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Luiz Gama contra o Império: A luta pelo direito no Brasil da Escravidã
Luiz Gama contra o Império: A luta pelo direito no Brasil da Escravidã
Luiz Gama contra o Império: A luta pelo direito no Brasil da Escravidã
E-book797 páginas10 horas

Luiz Gama contra o Império: A luta pelo direito no Brasil da Escravidã

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Sobre este e-book

"Luiz Gama contra o Império" marca um novo estágio nos estudos sobre a trajetória e a obra de Luiz Gama, este personagem tão importante de nossa história, nosso maior advogado, nosso abolicionista primeiro e um dos grandes pensadores da formação social brasileira. Bruno Lima dá corpo e nos permite um mergulho profundo no pensamento de Luiz Gama, mas também nas mazelas e nas possibilidades emancipatórias que fazem parte do Brasil." SILVIO ALMEIDA

"Se a História do Brasil fosse um misterioso quebra-cabeça e estivesse faltando uma de suas peças essenciais, você não levaria muito tempo para perceber que este livro é a peça que faltava." TÂMIS PARRON

A Editora Contracorrente tem a satisfação de anunciar o lançamento do livro "Luiz Gama contra o Império: A luta pelo direito no Brasil da Escravidão", de autoria do pesquisador Bruno Rodrigues de Lima, reconhecidamente o maior especialista na obra de Luiz Gama.

A obra, que nasce clássica, corresponde à versão revista e atualizada da tese de doutorado que o autor defendeu na Faculdade de Direito da Johann Wolfgang Goethe-Universität Frankfurt am Main e que lhe rendeu o prêmio Walter Kolb de melhor tese de doutorado da Universidade de Frankfurt e a medalha Otto Hahn de destaque científico da Sociedade Max Planck.

Combinando lições metodológicas de micro história e biografia para examinar a literatura normativo-pragmática e a prática jurídica de Gama nos juízos locais, a obra pode ser lida tanto como biografia jurídica, quanto como uma história do direito do século XIX a partir da vida e obra de um jurista.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento14 de mar. de 2024
ISBN9786553961678
Luiz Gama contra o Império: A luta pelo direito no Brasil da Escravidã

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    Luiz Gama contra o Império - Bruno Rodrigues de Lima

    Será que acreditarás, Ariadne? – disse Teseu.

    – O minotauro mal chegou a se defender.¹

    Jorge Luis Borges

    É conhecida a história do labirinto na literatura ocidental. Em 1947, Jorge Luis Borges deu uma versão sui generis para o antiquíssimo mito grego que conta a vitória do herói ateniense Teseu sobre o minotauro cretense. Em A casa de Astérion, Borges retoma o fio da narrativa mitológica clássica e lança novas luzes sobre o monstro e sua morada. Se para os antigos gregos a horrenda figura de um homem com cabeça de touro que vivia a comer carne humana era a imagem cuspida e escarrada da irracionalidade, Borges deu a ela nome próprio, voz e pensamento – e reconheceu nela a dor da solidão. A besta antropófaga poderia ser misantropa, soberba e até louca, mas, como o filósofo, pensava.²

    Ao gosto dos modernos, agora não seria mais irracionalidade pura e simples – advinda, é de se sublinhar, de um acordo entre o soberano de Creta e o rei de Atenas –, senão a paradoxal racionalidade da loucura (ou a loucura da racionalidade).³ O minotauro seria então um racional que especulava se o seu algoz seria, no fundo, o seu salvador. Como será meu redentor?, pergunto-me. Será um touro ou um homem? Será talvez um touro com rosto de homem? Ou será como eu?

    Por arte de Borges, o minotauro falou. Soubemos então que Astérion questionava a si mesmo e questionava o outro. Mais até: soubemos que a criatura metade homem e metade touro – também meditei sobre a casa – refletia sobre o labirinto.⁵ Após muito correr por todas as suas encruzilhadas, pátios, porões, terraços, cacimbas, canais, corredores e galerias, Astérion constatava que só duas coisas no mundo eram únicas: o Sol, acima, e o labirinto, abaixo. Tudo o mais existia muitas e infinitas vezes – este tudo, porém, amarra Borges, estava dentro do irreplicável labirinto.

    A mão de Borges leva o leitor a ver que lugar e criatura se confundem. Pouco a pouco, Borges funde a casa e seu suserano em uma coisa só. Fica bem que no centro de uma casa monstruosa exista um habitante monstruoso.⁶ A imagem de um passa a corresponder à do outro e, assim, monstro e labirinto combinam e complementam seus significados. Casa e morador, prisão e prisioneiro, ambos os pares se refletem. Nesse sentido, a casa ou a prisão servem como representação do mundo. A casa é do tamanho do mundo; ou melhor, é o mundo.⁷

    ***

    O Brasil do século XIX bem pode ser visto como um labirinto. Não é outra a sugestiva imagem a que Juliana Farias, Flávio Gomes e Carlos Eugênio Líbano Soares recorreram para explicar as desventuras de africanos no Rio de Janeiro imperial.⁸ O labirinto das nações de que nos falam os historiadores da escravidão é o Brasil como centro convergente das milhares de galerias para onde acorreram milhões de africanos, no que veio a formar o maior país escravista da história moderna.⁹ Apenas na primeira metade do século XIX, aportaram no Brasil aproximadamente 5 milhões de africanos.¹⁰ Cada um deles trazia consigo sua língua, religião, hábitos e costumes de sua respectiva nação.

    Numa história que não encontra precedente fácil em outras plagas fora do mundo Atlântico, uma gigantesca multidão de pessoas passou a conviver numa mesma casa, falando diferentes línguas, ainda que tais línguas fossem sistematicamente constrangidas e aniquiladas por uma língua dominante num processo depois qualificado de epistemicídio.¹¹ Benguelas, rebolos, cassanges, monjolos, entre tantas outras gentes das mais diversas nações, tão cruel quanto repentinamente se viram todos no mesmo barco, primeiro, e depois no mesmo solo brasileiro.

    Seria só uma nova Babel, não fosse a variável do realíssimo monstro sanguinário que corria solto pelas galerias do labirinto – os cadáveres ajudam a diferenciar uma galeria das outras – e que no limite era o próprio soberano delas.¹² Estando o Brasil para o labirinto, estava a escravidão para o minotauro. E o herói – para ainda escavar nos sulcos da alegoria – era todo aquele que, com a espada de bronze de Teseu ou o carretel de lã de Ariadne, enfrentava a infeliz criatura sanguinária. Ou mesmo quem tombava pelo caminho para, ironia do destino, servir de sinal para os que viriam depois. Esse é um dos significados da ideia de invenção da liberdade numa sociedade escravista.

