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O arrumador de cadeiras
O arrumador de cadeiras
O arrumador de cadeiras
E-book417 páginas5 horas

O arrumador de cadeiras

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Sobre este e-book

Elis parece viver uma existência que não é sua. Desde a infância carrega consigo a
perturbação de uma mãe que a ignorava e de um pai ausente. Sem saber a razão
disso, descobriu misteriosamente a alegria de brincar, em sonho, com a "morte" que
se mostrou generosa, condescendente, apaziguadora e diferente dos perfis que
atribuíam a ela. Dois momentos fortes marcaram a adolescência. Esses incidentes
desestabilizaram seus sentimentos e modificaram sua maneira de pensar. Exposta a
um emaranhado de limitações, com a consciência intranquila e traumatizada,
enamora-se de um jovem de família humilde, portador de uma síndrome, que a faz
abandonar suas aspirações de estudar e evoluir. Nesse ínterim de tempo, encontra
indícios de que o seu nome de batismo não deveria ser aquele na qual foi registrada e
envolve-se em um estranho contexto que revela a misteriosa história de seu pai e
ascendentes. Coincidentemente, a pessoa que se posta a seu lado, como benfeitor,
também é elemento integrante dessa trama. As tragédias se avolumam sobre sua
biografia. A "morte", definitivamente a acompanha, tornando-se a grande coadjuvante
dessa história de ultramundos, onde os valores espirituais são duramente
questionados frente ao impacto da enfermidade, envolvendo aspectos morais e de
ascensão social.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento3 de jan. de 2024
ISBN9789893763667
O arrumador de cadeiras

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    Pré-visualização do livro

    O arrumador de cadeiras - Gilberto Veppo

    © 2023, Gilberto Veppo e Astrolábio Edições

    E­-mail: geral@astrolabioedicoes.com

    Título: O arrumador de cadeiras

    Editor: Vitória Scritori

    Coordenador Editorial: Vasco Duarte

    Capa: Vasco Duarte

    Composição Gráfica: Manuela Duarte

    Revisão: Vitória Scritori

    1.ª Edição: Novembro, 2023

    ISBN: 978-989-37-6366-7

    GILBERTO VEPPO

    O ARRUMADOR DE CADEIRAS

    PORTUGAL | BRASIL | ANGOLA | CABO VERDE

    Em memória desse trio que

    me ensinou a driblar

    as asperezas do mundo:

    Otilia Almerinda Veppo,

    Arno Jäger,

    Otilia Budel Jäger.

    Na inquietude de partir

    deixe a bagagem,

    esqueça os livros,

    abandone as recordações,

    fuja da estreiteza das horas,

    desvincule­-se dos familiares

    que são circunstanciais!

    Leve a benção dos amigos!

    Sinta­-se como estrela cadente

    que se inflama em vida

    pelo tempo da existência,

    até sua luminosidade virar pó.

    Gilberto Veppo

    Nota do autor

    A arte e a literatura são as manifestações emocionais mais intensas de individualismo que o mundo conhece.

    Um artista solitariamente pode produzir uma pintura ou uma escultura surpreendentemente bela; um jornalista ou escritor pode redigir textos arrebatadores ou abomináveis que bajulem, apenas, uma lamentável vaidade de interesses alheios.

    A sociedade tem dificuldade em aceitar a arte como manifesto individual, em detrimento do coletivo. Essa inadequação quanto a origem e aos atributos provém da denominada opinião pública, cuja determinação consciente ou inconsciente visa subverter o pensamento e as ações do artista em benefício de alguns. Em ato contínuo, se ouve dizer que a arte ou a literatura deveriam agradar a todos ou que necessitariam causar boa impressão a acurado público, mesmo que seja para amenizar impactos de sua combalida realidade.

    Obviamente, se um artista fosse obrigado a cumprir essas determinações sociológicas, ele deixaria de ser um artista. Em contraposição, estabelece­-se a dúvida: por que a arte necessita aspirar anseios de popularidade, se não existe de parte dos demais uma adequada compreensão para entender essa arte?

