do século XIX para o século XX – procurou deter a manutenção do monopólio da repressão sobre as camadas inferiores – então representadas precipuamente pelos ex-escravos – e mesmo sobre os setores dominantes não hegemônicos, mantendo a normalidade
e a ordem
por meio do controle dos desvios
.
Essas matrizes históricas deitam raízes profundas no modo como se organizam as instituições brasileiras. E isso, em alguma medida, explica a necessidade de se debater – como propõe o autor da obra – as crises democráticas do século XXI, que expõem as relações – não raramente promíscuas – entre direito e política. E como propõe André Giovane de Castro, esse cenário impõe a discussão sobre a Justiça e(m) crise
com a qual nos deparamos, no Brasil, na contemporaneidade.
Essa crise constante – e, por consequência, estrutural – produz um dos sistemas de justiça penal mais violentos do mundo. A violência e a sistemática violação dos direitos humanos da população da massa carcerária brasileira – composta majoritariamente por pessoas pobres, negras e de baixa escolaridade que praticaram delitos patrimoniais ou vinculados à Lei de Drogas – evidenciam a seletividade punitiva que (ainda) permeia o imaginário das instituições.
A fantasia absolutista
– na expressão de Neder⁶ – da possibilidade de um controle absoluto de tudo e de todos não foi processada no Brasil nem mesmo com a abolição da escravidão e a instituição da República. Ela segue firme entre nós em pleno século XXI, reinventando-se e retroalimentando-se dos fantasmas do passado. A equiparação conceitual equivocada traçada entre pobreza
e periculosidade
serve como fundamento para, a partir da constatação da pobreza de um indivíduo, inferir seu potencial de periculosidade e, portanto, a necessidade de seu constante controle por parte do aparato penal estatal.
O sistema punitivo brasileiro já nasce com uma missão bem definida: segregação e, sempre que esta for insuficiente, eliminação dos riscos representados pela existência das classes perigosas
, missão esta que vai seguir imutável por toda a história brasileira e que será incrementada com o advento das reformas neoliberais operadas no País no final do século XX e albores do século XXI.
Na atualidade, de acordo com a lógica que preside as reformas neoliberais, o engajamento dos cidadãos na sociedade acontece na medida em que eles apresentam capacidade de serem consumidores, o que significa dizer que a capacidade de consumir se transforma no principal critério de integração ou exclusão social. Isso implica o surgimento de duas classes opostas: de um lado, os produtores de risco
; de outro, os consumidores de segurança
. Assim, aos produtores de risco impõe-se a rudeza das leis penais, como forma de garantir os interesses dos consumidores de segurança.
O ressurgimento do punitivismo, portanto, parte de um discurso que sustenta tão somente a necessidade de fortalecimento do sistema punitivo, dado o entendimento de que a sua deslegitimação deriva do aumento da violência na sociedade contemporânea, fenômeno que é atribuído à forma condescendente com que determinados crimes são tratados pelo Estado. Parte-se, por conseguinte, da concepção de que mesmo a mais ínfima das contravenções penais deve ser perseguida implacavelmente, sob pena de se transmutar em um delito maior no futuro.
Assim, tais políticas transformam o sistema penal tão somente em um instrumento de criminalização dos estratos mais pobres da sociedade, os quais, pela sua condição socioeconômica e pelo tipo de criminalidade cometida, colocam em risco, aos olhos da classe detentora do poder econômico, a paz e a ordem social. Desta forma, a adoção destas políticas de cunho repressivista serve justamente