    Quando João José Reis cunhou o termo invenção da liberdade, em 1988, o fazia como quem assentava a pedra angular de um edifício. Mais do que um aparente termo genérico, tornou-se chave de leitura e agenda de pesquisa para uma série de estudos sobre as múltiplas formas de se lutar por algum grau de liberdade – fosse ela religiosa, jurídica, econômica ou política – numa sociedade marcada pela escravidão.¹³ Na medida em que os africanos escravizados, ou de outras formas subalternizados, encontravam soluções originais diante do bafio da fera, formavam, com o tempo, uma espécie de repertório de conhecimento e ações que, de forma coletiva ou individual, ora afugentava, ora matava o minotauro de cada dia. As táticas e as estratégias de sobrevivência, num primeiro plano, seguidas daquelas para a aquisição de favores, mercês, posses, haveres e direitos, seriam como invenções que à base de muita tentativa e erro viriam a se constituir num acervo de conhecimento para a resistência do agora povo negro brasileiro.¹⁴

    A ideia de invenção da liberdade é especialmente útil a este trabalho. Tratar das conquistas de liberdade, por precárias ou duradouras que fossem, a partir de seu caráter inventivo e dinâmico, abre portas para se falar de seu aspecto processual, que vincula o tornar-se livre com o tornar-se negro, revelando nessa última categoria o inafastável par semântico da primeira. Como de la Fuente e Gross demonstraram para outras três sociedades escravistas do mundo Atlântico, a construção de marcadores raciais projetava o estatuto jurídico pregresso para o futuro.¹⁵ Assim, o escravizado de ontem, que se tornaria o liberto de amanhã, estaria inevitavelmente nivelado por baixo através da marcação juridicamente construída da cor negra. Todavia, o dever de historicizar a categoria da invenção da liberdade exige enquadrá-la num marco temporal definido. Por um lado, isso refina o seu ganho analítico e, por outro, articula a escala da micro-história ao estrato de tempo histórico corrente. Daí o salto qualitativo de se falar de invenção da liberdade na era do contrabando.

    Tâmis Parron periodiza a escravidão global do século XIX de maneira bastante acurada, classificando as décadas de 1830 a 1850, para o Brasil, como a era do contrabando negreiro.¹⁶ Iniciada a rigor em 1831, com a aprovação da primeira lei nacional antitráfico de escravizados, a política do contrabando negreiro foi uma reação da classe política dirigente que estimulou a entrada ilegal de africanos no país, para com isso aumentar a produção agrícola brasileira.

    Derrogar a lei de 1831 fatalmente colocaria o Brasil numa posição geopolítica enfraquecida, haja vista, por exemplo, a abolição da escravidão nas colônias britânicas em 1833. Ao invés de substituir o marco legal vigente, a elite cafeicultora do eixo Rio de Janeiro-Vale do Paraíba-Minas Gerais e as autoridades centrais do Império apostaram as suas fichas na reabertura das rotas do tráfico transatlântico de escravizados entre a costa da África e o Brasil. A aposta tinha o seu risco político, como os bombardeiros ingleses fizeram lembrar mais tarde, mas era lucrativa. Numa operação forjada em deliberada violação da lei antitráfico de 1831, o Império do Brasil introduziu ilegalmente no seu território aproximadamente 738 mil africanos, além de fornecer meios para que a posse criminosa fosse logo convertida em propriedade juridicamente perfeita e transmissível.¹⁷ Foi – e o próprio Gama na década de 1880 subsidia as bases para tal argumento – um escandaloso crime contra a humanidade.¹⁸

    A partir de 1835, sobretudo até a lei que pôs fim ao tráfico em 1850, a política do contrabando negreiro dominou a agenda do Estado e da sociedade civil no Brasil. Qualquer outro debate ou crise intraimperial do período, sustenta Parron, deve então ser matizado e contextualizado à luz da política do contrabando, que imprimia seu domínio para muitos temas da vida nacional, a exemplo das reformas judiciárias, que centralizariam o poder policial e jurisdicional de milhares de localidades de um país inteiro na esfera de comando do ministro da Justiça e do Império. Nesse sentido, a competência para uma simples nomeação de um delegado de polícia ou juiz de direito seria reservada à autoridade central. Esse exemplo é particularmente revelador: ao mesmo tempo que o Império do Brasil manobrava no parlamento pela reabertura do comércio clandestino de seres humanos africanos, ele também uniformizava o recrutamento e a prática policial e jurisdicional desde o piso da administração pública. Assim, tanto a apuração criminal quanto o processamento penal de inquéritos e ações sobre o tráfico ilegal se subordinariam, em última instância, à vontade ministerial.

    Porém, como a política do contrabando se relaciona com a invenção da liberdade? Como a política do contrabando incidiu no labirinto das nações? E, no limite, o que isso tem a ver com o jovem Gama?

    Em um ajuste de escalas entre a macro e a micro-história, tomando por unidade de análise a vida de Luiz Gama, chega-se a duas premissas especialmente úteis para este capítulo. Primeira: durante as décadas de 1830-1850, o repertório de invenções de liberdade, sobretudo através da polícia e do judiciário, havia sido severamente constrangido pela política do contrabando. E segunda: a entrada maciça de novos africanos, promovida pela política do contrabando, teve por efeito colateral o desarranjo de expectativas de direitos e a fragilização da liberdade de negros livres e libertos para o contexto urbano de Salvador e principalmente de São Paulo. Isso posto, permite-se dizer, por um lado, que as ações judiciais ordinárias de liberdade, em razão do tráfico ilegal ou em razão da reescravização, não pairavam sobre o rarefeito horizonte de expectativas dos africanos e dos ladinos escravizados no Brasil durante a era do contrabando; e, por outro lado, que negros livres e libertos encontraram maiores dificuldades para estabilizar suas comunidades também em função do ingresso da multidão de novos cativos, complexificando, antes mesmo que se constituíssem laços de solidariedade, o já intrincado labirinto das nações.

    É nesse diapasão – geograficamente no miolo do labirinto e historicamente no início da era do contrabando – que nasce Luiz Gama, filho de uma mulher africana que inventou a sua liberdade na cidade de Salvador, Luiza Mahin.

    A seguir, esses tópicos e hipóteses serão lidos em um jogo de escalas entre a micro-história e a perspectiva historiográfica estruturalista, considerando uma série de episódios que marcaram o calendário do Império do Brasil nas décadas de 1830 e 1850, entre eles: a aprovação da primeira lei nacional antitráfico transatlântico de escravizados (1831), que, como dito acima, demarcaria o advento da era do contrabando negreiro, primeiro na sua fase residual, depois na forma do contrabando sistêmico, impactando novas rotas até mesmo no tráfico interprovincial; o Levante dos Malês (1835), a maior revolta de escravizados da história do século XIX no Brasil; a Sabinada (1837), sedição política de importância regional paradigmática; o Golpe da Maioridade (1840), que inauguraria o Segundo Reinado (1840-1889) e definiria um novo ciclo na política imperial; o boom econômico e demográfico do complexo cafeeiro paulista, que faria de São Paulo a mais pujante potência política emergente do Brasil; e a Conspiração do Vale do Paraíba (1848), articulação de escravizados que atemorizou as elites escravocratas do eixo Rio-Vale-Minas às vésperas da lei Eusébio de Queirós, que enfim aboliu o tráfico de escravizados (1850).