    É abstruso imaginar que um artista ou mesmo um escritor idealize determinado projeto e que o mesmo seja prontamente reconhecido pelo público ou pela imprensa. Não que a imprensa desconheça qualidades da arte e muito menos que a aldeia não tenha capacidade para interpretá­-la. A grande dificuldade está na repercussão e no estigma em aceitá­-la.

    Por conseguinte, imagine um cientista aceitar que os seus experimentos, depois de anos de estudo e pesquisa, não possam contrariar os conceitos populares ou da mídia. Ocasionaria o refreamento do progresso ocasionado por aqueles que não entendem nada de ciência.

    Apesar de o próprio homem ter propensão a deixar­-se enganar, a grande maioria não gosta de ampliar universos temáticos porque a inovação assusta quando se deparam com o que é ininteligível. Assim, a própria incompreensão faz coação à arte ou literatura, tornando­-as um entretenimento de indivíduos que prezam o burlesco.

    Forja­-se uma fricção inquietante e desagregadora no instante em que uma galeria de arte expõe um quadro que é totalmente incompreensível. Por não atribuírem a ele uma profícua perspectiva de compreensão passam a ignorá­-lo, tratá­-lo como enfadonho ou até amoral.

    Constantemente se embaralham as rubricas, desses pareceres populares embaçando a criatividade do autor, acossadas por linhas de poderes de classes eclesiásticas ou governamentais. Em consequência, torna­-se especulativo envolver exigências populares sobre a denominada ação de produzir arte.

    No momento em que um escritor elabora um texto ou desenvolve uma história, não raras vezes, tentam atribuir a ele razões de ego, de neuroses, de lembranças passadas, que foram causadoras de desventura. Ignoram os desafios e a capacidade criativa.

    A necessidade de criar faz parte do atributo do Criador, que cria tantos outros temas infinitos, quanto aquilo que lhe é finito. Portanto, criar qualquer personagem ou criatura, leva o escritor a extrair do infinito vários finitos. O hominídeo explora materiais que a natureza lhe oferece para a sua obra, isso é, a finitude a que ele tem acesso. Ao divagar, projeta­-se para outra dimensão, ainda que finita, com especificidades diferentes e de elevada frequência de vibração. O acesso a apurados mistérios nunca foi consenso e não nos parece tão fácil arbitrar quanto se pensa.

    O encaminhamento proposto para O arrumador de cadeiras era limitar a obra a personagens de um bairro simples de uma cidade, adotando um linguajar popular que beire ao inculto, desprovido de preceitos intelectualizados.

    O próprio personagem desse relato, em razão de uma síndrome, é limitado em suas intervenções. Enfrentando dificuldades pessoais torna­-se praticamente em coadjuvante da esposa, que carrega consigo perturbações de infância e acontecimentos da adolescência que modificaram sua maneira de pensar e agir. A história projeta um personagem imaginário, que a acompanha ao longo da vida e faz inúmeras intervenções, caracterizando­-se como uma história de ultramundos.

    Pensadores dirão que O arrumador de cadeiras se distingue por certa morbidez, sem cultivar a estirpe inquisitiva da obra. Evidentemente que a trivialidade, a estupidez e a morbidade se condicionam como temas muito presentes nesse século XXI, principalmente em um período pós­-pandemia de COVID­-19, admitindo inclusive certas análises muito particulares, gerando toda a ordem de desconfianças e discordâncias.

    Com efeito haveria muito mais para falar em função da vontade popular do que a favor da compreensão desse público. Portanto, muitas vezes, aquilo que parece ser uma obra de arte adoentada, pode se caracterizar como uma obra de arte profícua, dependendo obviamente da obliquidade interpretativa.

    Soará estranho afirmar que toda a obra é o resultado singular de um temperamento, também singular, independente do consenso ou da opinião que se faz sobre ela.

    O arrumador de cadeiras expressa aquilo que abarca o cotidiano, com questões morais, sociais e familiares, envoltos na impulsividade das dores emocionais que podem conduzir à morte.

    Há a confrontação dos personagens que conspiram e ajuízam reverências que julgam importantes, como ascender socialmente, desprezando a própria origem ou existência, radicalizando uma profunda suspeita sobre a consciência e as próprias crenças.

