Mistura fina
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Mistura fina - Sérgio Telles
PREFÁCIO
Mistura fina, de Sérgio Telles, começa e termina bem, desde o título à ultima linha. A mistura fina
indica a combinação de contos, crônicas e poemas, tudo na mesma obra. Informa, de certa forma, acerca da com-fusão
dos gêneros, fenômeno contemporâneo, nessa época de crise franca da representação na textura literária. E, principalmente, convida o leitor à reflexão sobre o agente enunciador na obra de invenção.
Além do mais, diante da experiência de Sérgio Telles, somos levados a meditar sobre a eficácia da escrita na instalação do ser. O autor, como é sabido, é médico psiquiatra, de formação psicanalítica, e experimentado ficcionista. Seu texto congrega as duas funções históricas, herdadas da velha retórica grega: a de deleitar e a de instruir. E, incorporando a tradição moderna, que vem desde o Século das Luzes, qualifica o discurso antropocêntrico. É o que se percebe dos contos, das crônicas e dos poemas.
O primeiro conto, Legado
, é um belo exemplo. O narrador domina a cena familiar e mostra ao leitor uma das virtudes do ficcionista: o uso da pergunta como processo cognoscitivo, uma espécie de abertura para a paisagem do entendimento do mundo. Testemunha e aquece o relacionamento humano.
Em outras ocasiões, Sérgio Telles usará o recurso da pergunta ora para humanizar a situação, ora para exprimir o contraditório. Ora, talvez, em certos casos, como veículo de informação.
As questões, não raro, integram o solilóquio emocional da personagem, como ocorre no relato Trabalhos manuais
: No final da adolescência, Maneco se angustiava quando, por acaso, o (o trabalho manual) encontrava entre seus pertences. Pensava – será que as coisas cuja realização valorizo atualmente passarão pelo mesmo processo sofrido pela capa do álbum? Chegará um dia em que, constrangido e embaraçado com suas parcas qualidades, as verei como uma modesta realização, desajeitadas tentativas de conseguir algo cujo sentido está para sempre perdido? Será que as enxergarei tal como vejo essa rosa sobre o veludo vermelho?
.
O mesmo se insere na crônica Falando sobre a fila
, em que o narrador dispõe uma série de perguntas consecutivas, das quais a última culmina em: Deve-se interromper a conversa animada dos velhinhos com as caixas ou levar em conta que são pessoas solitárias que possivelmente estão tendo naquele momento sua única oportunidade para conversar com alguém?
. Vê-se logo que a questão é mais do que expositiva, é avaliativa, contém uma resposta implícita.
Outro aspecto: o que une os textos, em prosa ou em verso, é a dimensão lírica. Gostaríamos de chamar a atenção para esse índice de modernidade, muito bem explorado por Käte Hamburguer, no capítulo O gênero lírico
, de A lógica da criação literária (São Paulo, Perspectiva, 1975, trad. de Margot P. Malnic). Ali se explora o conceito de lirismo existencial, germinado na ciência literária alemã. Designa o lirismo do sentimento pessoal, diferente daquele originário da convenção, herança formal e social de épocas anteriores. A vivência
congrega todos os processos da consciência (percepção, imaginação, conhecimento etc.) e sua experiência, equiparada à vivência, aponta para a intencionalidade, consciência de algo, ou seja, vivência existencial.
Käte Hamburguer, baseada na Fenomenologia de Husserl, diz expressamente: o sujeito-de-enunciação lírico não faz do objeto da vivência, mas da vivência do objeto, o conteúdo da enunciação
(op. cit., p. 199).
O que desejamos enfatizar é que Sérgio Telles, nas poesias, nas crônicas e nos contos, tece uma série de poemas-existência, decorrentes da experiência pessoal não transformados, todavia, em puro objeto de representação, mas indicativos da intencionalidade do eu lírico
, na variedade e indeterminação dos significados do eu. Assim, todos os textos, de certo modo, testemunham o lírico como enunciador da realidade, isto é, manifestação do sujeito real.
A tudo isso se agrega a dimensão humanística como fonte do olhar e da observação que captam a externalidade e fecundam a opinião. Daí o numero de personagens marginalizas, crianças e velhos desprotegidos, de desempregados e de profissionais sem qualificação.
Grande parte das crônicas, na aparente feição de registro do cotidiano e de seus aspectos efêmeros, guarda uma dimensão reflexiva. Vejam-se os Jorros do Ibirapuera
e Uma inocente prática sadomasoquista
.
Os contos, em menor quantidade, trazem a marca de um ficcionista de pulso: Legado
, O casal que dança
, Ilustres visitantes
...
E os poemas? Face ainda não bem conhecida de Sérgio Telles, eles trazem a virtude da contenção verbal, juntamente com a força evocativa. Veja-se o denso texto de Sem rumo
, assim como o exíguo suporte de Momento
.
Mencionemos o poder de evocação de diversos textos de Sérgio Telles. Esse é um dos traços imprescindíveis da arte, segundo o demonstrou Georg Lukács na sua Estética. E o autor de Mistura fina não deixa de usar os diferentes marcos da memória a fim de redesenhá-los em palavras escritas, discursos de forte intencionalidade lírica. A todo momento, o leitor, sabidamente alimentado pelos acidentes da vivência urbana de São Paulo, não deixa de se deleitar com os signos, ora disfarçados, ora explícitos, das lembranças juvenis do Ceará, formadoras do adulto Sérgio Telles, que as trouxe consigo e as converteu em emoção literária.
Fábio Lucas¹
Fábio Lucas é crítico literário, membro da Academia Paulista de Letras. Autor de várias obras, entre elas, Expressões de identidade brasileira (São Paulo: Educ, 2002) e O poeta e a mídia: Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto (São Paulo: Senac, 2004).
LEGADO
Não poderia haver pior momento para viajar, pensei ao desligar o telefone. Estava com um monte de trabalho em andamento, muitos deles com o prazo estourado. Tínhamos de finalizar uma proposta para uma concorrência pública. Sem falar nos rolos com Carolina. Atravessávamos um momento difícil, não era hora de deixá-la sozinha.
Mas não tive coragem de dizer não a meu pai. Estávamos brigados há tanto tempo, não nos falávamos há quase dez anos e entendi seu pedido como uma forma de propor as pazes. Muito embora eu, gato escaldado, não quisesse muita proximidade com ele, também não desejava manter a situação que persistia até seu telefonema – a de relações cortadas.
Meu pai me pedia para acompanhá-lo até São Paulo e ali ajudá-lo na venda da baguette de diamante e do quadro do Di Cavalcanti.
Logo vi a importância do momento, a gravidade da situação. A baguette e o quadro eram seus dois últimos bens, os únicos que tinham escapado da sobressaltada montanha russa que foram seus negócios.
Eu não poderia, em absoluto, dizer-lhe não.
Era quase um milagre que a baguette e o quadro ainda estivessem com meu pai. Ele os comprara muitos anos antes, numa época em que suas finanças iam especialmente bem e ele costumava ir com minha mãe para o Rio de Janeiro, onde se hospedavam no Hotel Glória.
O broche de diamante, minha mãe usou algumas vezes nas grandes festas, nos bailes de reveillón do Ideal Clube.