    A história da infância e da juventude de Gama perpassa, direta ou indiretamente, todos esses eventos. Não há como se falar de sua mãe, por um lado, sem lembrar o ciclo de insurreições escravas que culminou na Revolta dos Malês. Por outro lado, não há como apresentar seu pai sem tratar da mobilização popular capitaneada pelo dr. Sabino. Nem há, afinal, como se falar de sua própria luta por liberdade sem situá-la no contexto da Conspiração de 1848. Nesse sentido, contar os anos iniciais da vida de Gama em contraste com as forças sociais da época tem a função metodológica de tocar nas mais importantes riscas do relógio histórico através dos ponteiros da curta e da longa duração – indo do mais imediato, o dos segundos, até o mais lento, o das horas –, que, em contínua refração e pareamento, dão a cadência da vida social em diferentes escalas, tanto no local quanto no global.¹⁹

    1.1 A Bahia de Luiz Gama: o pai, a mãe e os lugares em que brinquei com as crianças da minha idade²⁰

    Eu ainda hoje, ao cabo de trinta anos,

    vejo algumas ruas da Bahia,

    as casas demolidas pelo incêndio de 37,

    e os lugares em que brinquei

    com as crianças da minha idade.²¹

    Luiz Gama

    Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu em um sobrado da rua do Bângala, Salvador, província da Bahia, no dia 21 de junho de 1830.²² Gama era filho de um homem socialmente branco de ascendência portuguesa – era fidalgo; e pertencia a uma das principais famílias da Bahia, de origem portuguesa – e de uma mulher negra, africana-livre, da costa da Mina (Nagô de Nação).²³ Embora não se saibam detalhes que levaram à união de pessoas com tradições e realidades tão díspares, o encontro de ambos não é de todo improvável se visto o local em que ele provavelmente se deu, isto é, a cidade de Salvador.

    Àquela época, a cidade que fora a primeira capital do Brasil colonial e era a segunda mais populosa do Império, pertencendo ao grupo das dez maiores do mundo Atlântico, era talvez a cidade mais africana das Américas. Cenário de vivas contradições e desigualdades de toda ordem, Salvador tinha, em meados da década de 1830, 65.500 habitantes. Do total de habitantes que viviam no desordenado traçado urbano da cidade-símbolo do Antigo Regime lusitano-tropical, 42% deles, ou seja, 27.500 habitantes, eram africanos e afro-brasileiros escravizados. Se acrescentarmos à população escravizada negra a população livre ou liberta de cor, na casa de 40% da população, sobe a aproximadamente 80% (52.500 habitantes) o conjunto de homens, mulheres e crianças pretas, pardas, cabras e mulatas, entre outras marcações raciais não brancas.²⁴

    Combinando o cenário da opulência de seu casario com a demografia cosmopolita e brutalmente desigual, vê-se que Salvador já poderia ser chamada pelo epíteto que a consagraria no século seguinte: Roma Negra.²⁵

    No início da década de 1830, a província da Bahia vivia dias tão economicamente miseráveis quanto politicamente conturbados. Por um lado, a crise do açúcar baiano no mercado internacional que vinha desde meados da década de 1820, somada ao iminente fim do tráfico transatlântico de escravos, que tinha na cidade de Salvador uma de suas principais praças comerciais, e à escassez de alimentos no mercado interno, empurravam a Bahia para a completa ruína econômica.²⁶ Por outro lado, a situação política parecia ingovernável. A crise da política da escravidão relacionada à supressão do tráfico transatlântico em 1831, que inauguraria a era do contrabando no Império do Brasil, deslocaria a centralidade da praça comercial escravista de Salvador para o sul do Império, que se reorganizaria de vez no Rio de Janeiro para atender às demandas do complexo cafeeiro do vale do Paraíba paulista e fluminense.²⁷

    IMAGEM 1. Em sua litogravura, Rugendas captura uma cidade brutalmente desigual e racialmente marcada pela presença majoritária de africanos e seus descendentes. Pode-se ver igualmente o traçado urbano desordenado, o rico patrimônio arquitetônico e mesmo uma certa atmosfera de tensões sociais de tipo pré-revolucionário.

    Em síntese, a Bahia se achava metida em uma encalacrada de difícil solução: o mercado internacional buscava açúcar em outras plagas, novamente no Caribe espanhol, francês e inglês, e a política nacional fincava sua prioridade no sul do Império. Ruína econômica e perda de prestígio político resultariam fatalmente em convulsão social na outrora rica e opulenta capital da mais importante colônia do Império português.

    Por sua vez, e dentro da proposta metodológica de articulação de escalas entre macro e micro-história, aquele simples sobrado da rua do Bângala onde nascera Luiz Gama sintetizaria as contradições sociais, raciais e econômicas que davam uma certa singularidade àquela cidade atlântica.²⁸ Do que Gama contou em sua autobiografia, sabe-se que seus pais tiveram parte fundamental em eventos políticos decisivos daqueles tempos.²⁹

    Vejamos primeiro o caso do pai de Gama. Ainda que o nome dele tenha sido propositadamente ocultado pelo autor, o que se sabe é suficiente para concluir que era socialmente branco, de ascendência portuguesa, membro de uma das principais famílias da Bahia (o que significa uma delimitação estamental bastante específica), financeiramente rico, herdeiro colateral de uma grande herança, e que possuía relação de amizade com um tal Luiz Cândido Quintela, que vivia dos proventos de uma casa de tavolagem, na cidade da Bahia, estabelecida em um sobrado de quina, ao largo da praça.³⁰ Gama anotaria outra informação importantíssima para a radiografia social de seu pai: ele tinha sido revolucionário em 1837.³¹

    A anotação categórica do ano não deixa margem à dúvida: Gama se referia à Sabinada. Afinal, foi justamente em novembro de 1837 que eclodiu na Bahia a maior revolta político-institucional de sua história recente. Liderada pelo médico Francisco Sabino (1796-1846), a Sabinada, como ficou conhecida, possuía pautas republicanas, criticava a centralização administrativa da corte, no Rio de Janeiro, e propunha a redivisão de poderes locais através da inclusão de grupos com baixa ou nenhuma representação política – como militares de baixa patente e organizações de negros livres ou libertos.³²