    Provavelmente, o leitor se sentirá mais seduzido pelos fatos, a partir da metade do livro.

    Prólogo

    Um homem moreno, de olhos impenetráveis, encontrava­-se na sala de espera, visivelmente nervoso e compelido. As pálpebras oscilavam e o olhar se perdia pelos corredores entre as paredes brancas.

    Seus pensamentos o embaraçavam, misturando os contextos em ambíguas teias, roubando­-lhe a clarividência dos fatos.

    Visivelmente angustiado, contemplava três senhoras que conversavam discretamente à sua frente.

    Conhecia aquela peculiaridade de as vizinhas serem solidárias em dificuldades de saúde, como se suas presenças criassem um antídoto para abrandamento das amarguras.

    Ele ouvia sussurros, mas não conseguia identificar o que diziam. A precaução ensinou­-lhe a não se imiscuir em coisas alheias.

    Fechou os olhos e vários rostos difusos brotaram em sua memória.

    Muitos se vincularam à sua biografia nos últimos meses, ante os rigores da enfermidade, na tentativa de limar o sofrimento e evitar sua escalada indômita. Cada um procurava ajudar à sua maneira, de forma irrestrita, para fazer a família manter a cabeça fora da inundação e das ondas de pânico que se avizinhavam.

    É inevitável que náufragos se agarrem a qualquer objeto que flutue para tentar se salvar, e o mesmo ocorre com enfermos que abrem espaço para novas amizades ou novas crenças, mesmo àquelas que se perfilam como falsos ardis de esperança.

    Apesar de as religiões tradicionais se fazerem presentes nos piores momentos da enfermidade, chegaram também os franqueadores de outras doutrinas. Abria­-se espaço até para as curadoras esotéricas que se postavam, frente às limitações físicas, com um fascinante apego incondicional.

    Em meio a essa turbulência de emoções, o homem moreno dificilmente conseguia compreender o funcionamento dessa simbologia de pacto de socorro coletivo. Percebia que todos rezavam, não somente para a infelicidade do próximo, mas amedrontados com as suas próprias aflições, porque eram incapazes de aceitar os próprios percalços.

    Tentava dimensionar a dívida de gratidão àqueles que infundiram confiança e não mediram esforços na perseguição da enfermidade.

    Em meio a esse tumulto existencial, esqueceu das palavras do médico, de que a reputação da medicina se reconstruía a cada instante e colocava­-se em xeque ao enfrentar uma patologia.

    Como se acordasse de um transe, os olhos voltaram a abrir, fixando­-se na porta acinzentada, com letras garrafais: Centro Cirúrgico.

    ###

    Dentro do Centro Cirúrgico vive­-se uma intensa canalização de energia, onde os médicos abdicam de tudo em prol do outro; onde a equipe imbui­-se da missão de reduzir o trauma, reequilibrar os campos energéticos e explorar a vastidão de esperança no paciente.

    Trata­-se de um propósito de plenitude única, na busca de percepção sensorial, que os conduza a suportes mais alinhados para o sucesso da cura.

    Há a nobreza do instinto, do enfrentamento da vontade de subjugar a patologia, erradicando­-a definitivamente naquele que aspira viver.

    Se questionarem sobre o que estão fazendo? Certamente dirão: o nosso trabalho!

    ###

    Feche os olhos e tente imaginar o que ocorre dentro de uma sala de cirurgia.

    Ninguém fala, ninguém sorri. A leveza de uma melodia instrumental atenua o clima de tensão.

    Um lenço é passado na testa do cirurgião. O anestesista controla o tempo e os sinais vitais. As enfermeiras concentram­-se nas suas tarefas.

    As mãos trabalham rápidas e mal se tocam no instante em que os objetos são trocados. Percebe­-se que há otimismo e esperança no ambiente.

    Repentinamente, uma pinça escapa da mão de um dos médicos e cai ao chão. Fato incomum. Olhares se cruzam. Busca­-se outra pinça. Realinha­-se os anseios mais profundos de que tudo deve seguir em frente, sem falsos apelos ou precipitações.