    Entre novembro de 1837 e março de 1838, os sabinos, corruptela dos sediciosos baianos, ocuparam o governo da província e deflagraram um novo arranjo representativo que valorizava a autonomia local frente ao poder central do Rio de Janeiro. No limite, a Sabinada foi um movimento social separatista com valores republicanos de proporcionalidade representativa, expansão da cidadania política e algum nível de tolerância ou igualdade racial.³³

    Talvez pelo caráter difuso, diverso e multifacetado da Sabinada, não é de se estranhar de todo que um fidalgo da elite local como o pai de Gama pudesse ter integrado as fileiras revolucionárias de 1837. Ao contrário, o fato de ter um filho oriundo de um relacionamento conjugal inter-racial fazia dele alguém com algum laço de solidariedade com frações importantes do movimento rebelde, a exemplo do Batalhão de Libertos da Pátria, ou mesmo o batalhão de Eufrásia, destacamentos rebeldes no interior do movimento sabino compostos em sua maioria por negros brasileiros e africanos libertos.³⁴ Ademais, sendo o pai de Gama potencialmente amasiado com a mãe de Gama, Luiza Mahin, o que o testemunho do filho deixa implícito para esse período de tempo, isso significaria que o fidalgo teria mais até do que a simpatia, mas até mesmo algum trânsito na pujante comunidade de africanos livres insurgentes da capital da Bahia.

    O ano de 1837, de fato, foi um divisor de águas. As casas demolidas pelo incêndio de 37, muito provavelmente em razão das batalhas entre rebeldes e legalistas, marcavam a paisagem dos traumas que Gama carregaria pela vida.³⁵ Traumas, afinal, porque foi também em 1837 a última vez em que ele viu sua mãe. Em 1837, conta Gama, depois da revolução do dr. Sabino, veio ela ao Rio de Janeiro e nunca mais voltou.³⁶

    A Sabinada, como se vê, serve de referência espaço-temporal incontornável para Gama contar suas memórias. Daí que seria difícil revisitar a Bahia de 1830, a Bahia de sua infância, sem levar em conta essa efeméride política e social que inclusive é constituída em parte pela ação política de seus pais no interior do movimento rebelde. Seus pais, assim no plural, porque a referência de que Gama nunca mais voltou a ver a mãe depois de novembro de 1837 sugere obliquamente que a própria mãe teria sofrido represálias por ocasião dos eventos da revolta sabina. Essa hipótese é ainda mais forte se levarmos em conta que a repressão à Sabinada foi até mais brutal contra a comunidade livre ou escravizada crioula ou africana, sobretudo contra mulheres africanas.³⁷

    Porém, antes da Sabinada houve outra revolta social que abalou a sociedade baiana e repercutiu na política nacional. Essa revolta joga luz para outro trecho cifrado da autobiografia de Luiz Gama. Trata-se da Revolta dos Malês. Ocorrido em janeiro de 1835, o levante dos africanos de maioria nagô muçulmana, entre outras nações como haussá, tapa e fulani, igualmente islamizadas, marcou época no Brasil como a principal revolta escrava da década no país – senão de todo o século.³⁸

    Numa espécie de jihad nos trópicos, africanos muçulmanos, que constituíam a importante marca de 20% dentre os africanos em Salvador, planejaram a tomada da capital e quiçá a instalação de um improvável califado no Brasil – ou, como arrisca João José Reis, potencialmente um Estado islâmico escravista que imitasse aquele recém-criado no país haussá.³⁹ Do casarão que serviu de epicentro da revolta escrava, sugestivamente nas cercanias do sobrado do Bângala, dezenas de africanos nagôs angariavam apoio e organizavam táticas de luta para o estopim da revolta.

    A manhã de um domingo festivo, como seria aquele 25 de janeiro de 1835, data magna para o catolicismo local, sendo o dia consagrado a Nossa Senhora da Guia, foi o momento escolhido. Parte considerável da cidade estaria em festa, e as autoridades policiais seriam inevitavelmente pegas desprevenidas.

    Porém, os planos rebeldes foram frustrados na véspera por uma denúncia anônima. Na noite de 24 de janeiro, portanto, e antes da chegada do esperado reforço aliado vindo do recôncavo, os malês tiveram que precipitar a execução do plano, e o fizeram de maneira improvisada e desordenada. Em plena noite-madrugada do Ramadã, aproximadamente seiscentos rebeldes, entre malês e aliados de outras nações africanas, sublevaram-se armados em direção à Câmara Municipal da cidade e ao Palácio do Governo da província. No prédio da câmara, que também abrigava a cadeia, os malês tentaram sem sucesso libertar uma liderança sacerdotal de sua comunidade, o alufá Pacífico Licutan, para depois ocupar postos estratégicos da cidade, como barreiras de acesso à cidade e fortes militares. Todavia, nada parecia surtir efeito. Os carcereiros, no prédio da câmara, impediriam o resgate de Licutan, e a polícia, nas ruas e nas praças, combateriam os seiscentos rebeldes africanos, matando setenta deles na mesma noite.⁴⁰

    A devassa começaria imediatamente, e leis de exceção entrariam em vigor ainda naquele ano.⁴¹ Na esteira da devassa sobre os rebeldes malês, o parlamento nacional aprovaria naquele mesmo ano de 1835 a pena de morte para escravizados.⁴² Outra resposta normativa, especialmente para africanos insurgentes, foi a efetivação do instituto penal de sua deportação de volta para a África.

    A par desse breve panorama do Levante dos Malês, retomemos por um instante o fio da autobiografia de Gama. Na carta privada que endereçou a Lúcio de Mendonça, Gama descreveu sua mãe como uma negra, africana livre, da Costa da Mina (nagô de nação), de nome Luiza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã.⁴³

    Aos adjetivos que Gama cunhou à mãe, geniosa, insofrida e vingativa, ele acrescenta que Luiza Mahin trabalhava como quitandeira e que mais de uma vez, na Bahia, foi presa, como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito.⁴⁴ Uma informação a mais: Gama sublinha que sua mãe foi apanhada com malungos desordeiros (...) fora posta em prisão, e que tanto ela como os companheiros desapareceram.⁴⁵ Ele acreditava "que esses amotinadores, e aí inclui a mãe, foram mandados pôr fora, pelo governo, que nesse tempo tratava rigorosamente os africanos livres, tidos como provocadores".⁴⁶

    Se o cotejamento da autobiografia com a historiografia do Levante dos Malês não nos permite uma conclusão taxativa de que a mãe de Gama tenha tomado parte nessa insurreição de escravizados, dele se extraem, indubitavelmente, consideráveis verossimilhanças. Desde o perfil psicológico e as convicções religiosas e políticas traçadas, passando pelo pertencimento étnico-racial, ofício exercido e estatuto civil, todos os qualificativos de Luiza Mahin convergem para o de alguém envolvido no levante malê, o mais importante dos planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito naquela década.⁴⁷

    Mulher africana nagô não cristã, justamente o grupo dominante no levante malê; quitandeira possuidora de estatuto civil livre, o que lhe daria grande mobilidade para articular movimentos políticos pela cidade; mãe de um rebento fruto de relação inter-racial, grau de parentesco que ali se revelava de indiscutível importância para eventual estabelecimento de relações de poder, todas essas identidades cruzadas ou sobrepostas posicionavam Luiza Mahin como ativista política com notável autonomia e singular raio de ação. Assim, é bastante provável que ela figurasse entre os rebeldes da insurreição de janeiro de 1835.