    Naquele momento, o anestesista percebe que a pressão e os movimentos respiratórios se alteraram. Sua sensibilidade aguçada revelou algo errado, não nos aparelhos, mas nas reações e vibrações periféricas. Ocorria uma sensação explícita de desconforto.

    Legitimava­-se uma incerteza.

    Poder­-se­-ia afirmar que no decurso de todos os anos de experiência, ele conseguia detectar componentes não mensuráveis, da aura humana. Tornava­-se quase visível o declínio da resistência daquela que se encontrava deitada na mesa de cirurgia.

    A paciente fragilizava­-se.

    Uma certa perplexidade eclipsou a todos.

    Sei que dificilmente serei bem­-vinda. Todos conhecem a tensa atmosfera que a minha presença pode ocasionar. No momento que chego há apertos no coração e dores no estômago. Os corpos tremem. As pernas ficam bambas. Os soluços se intensificam, os olhares se perdem no vazio. A sensação de frio é intensa. Minha sina é ser desprezada com gritos histéricos e lágrimas quentes. O temor não está no desalento de perder ou de partir, porque muitas hipóteses são deliberadamente profundas.

    Mesmo fragilizada, a paciente podia sentir, conseguia ouvir. A expressão facial não se alterava, mas tudo dentro de si se modificava.

    Uma inusitada lembrança do último dia que passara em casa. Do carinho dos vizinhos. Dos filhos distantes que não voltariam. Dos planos que foram deixados de lado. Da nova coleção de moda, inacabada.

    Uma sensação humilhante de impotência levava­-a a lamentar os sonhos não concretizados.

    Os preâmbulos da enfermidade a pegaram de surpresa, bem como a rapidez do esgotamento. Dessa maneira perdera muita coisa, inclusive os cabelos que tanto apreciava. Improvisara. Ouviu disparates de cura, metacura e metafísica. Ambíguas concepções universais. Experimentações dos devotados filósofos medicinais. Alvoroços das abordagens genuinamente espirituais.

    Rejeitando a vulnerabilidade, não se resignou e tentou mostrar­-se forte. Contrariava­-se com o rosto encovado, corpo flácido, musculatura comprometida, pernas e braços inchados, barriga deformada.

    Queria retornar. Almejava voltar a trabalhar. Desejava ficar boa.

    Desconhecia as razões de outras pessoas se angustiarem com o excesso de afazeres. Era prazeroso ver a agenda cheia, com inúmeros compromissos a serem cumpridas. Isso não a incomodava e proporcionava­-lhe encadeamento, liberdade.

    Lamentava a insensatez dos menos talentosos que procuravam matar ou perder tempo no trabalho.

    O artificio de matar tempo é como extinguir­-se, tremia intimamente.

    A energia do seu corpo dissipava­-se em oscilações desconhecidas.

    Inconformada, tentava agarrar­-se ao oxigênio, à vida, porque queria concretizar novos objetivos.

    O coração fraquejava. Enrijecia­-se. Era uma sensação de desamparo. Ouvia estalos. Frases dos médicos. Ruído de equipamentos. Tentava resistir.

    Flashes de sua vida espocavam como fogos de artifícios.

    Um gramado verdejante e um balanço. O primeiro dia de aula, carregando uma frasqueira rosa, com dois pãezinhos dentro. O estalar da madeira na fogueira de São João. O cheiro de pipoca e pinhão. Uma biblioteca, um bilhete, as lágrimas da amiga. Um tapete vermelho de sangue.

    Por que não a traziam de volta?

    Entorpecia­-se. Flutuava. Tudo se assemelhava a devaneios!

    O rumor aumentava, diminuía. O palavreado se perdia pelos corredores.

    Corredores? Pareciam túneis!

    Agora percorria longos parreirais. Cheiro de terra, de uva. Sabor de vinho. Odor de chuva. Agricultores na colheita. Uma horta. Flores murchando. O latir dos cães. A praça. O lago. O ateliê. A mão estendida.

    Por que não me socorrem?