    Todavia, diferentemente da Sabinada, quando Luiz Gama já tinha sete anos de idade, ao tempo do Levante dos Malês Gama contava tão somente quatro anos. Isso explicaria o porquê de ele ter sido tão preciso com a efeméride da revolta separatista – a revolução do dr. Sabino –, mas genérico – insurreições de escravos – com a principal revolta escrava daquele tempo. Porém, isso não significa imprecisão memorialística.⁴⁸ Ao contrário: indica que Gama consultava os eventos de memória, sem recorrer a qualquer apoio textual, por exemplo algum fragmento de jornal que possivelmente revelasse o nome da insurreição escrava que tinha em mente.

    Contudo, o levante malê foi derrotado, dezenas de ativistas mortos, outros condenados à pena de morte, e incontáveis rumaram atordoados perseguidos tanto pela polícia da província quanto pelas milícias senhoriais. Essa parece ter sido a sina de Mahin no ínterim do Levante dos Malês e da Sabinada. Se fora ao Rio voluntariamente, decerto o fez para escapar de algum perigo iminente; se fora por força coercitiva estatal ou senhorial, o cerco havia então se fechado. O fato é que, após os eventos da Sabinada, provavelmente depois do fracasso do movimento rebelde em março de 1838, Mahin nunca mais pôde ver o filho.

    De março de 1838 a novembro de 1840, Gama viveu sob os cuidados do pai. Até que o minotauro faminto encontrou o menino no fim de uma das galerias do labirinto chamado Brasil.

    1.2 O 10 de Novembro de 1840: oito anos de escravidão essa noite

    Oh, eu tenho lances doridos em minha vida,

    que valem mais do que as lendas sentidas

    da vida amargurada dos mártires.⁴⁹

    Luiz Gama

    Na manhã de 10 de novembro de 1840, tudo estava pronto para o patacho Saraiva zarpar do porto de Salvador, Bahia, principal porta de entradas e saídas do norte do Brasil. Seria mais uma viagem da embarcação para o Rio de Janeiro com muita brevidade; mais uma carregada com vários escravos a entregar.⁵⁰

    IMAGEM 2. A pintura de Rugendas dá uma dimensão da vida diária no cais da Bahia. Embora ilustre um desembarque, provavelmente no Rio de Janeiro, a tela do pintor alemão pode ser um meio de se pensar o embarque de Gama no patacho Saraiva. Por um lado, uma imensa maioria de homens negros no trabalho marítimo do cais e, por outro, alguns homens brancos na segurança patrimonial e nos afazeres alfandegários e burocráticos.

    O Saraiva, contudo, teve de esperar. Infestado de ratos, o navio de 152 toneladas dormiu atracado mais uma noite e um dia inteiro no porto de Salvador. A situação do patacho era tão calamitosa que até mesmo um malote de cartas foi roído.⁵¹ Esta notícia tem dado por aqui muito que falar.⁵² A casa comercial responsável pelo negócio avisava que aqueles que tinham cartas despachadas deveriam refazê-las, visto os ratos as ter[em] traçado no saco em que estavam.⁵³ Em protesto indignado, um certo Misantropo fazia analogia dos ratos do Saraiva com a invasão de ratazanas de rabo pelado, que tra[zem] consigo as suspensões das galanterias da Constituição ou então a supressão da liberdade do pensamento.⁵⁴ O autointitulado misantropo provavelmente não sabia, mas o Saraiva ficaria tristemente famoso por outra ratada. Junto ao malote de cartas e às ratazanas no porão do patacho que partia carregado de escravos, havia um menino de dez anos de idade.⁵⁵ Seu nome era, ou viria a ser, Luiz Gonzaga Pinto da Gama.

    Como um menino negro livre fora parar no porão de um patacho que fazia as vezes de tumbeiro? O que explicaria a cena perversa? Foi a mão de seu próprio pai, e aqui tanto faz chamá-lo de pai ou de minotauro..., que o pôs no porão do navio do contrabando. O pai de Gama, reduzido à pobreza extrema – ao que parece, decorrente de dívidas de jogatina –, foi ao porto da Bahia naquele mesmo 10 de novembro e vendeu como seu escravo o próprio filho.⁵⁶

    O encadeamento dos eventos leva a crer que o fidalgo contraíra a dívida e teve na venda do filho o modo perverso de saldá-la. Embora tenha contado a passagem do ato da escravização de modo breve, provavelmente pela dor de rememorar o trauma, Gama fez questão de sublinhar que o pai fora a bordo do patacho Saraiva em companhia de Luiz Cândido Quintela, seu amigo inseparável e hospedeiro, que vivia dos proventos de uma casa de tavolagem (...) estabelecida em um sobrado de quina, ao largo da praça.⁵⁷

    Longe de anedótica, a anotação cumpre a função de reforçar a fidedignidade do relato. E assim funciona na medida em que se verifica que Quintela de fato existiu e fora realmente um tipo obscuro ligado a variados trambiques e tavolagens, isto é, jogatinas, rifas e loterias que no mais das vezes corriam ilegalmente.⁵⁸ Fique certo que eu sou do antigo rojão, esbravejou certa feita Quintela contra rumores que corriam sobre a lisura seus negócios.⁵⁹ Na sequência, emendava uma propaganda de sua loteria e uma curiosa citação que bem deixava à mostra o seu trânsito pelo mundo lusco-fusco da cidade. Se ele subia o tom da conversa, dizia Quintela, era porque quando o burro é coxo, o palavreado é xoxo.⁶⁰

    Foi esse mesmo verborrágico Quintela, de negócios e palavras duvidosas, quem acompanhou o fidalgo de uma das principais famílias da Bahia a praticar um dos atos mais cruéis que um pai pode exercer contra o seu filho: escravizá-lo. E foi assim, num trambique jurídico, sem título legal algum, sem escritura de venda, através da fraude documental, incorrendo no tipo criminal do artigo 179 do Código Criminal do Império, que rechaçava a hipótese de redução de pessoa livre ao cativeiro, e incorrendo moralmente naquilo que Gama definiria mais à frente como torpeza de branco, que o pai de Gama, convertido em minotauro, o vendeu a bordo do patacho Saraiva.⁶¹

    Naquela noite sem fim, Gama viveu um pesadelo. Um pesadelo que duraria oito anos. O Rio de Janeiro seria só a primeira escala da longa travessia.

    1.3 Do cais do Valongo ao velho oeste paulista

    O patacho Saraiva atracou no cais do Valongo do Rio de Janeiro na tarde de sábado, 21 de novembro de 1840.⁶² Ao todo, foram dez dias inteiros de viagem. Na capital do Império, a maior cidade escravista das Américas, o menino Luiz viu uma cidade duas vezes maior que a sua Salvador, com um casario opulento e uma presença africana tão marcante quanto a de sua cidade natal.⁶³ Às cinco horas da tarde daquele mesmo domingo, o garoto entrava na casa do cerieiro português de nome Vieira, que, além de proprietário de uma loja de velas situada à esquina da rua do Sabão com a rua da Candelária, também servia como contrabandista no lucrativo tráfico negreiro interprovincial.⁶⁴

    A indicação de Gama de que fora com muitos outros à casa de Vieira, e que esse era um negociante (...) que recebia escravos da Bahia, à comissão, sugere que o português não era um mero intermediário, mas sim alguém envolvido de corpo e alma tanto com as redes de crédito do comércio negreiro, quanto com o tráfico interprovincial de escravos.⁶⁵ Aliás, a expressão à comissão utilizada por Gama não é sem propósito. O emprego dela é revelador e significa que Joaquim Vieira da Cunha era um entre as centenas de agentes trabalhando no ramo do crédito, mas também operando no mercado de varejos, como lojas de armarinho e armazéns de secos e molhados e, principalmente, vendendo, comprando e alugando escravos e imóveis.⁶⁶ Por negociar em comissão, o comerciante Vieira certamente gozava de crédito na praça – crédito que significava, no limite, para comprar e vender negros, o mais seguro dos investimentos, independentemente da pretensa boa-fé de seus títulos.

    Ao mapear as imbricações entre crédito e propriedade escrava no Rio de Janeiro das décadas de 1830-1860, Clemente Penna observa que praticamente todos os que negociavam pelas ruas e casas comerciais da cidade no período estiveram, ao menos indiretamente, envolvidos nos negócios da escravidão.⁶⁷ Na maior cidade escravista das Américas, em todas aquelas décadas, explica Penna, quase todas as transações comerciais e mercantis eram feitas através de um pulverizado e dinâmico mercado creditício privado não institucional. Entre diversos atores sociais particulares, essas operações de crédito envolviam casas comerciais, escritórios e casas de comissão e de câmbio, varejistas, lojas de penhor e leiloeiros.⁶⁸ Nesse emaranhado de agentes e companhias envolvidos na cadeia creditícia de deveres e haveres da compra e venda de propriedade escrava, a casa de comissão se destacava como entreposto de excelência para a fluidez do comércio negreiro, fosse em escala transatlântica ou interprovincial.⁶⁹

    IMAGEM 3. A cidade inteira passava pela rua Direita, centro histórico do Rio de Janeiro, uma das principais artérias da capital do Império. Muito provavelmente, o pequeno Luiz Gama também passou por ela na via crucis que ainda o levaria a São Paulo.

    No caso de Vieira, a fluidez da negociação à comissão se revela nitidamente nos eventos que sucedem ao desembarque do Saraiva no cais do Valongo. Tão somente alguns dias depois de receber dezenas ou mesmo mais de uma centena de escravizados procedentes da Bahia, Vieira os vendeu, repassou em consignação, ou intermediou a venda, mediante comissão, para um fazendeiro do vale do Paraíba paulista. Nesta casa, isto é, na casa de Vieira, relembra Gama, em dezembro de 1840, fui vendido ao negociante e contrabandista alferes Antonio Pereira Cardozo.⁷⁰ Tamanha a liquidez do mercado de escravos à comissão, apenas algumas semanas de desembarcado no Rio, o pequeno Gama foi revendido para São Paulo. Este alferes Antônio Pereira Cardozo, continua Gama, comprou-me em um lote de cento e tantos escravos; e trouxe-nos a todos, pois que era este o seu negócio, para vender nesta província.⁷¹

    O cuidado na exposição fática – que, no fundo, é a denúncia de um crime imprescritível, ainda que dirigida à posteridade – pode ser percebido no detalhamento minucioso da cadeia de haveres e deveres de sua própria tragédia, isto é, do encadeamento de negócios jurídicos a que a venda criminosa no porto de Salvador, a bordo do Saraiva, deu início. Como se viu, o negociante e contrabandista Cardozo comprou o menino de dez anos de idade e mais uma centena de pessoas escravizadas não com a pretensão de mantê-los sob seu domínio senhorial, mas de revendê-los sem demora em outra praça. Para isso, o contrabandista do vale do Paraíba paulista armou uma caravana do Rio para Santos, primeiro, e depois de Santos para o sertão paulista. O primeiro trecho correu por mar e o segundo a pé, num trajeto que somou ao todo aproximadamente longos trezentos quilômetros, contando a subida da serra do Mar até São Paulo, depois Jundiaí e Campinas, retornando, finalmente, para o centro da cidade de São Paulo.

    Lúcio de Mendonça, seu amigo e confidente, descreveria a cena da travessia, contrastando-a com outra futura, que ele mesmo presenciara:

    A pé, com 10 anos de idade, fez Luiz toda a viagem de Santos até Campinas. Escravo, saído de uma infância trágica, descalço, desamparado, faminto, subiu entre um bando de escravos aquela áspera serra do Cubatão, por onde, anos depois, não há muitos anos, lembra-me que passamos juntos os dois, eu estudante que voltava para as aulas, ele advogado que voltava da corte, abastado, jovial e forte, com um cesto de frutas para a família, repotreado no assento macio de um dos ricos vagões da companhia inglesa.⁷²

    Mas as agruras da travessia não paravam nas inóspitas condições enfrentadas no percurso. Curiosamente, eventos de singulares contornos jurídicos sobressaem na narrativa autobiográfica, como se os elos das cadeias de haveres e deveres servissem para a recuperação da verdade histórica. Ao longo do trajeto, o contrabandista Cardozo tentou vender Gama em pelo menos três diferentes praças de comércio negreiro. Em todas elas, o pequeno Gama fora peremptoriamente recusado como opção de compra. O motivo? É ele quem explica: Fui escolhido por muitos compradores, nesta cidade [São Paulo], em Jundiaí e Campinas; e por todos repelido, como se repelem as cousas ruins, pelo simples fato de ser eu baiano... Valeu-me a pecha!.⁷³

    Em outra marcação de inegável conotação historiográfica, ainda que levemente anedótica, Gama relembra como se deu a última das recusas. Recapitulando a sua potencial venda para um importante cafeicultor de Campinas, Gama remonta o diálogo que travou com o venerando e simpático ancião, que era pai de dois gêmeos de idade próxima à sua – um deles viria a ser presidente da província de São Paulo, e Gama se dirigiria a ele como seu respeitável amigo.⁷⁴ O fazendeiro Souza Aranha, depois de haver-me escolhido, Gama rememora, afagando-me, disse:

    – Há de ser um bom pajem para os meus meninos; dize-me: onde nasceste?