    As máquinas manifestavam­-se ruidosas, surpreendida pelo brilho de luz colorida sobre o ombro esquerdo.

    Evitou olhar.

    O braço!, tentava falar. Não sinto mais o braço! Não sinto mais meu corpo.

    Parecia que não mais a ouviriam.

    Conheço a sinergia entre a arrogância da existência terrena e a minha chegada. Já fui testemunha de momentos chocantes. São corações que batiam e não batem mais. São pulmões que respiravam e não respiram mais. São estômagos que absorviam alimentos e estão inoperantes. Cabeças que pensavam e estão estafadas. Sangue que circulava e está enregelado. O sopro, o brilho, as visões que pareciam significativas, agora se fundem em tudo e nada.

    Intimidada, estremecia.

    Parecia que bolas de pingue­-pongue quicavam ao seu redor, tal qual partículas desalinhadas, sem que conseguisse pegá­-las.

    Uma lágrima solitária impercebível desliza pela face.

    — Prana¹. Prana — uma enfermeira sussurra.

    Abruptamente uma cor. Na hora derradeira explode uma luminosidade de átomos e neutros sobre o ombro esquerdo. Será o momento imperioso em que a alma gradativamente se ilumina. Há os que ficam extasiados quando surge essa luz emoldurada, próxima ao rosto. Ficam tão hipnotizados que não percebem que, infelizmente, já é o momento derradeiro. Muitos conseguem aceitar e assimilar a sua beleza. Porém, há aqueles que as ignoram, como se esse chamado não lhes pertencesse. Fazem isso por medo ou por absoluto despreparo de entender que a imortalidade não é do corpo. No instante em que a luz colorida surgiu, a mulher da cirurgia virou o rosto para o lado direito. Então, defrontou­-se comigo, recusando­-se a admitir a minha presença.

    Os médicos e as enfermeiras transpiravam e olhavam para o Respiradouro e o Monitor Multiparamétrico, que oscilava. Repentinamente, um ruído ininterrupto. A linha do coração estende­-se no aparelho de forma contínua, sem movimento. Todos se movem com rapidez, de forma sincronizada, como se estivessem tocando em uma orquestra. Faz­-se um último esforço, na busca da derradeira fronteira. É quase como tentar combater o invisível.

    Não há suspiro, não há gemido, não há palavras. Perde­-se o fôlego.

    Todos sabem o significado e qual a sensação de terem sido esmurrados no estômago.

    Doem as costelas, os tendões, os braços. As pernas ficam bambas.

    O relógio para – um segundo, dois, três – perante figuras estáticas e olhares de desalento.

    Não queria atrasar­-me. Na minha chegada, vejo o médico tirando a máscara e passando as costas da mão esquerda, no rosto. O anestesista soltando os braços. As enfermeiras se olhando chocadas. Vim para cumprir com o meu papel.

    A tensão é tanta que é quase impossível saber se os presentes estão respirando.

    Balbucia­-se algo de forma imperceptível.

    Um dos médicos auxiliares volta os olhos para o prontuário número 181.684. Destacava­-se como cirurgia de alto risco; sexo feminino; data de nascimento: 24.06.1970; 49 anos; 1,69 m de altura; 48 quilos; nove meses de tratamento; carcinoma hepatocelular de fígado e neoplasia pseudopapilar de pâncreas.

    Não se fazia nenhuma menção ao fato de ter sido filha, neta, esposa, mãe. O que importaria a essa altura? Era um corpo – um número de prontuário.

    Legitima­-se aqui o verdadeiro perfil de uma cidadã despida de suas roupas, de suas joias, dos seus recursos financeiros e do seu patrimônio. Onde nem o orgulho, nem a vaidade são importantes para distingui­-la.

    Ignora­-se as virtudes, a inteligência, a competência, o profissionalismo, a titulação. Ofusca­-se o brilhantismo dos afazeres, das concepções, das obras bem elaboradas. Nem mesmo a personalidade ou o caráter importam.

    Os ruídos foram desaparecendo.

    Desligam­-se os aparelhos.