    – Na Bahia, respondi eu.

    – Baiano!?… exclamou, admirado, o excelente velho. Nem de graça o quero. Já não foi por bom que o venderam tão pequeno!…⁷⁵

    Mas como pode um único fator ter servido para compradores de escravos em três diferentes praças comerciais decidirem da mesma forma? Qual seria a implicação de comprar um escravizado baiano e pô-lo a trabalhar nos cafezais paulistas? Ou visto pelo ângulo da criança: qual seria essa pecha de ser baiano que ele tão cedo e cruamente observava? Carregaria ele essa pecha a vida toda?

    Após o ciclo das revoltas escravas baianas das décadas de 1820 e 1830, que culmina no Levante dos Malês, em 1835, o africano ou negro brasileiro escravizado da Bahia passou a ser visto, especialmente no sudeste do Império, como audacioso, subversivo e politicamente articulado.⁷⁶ Nota-se, portanto, que o fazendeiro Souza Aranha, de Campinas, e seus pares de São Paulo e Jundiaí recusaram o menino baiano por compartilharem do conhecimento senhorial do perigo potencial de introduzir um baiano em suas lavouras de café. No que estavam certos, pois o escravizado baiano era, em síntese, alguém que possuía conhecimento de lutas e estratégias coletivas de resistência à escravidão, acumulado ao longo de gerações, que se aplicava tanto ao ambiente citadino quanto ao das plantations, como era o caso do complexo açucareiro do recôncavo.

    Sem comprador interessado nem mesmo no mercado de escravos com a maior demanda do Império, as plantations cafeeiras de São Paulo, restou ao contrabandista Cardozo tomar Gama e outro escravizado baiano, de nome José, sapateiro, como propriedade escrava sua.⁷⁷ Assim, naquele mesmo dezembro de 1840, ou no início de janeiro de 1841, Gama se via na cidade de São Paulo, especificamente no endereço em que passaria os próximos oito anos de sua vida como escravizado, à rua do Comércio, nº 2, sobrado, perto da igreja da Misericórdia.⁷⁸

    Contudo, o pequeno baiano estaria determinado a quebrar aquela nefasta cadeia de haveres e deveres iniciada na criminosa venda a bordo do patacho Saraiva. Conforme explica Clemente Penna, [c]ada homem, mulher e criança escravizado na África e vendido no Brasil deu início a uma cadeia de haveres e deveres que gerou penhores, notas promissórias, hipotecas, letras e endossos.⁷⁹ Se não quisermos recuar até a escravização de Luiza Mahin, ainda na África, para periodizar acuradamente o primeiro negócio jurídico da cadeia de haveres e deveres que inevitavelmente seguiria a repercutir no estatuto civil e nas expectativas de direitos do adulto Gama, como filho natural de africana livre que era –, fiquemos apenas com a venda de Gama pelo pai, em 10 de novembro de 1840. Dela em diante, até ser estabelecido como escravo no sobrado da rua do Comércio, em São Paulo, um bolo de papéis foi produzido para conferir legalidade àquele que nunca poderia ter sido propriedade escrava.

    Do primeiro elo da cadeia de haveres e deveres, a escritura de venda fraudulenta, passando pela emissão de passaporte viciada na alfândega do porto de Salvador e pela receptação ilegal do comandante do Saraiva; o desembarque irregular no Valongo chancelado pela autoridade portuária no Rio de Janeiro, bem como a receptação da propriedade escrava à comissão pelo português Vieira, com suas inevitáveis notas, letras, penhores e endossos, até à revenda em lote para o contrabandista do vale do Paraíba e os impostos de comércio interprovincial recolhidos pelo mesmo Cardozo, todos os eventos do negócio jurídico eram plenamente rastreáveis pela inteligência detetivesca. Quando Gama falar, mais à frente, em provas inconcussas de sua liberdade, não serão outras senão a papelada da cadeia de haveres e deveres que o prendiam ao contrabando – que era, no fim das contas, a própria propriedade escrava.⁸⁰

    Certamente não foram as velas, ou o tabaco, o sal ou a piaçaba da Bahia que enriqueceram o português Vieira. Nem foi o café que enriqueceu o fazendeiro Cardozo. Vieira vendia velas e revendia miudezas, sim, mas o seu negócio mesmo era vender escravos à comissão e a contrabando para o complexo cafeeiro paulista, fluminense e mineiro. Cardozo plantava café, sim, mas seu negócio mesmo era vender gente escravizada na base do contrabando.

    Àquele tempo no Brasil, o contrabando unia a todos.

    1.4 A São Paulo de Gama: um menino preto na irmandade dos homens pretos do Rosário

    A cidade de São Paulo era diferente de tudo o que Gama conhecia. Ainda que ele fosse apenas um garoto de dez anos de idade, o pequeno Luiz conhecia muito bem Salvador e tinha estado recentemente por algumas semanas no Rio de Janeiro. De algum modo, ele conhecia as duas maiores cidades do país que, não por acaso, eram as duas maiores cidades em população africana nas Américas. Rio e Salvador possuíam uma média de 75% de população negra no cômputo geral de suas respectivas populações, sendo 40% de negros escravizados e outros 35% de negros livres ou libertos. Se Salvador somava 65.500 mil habitantes e mais de 42 mil deles eram africanos ou de origem africana, o Rio de Janeiro contava 137 mil habitantes, sendo aproximadamente 100 mil de gente africana ou de origem africana.⁸¹

    Por sua vez, São Paulo era apenas um velho burgo de 22 mil habitantes. Desse total, 5.300 eram africanos ou crioulos escravizados e, numa estimativa razoável da população livre e liberta de cor, têm-se aproximadamente outras 3 mil pessoas de origem africana na cidade (não mais que 20% da população geral).⁸² Diferentemente da Roma Negra que era a portuária e febril Salvador, São Paulo tinha uma comunidade negra escravizada, livre ou liberta consideravelmente menor, o que estreitava avenidas de liberdade como alforrias, ações de liberdade, coartações, fundos comunitários informais de emancipação, ou mesmo canais institucionais de reclamação de direitos.⁸³

    Certamente por instinto de sobrevivência no território hostil que era São Paulo, o pequeno Luiz logo teve de estabelecer laços de solidariedade. É bem possível que o sapateiro José, "repelido como refugo" por ser baiano junto com Gama, tivesse sido uma espécie de primeiro protetor na senzala do sobrado do contrabandista Cardozo.⁸⁴ Essa hipótese ganha sentido se virmos que a sapataria foi um dos ofícios que Gama logo aprendeu e exerceu por anos.⁸⁵

    IMAGEM 4. Ambas as fotografias mostram uma parte da cidade de São Paulo que Gama passou a conhecer muito bem. Na fotografia de cima, a rua do Comércio, onde se localizava o sobrado em que Gama viveu escravizado por oito anos. Abaixo, trecho da esburacada rua da Cruz Preta, com a igreja da Misericórdia ao fundo, justamente ao lado do sobrado da rua do Comércio.