    Há uma pequena mistura de movimentos desconexos. A enfermeira leva a mão à boca. O médico cirurgião coloca um instrumento sobre a bancada. A médica patologista retira a touca da cabeça.

    A vontade de todos era dizer: "Estou em férias! Não estou aqui!".

    A perda de uma vida continua sendo a perda de uma vida, por segundos, por minutos, por horas, por semanas, por meses.

    Pode até arrogar­-se gestos de compreensão, de solidariedade, impregnados de uma adequada consciência, em saber que todos se esforçaram. No entanto é muito desagradável coexistir, com a sensação de ter fracassado.

    Não há muito o que refinar em uma circunstância dessas.

    Creio que não é necessário perguntar, qual é o pior momento de uma sala cirúrgica?

    Provavelmente é ver alguém morrer e, em segundo lugar, saber que alguém morreu.

    No momento, careço de uma apresentação! Dizem que sou um presságio. Irrito­-me com essa conotação primária. Presságio? Quanta asneira. Não sou mau augúrio e nem sou pressentimento de nada. É difícil conceituar aquilo que não se materializa. Muitos terrestres não acreditam na minha existência ou pensam que apareço acompanhada de fumaça, neblina ou escuridão profunda. Não! Não! Evito parecer excêntrica ou mesmo contraditória. Não faço malabarismos, não giro cabeça e não sou uma aberração. Não tenho forma de esqueleto e muito menos de um ser mumificado. Sou apenas um campo energético. Um fluído. Além disso, não chego fazendo barulho de carroça, de vagão ou de locomotiva.

    Fora da sala cirúrgica, fundindo­-se em uma preocupação intensa, o mesmo homem de olhar impenetrável batia um joelho no outro e torcia os dedos quase sem dar­-se conta do que fazia. Tudo parecia branco, indistinto.

    Um arrepio lhe circundou a nuca no instante em que uma porta se abriu.

    Ele levanta o olhar.

    Vê o médico e uma enfermeira se aproximando, em câmera lenta. Ambos se mostravam sérios, taciturnos. Tentava vislumbrar algum otimismo ou um lampejo de esperança em seus rostos.

    Um zumbido desconfortável lhe atinge o ouvido. É como se o zunido emanasse de uma metalúrgica em velocidade plena, espantando a concentração de tudo, deixando atrás de si um ruído latejante e inevitável.

    A sala de espera parecia mais branca do que era há alguns minutos. Nem se dera conta de que se levantara da cadeira. A sensação de não ver o chão era intrigante. Parecia que boiava sobre uma lama gelatinosa.

    O médico diz várias palavras. A enfermeira confirma. Gesticula. Manifestam­-se em uma linguagem incompreensível. Tenta fixar os olhos em seus lábios para compreender. Não consegue.

    Com certeza não é o seu idioma. Não compreende nada do que falam.

    Quem são eles?

    Sua cabeça gira. Tem vontade de sair dali e ir para longe. Seu estômago se manifesta. Uma dor intensa lhe alfineta o peito. A respiração fica pesada. Tenta falar, mas não consegue. Sua coluna oscila.

    Inconformado, coloca as mãos no rosto.

    O médico toca­-lhe braço. Quer saber se ele está bem? A enfermeira se afasta e retorna com um copo d’água.

    Água? Tenta entender o significado de morrer de forma serena?

    Como se morrer se constituísse na coisa mais sensata a fazer, durante uma cirurgia?

    O médico faz outro gesto e vira as costas. A enfermeira também sai.

    Ele fica com as mãos no rosto, incrédulo, sentindo­-se abandonado. Nem percebeu que sentara novamente.

    Nem viu que a seu lado outra enfermeira o observava.

    Jorravam confusas lembranças da adolescência.

    Era um sábado de sol. Teria sol?

    Percorria as ruas com os amigos Roni e Vaguinho, jogando a bola de vôlei de um para o outro. Eram jovens que, aos finais de semana, reuniam­-se e praticavam esportes, procurando esquecer as dificuldades do cotidiano.

    Passavam a tarde na Praça Noiri, revezando­-se na quadra de vôlei, ora ganhando, ora perdendo, rindo, divertindo­-se.

    Eram pueris.

    Depois do jogo, partiam em velocidade para refrescar­-se no Lago Dinne.

    Próximo ao lago, repentinamente, tropeçou e rolou barranco abaixo em um tombo grotesco. Desconcertado, quase beijava um tênis. Levantou os olhos, viu uma perna roliça, um short, uma blusa de malha e o rosto de uma garota. Os olhos eram grandes e encontravam­-se arregalados pelo susto.

    Ele estremeceu. Tentou falar, mas era como se o seu íntimo gaguejasse. Nem soube se desculpar.

    Lamentava pelo cotovelo esfolado e mal ouvia o riso dos amigos. Levantou­-se meio sem jeito. Desequilibrou­-se. A segunda menina riu. Mas, a de olhos grandes, permaneceu séria.

    Ela pôs­-se a andar na direção oposta e as amigas logo lhe alcançaram. Diminuíram o passo e fizeram um comentário qualquer. Continuaram a caminhar sem olhar para trás.

    A inibição não foi pela queda, mas pelo fato de ter ficado tão próximo de uma garota.

    Passados alguns dias, aquele rosto meigo não lhe saía da cabeça.

    Levou semanas para reencontrá­-la, em uma missa de domingo com um casal de idosos.

    Ficou novamente sem jeito, com o olhar dela, que por alguns segundos cruzou com o seu.

    Um olhar que cruzou com o seu.

    Agora, as lembranças se dissipavam. Sua memória lhe pregava peças.

    Continuava sentando na sala de espera do hospital, sem saber exatamente o que fazer ou para onde ir.

    — O senhor devia tomar esse calmante!

    Calmante?

    Uma enfermeira permanecia a seu lado, segurando uma bandeja com um comprimido e um copo d’água.

    Quem lhe era importante não existia mais. Não queria voltar para casa, um lar vazio.

    Lembranças se avultavam, como se tivessem vida própria.

    Foram várias idas à igreja. Geralmente a menina de olhos grande, concentrava­-se lendo o folheto litúrgico e nem notava a sua presença. Parecia que ele era invisível ou não existia.

    Esgueirava­-se entre os paroquianos, imaginando o quanto precisaria rezar para poder aproximar­-se dela. Por quantos meses ficaria observando os longos bancos da igreja e toda aquela gente separando­-os? Temeu conceber quão rápido giraria o relógio! Quantas estações do ano? Quantos finais de semana? Quantas chuvas?

    Imaginou­-se por séculos, frequentando a missa e procurando por ela. Milhares de anos a fio, buscando a singeleza de um olhar, esperançoso por um sinal ou um sorriso.

    Sorriso?

    Não conseguia deixar de pensar nela, farejava­-a, procurava­-a, espreitava­-a. Seus sentimentos ultrapassavam fronteiras.

    Os amigos o incentivavam.

    Sentia­-se ínfimo, um idiota.

    O próprio colégio o repudiara, por ter limitações de aprendizado. Não conseguia ver­-se como alguém capaz de aprender ou ir em frente. As chances maiores era de continuar sendo um João Ninguém. Sempre ouvira falar que mulheres gostavam de dinheiro, de homens arguciosos, que lhes proporcionassem conforto. Era tudo que lhe faltava. Sua inteligência era limitada. Sua família era pobre. O que poderia oferecer a ela?

    Amor!, dizia Vaguinho. Elas querem amor e sexo.

    Atrapalhava­-se com a vontade de se aproximar e a completa perplexidade de sua ousadia.

    Os dias pareciam voar e nada de novo acontecia.

    Até que em um domingo, conseguiu pela primeira vez encontrar um lugar vago ao lado dela. Coincidência ou não, parecia hipnotizado ao perceber que isso iria acontecer. Ajoelhou­-se, roçando­-lhe o braço. Ficou em dúvida se pedia desculpas. Preferiu fazer de conta que nada havia ocorrido. Ela, no entanto, sorriu, como se esperasse o contato e ele teve vontade de rir também.

    Ela havia notado a sua presença. Aguardava por aquela inquietação doce e sedutora de um sorriso.

    Nem conseguia lembrar direito do primeiro encontro.

    Sua voz, desacostumada a falar com garotas, quase não lhe saiu da boca. Praticamente tossiu as primeiras palavras. Abraçaram­-se. Ficaram mudos. Aninharam­-se um no outro, como se tivessem esperando há séculos por esse momento. Tudo se transformou. A noite ganhou brilho, ganhou cor. Seus olhares se cristalizaram na necessidade, no clamor, na rebeldia do êxtase. Não foi consciente, nem deliberado. Apenas instintivo.

    As lembranças, agora, pareciam rabiscos em sua mente.

    Foram ligeiros espectros da juventude, da rebeldia, do êxtase, da vitalidade, para traços marcantes na idade adulta. A busca de reconhecimento de uma comunidade. Os percalços. Os filhos. A dinâmica de viver a dois, a três, a quatro. Os desafios de viver em família. As regras. Os sinais. As advertências.

    Ficaram juntos. Arriscaram­-se. Enfrentaram dificuldades e no instante em que parecia que tudo ia dar errado, surgia a voz alentadora dela: será uma picada de inseto. Vai inchar, vai doer, mas iremos superar.

    O que parecia ser uma pequena possibilidade tornou­-se realidade. Avolumaram­-se os anseios. Provocaram a sorte. Desafiaram as imperfeições. Não precisaram dizer que era o princípio. Não tiraram mais um da cabeça do outro. Seus corpos foram tocados. Seus corações foram sugados e inesperadamente se transformaram em um casal. Tudo se configurou bem antes dos adultos dizerem que podia.

    ###

    O homem moreno encontrava­-se agora no saguão do hospital, em meio a pessoas que se aglomeravam. Seu sofrimento era palpável, sem que ele tivesse condições de assimilar o rigor daquilo que estava acontecendo.

    Parecia não ter acordado do pesadelo, ouvindo enxurradas de palavras que não conseguia assimilar e sequer amenizavam a sua angústia naquele instante.

    Aturdido, não sabia exatamente o que fazer.

    Um amigo lhe perguntou se havia contatado uma funerária. Dissera que não! Não sabia como fazê­-lo. Era ela quem se preocupava com as coisas da família e quem fazia os contatos necessários à manutenção de todos os serviços.

    A frustração se instalava em sua cabeça confusa. Sua mente limitava­-se ao real, aquilo que dominava. Agora, encontrava­-se sozinho, sem os filhos, sem aquela que o orientava. Não possuía capacidade, nem iniciativa para agir.

    Seu estômago revirava. Sua boca secava.

    Sem que soubesse de onde, apareceu o funcionário de uma funerária. Parecia atencioso. Deu­-lhe os custos do funeral. Não tinha noção se haveria dinheiro suficiente. Perguntou­-lhe se possuíam cadeiras para consertar. Respondeu­-lhe que sim.

    Conversaram a respeito por alguns minutos.

    Alguns olhares se voltaram para o homem abatido, que naquela hora, pensava em consertar cadeiras.

    Enquanto isso, o corpo da mulher encontrava­-se no subsolo do hospital em uma mesa, coberta por um lençol branco, manchado com sangue.

    Carrego essa sina de estar presente na hora derradeira. Às vezes anseio por uma preleção futura de preparação para que a surpresa não seja chocante. Infelizmente, não permitem adicionar esse script às minhas incursões. Por essa razão, a incompreensão e o desalento são inevitáveis. Ela ignorava a minha presença. Era conveniente naquele momento.

    Entraram duas enfermeiras e a olharam. Fizeram um breve comentário e depois sumiram. Chegou mais tarde um dos gestores do hospital com dois homens da funerária.

    A autópsia tinha sido concluída e liberada.

    Colocaram­-na em uma maca acrílica e a conduziram até uma porta lateral externa, onde o carro fúnebre aguardava. O motorista conversava animadamente com seu auxiliar, ouvindo rádio.

    Ao chegarem na funerária um terceiro cidadão apareceu. Dava ordens. Falava alto. Dizia que deveriam conduzi­-la para a sala de preparação de

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