    Certa feita, no clímax de uma acalorada e agressiva discussão na imprensa sobre um julgamento no Tribunal da Relação de São Paulo, um oponente do já célebre advogado Gama trouxe a público o seu passado de sapateiro. Dizia o serralheiro alemão Adolfo Sidow que aceitaria algumas lições de direito de Gama, desde que este, recordando-se de tempos idos, lhe desse algumas lições de sapataria.⁸⁶ No mesmo dia, Gama escreveu sua réplica. Ao contrário de ocultar ou tangenciar o passado de sapateiro, Gama assumiu orgulhoso o ofício de outrora, como se o aprendizado da sapataria continuasse vivo na prática forense do advogado. Fui sapateiro, sr. Sidow, (...) fiz sapatos para alguns parentes de S. S. [Sua Senhoria], ao que sublinhava, todavia, ser há muito tempo "advogado e bem conhecido nesta cidade de S. Paulo".⁸⁷

    Como se nota, Sidow e Gama eram velhos conhecidos. Uma vez que o serralheiro tocava em acontecimentos de mais de trinta anos, Gama não se fazia de rogado, acrescentando o memorável detalhe de que fizera sim sapatos, inclusive para os parentes do serralheiro alemão. A reação de Sidow foi ainda mais ríspida – para não dizer covarde. Ao rebater a assertiva de Gama de que fizera sapatos para os parentes dele, Sidow, o serralheiro, devolveu dizendo que a ele não surpreendia o fato de ele ter sido sapateiro de seus parentes, já que nunca encontrou os seus para fazer obra mais perfeita.⁸⁸

    Fora das raias da polêmica, que aliás Gama sobejamente replicou até dar a última palavra, a escabrosa ofensa de Sidow tem, do ponto de visto historiográfico, duplo valor para efeito de checagem a contrapelo da autobiografia de Gama. Primeiro, porque assevera categoricamente, antes de qualquer outro registro escrito, que Gama foi sapateiro; e, segundo, porque dá por pacífico o fato de que Gama nunca encontrou os seus [parentes].⁸⁹ Vindas da pena de um agressor desinteressado de qualquer encômio laudatório da trajetória de Gama, as afirmações de Sidow passam a se constituir em bem-vindo aparato crítico para a leitura da autobiografia. Paradoxalmente, o ataque que pretendia desmoralizar Gama no calor do debate converteu-se em elemento factual que comprova a narrativa autobiográfica em dois de seus pontos sensíveis – a separação perpétua da família e o exercício do ofício de sapateiro.

    Voltando a esse ponto da sapataria, outra afirmação merece destaque. No meio da polêmica na imprensa, Gama puxa outro evento de memória, que dá significativas repercussões historiográficas para se examinar a sua trajetória, especialmente na década de 1840. Vejamos: É verdade, sr. Sidow, que fui sapateiro, dizia Gama, acrescentando como que despretensiosamente que ali na travessa do Rosário ainda mora o velho e honrado Marcelino Pinto do Rêgo, meu amigo e meu digno mestre.⁹⁰ A essa altura, está duplamente provado que Gama foi sapateiro. O que essa passagem curta e eloquente registra categoricamente é que Gama teve um mestre sapateiro, ele estava vivo e tinha endereço certo. Isso significa que em 1877, época da polêmica com o serralheiro Sidow, havia um preto velho na cidade que não só conhecia, mas que fazia quase quarenta anos ensinara a arte da sapataria para o pequeno menino que se tornou um dos mais renomados advogados da cidade.

    Mas quem era esse preto velho a quem Gama dedicava o seu elogio difícil? Mais até, quem era aquele senhor a quem Gama reverenciava em testemunho público de gratidão? Pois mestre Marcelino Pinto do Rêgo foi sapateiro por décadas, depois faxineiro da secretaria do tesouro da província, eleitor convicto do Partido Conservador e um religioso católico bastante conhecido na cidade.⁹¹

    Nascido na primeira década do século XIX, provavelmente um pouco antes de 1808, mestre Marcelino viveu para mais de oitenta anos.⁹² Quando morreu, em setembro de 1888, o seu obituário registrava, além de sua filiação política, o fato de que por muito tempo exerceu escrupulosamente o cargo de sacristão na igreja do Rosário.⁹³ Puxando esse fio, chega-se a ver que mestre Marcelino foi membro graduado de diversas irmandades religiosas, entre elas a Irmandade de São Miguel e Almas da Sé, na qual servia como irmão de mesa; a Irmandade do Glorioso São Benedito, também como irmão de mesa; e, finalmente, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, na qual serviu tanto como irmão de mesa, quanto como procurador.⁹⁴

    E foi exatamente nessa mesma igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, vizinha de sua casa, na travessa do Rosário, [nº] 9, que mestre Marcelino, repisa-se a valiosa citação, por muito tempo exerceu escrupulosamente o cargo de sacristão.⁹⁵ Se esse muito tempo inscrito no obituário se estendia até o início de 1841, o que é bastante provável, infere-se que mestre Marcelino teria testemunhado a chegada do pequeno Luiz a São Paulo, como também teria assistido à sua fuga do cativeiro e aos principais passos de sua excepcionalíssima ascensão social e profissional.⁹⁶ Nesse sentido e considerando o reconhecimento público por Gama, manifesto na expressão honrado Marcelino Pinto do Rêgo, meu amigo e meu digno mestre, é bastante verossímil que o velho sapateiro tenha sido uma espécie de protetor de Gama até a sua maioridade.⁹⁷ É possível ir ainda mais longe: mestre Marcelino deve mesmo ter exercido funções paternas ou de apadrinhamento na disciplina e no aconselhamento do discípulo.

    Sendo o sacristão da igreja do Rosário dos Homens Pretos alguém tão importante para a biografia de Gama, cumpre ver um pouco mais de perto alguns aspectos da vida litúrgica e civil dessa confraria religiosa que tem suas origens em São Paulo a princípios do século XVIII. O que é preciso lembrar neste momento, a advertência permanece atual, é que a igreja de Nossa Senhora do Rosário se deveu à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, que reunia pobres pretos de São Paulo numa associação para promover a vida cristã.⁹⁸

    A irmandade era de importância vital para a cidade. Leonardo Arroyo pontuou que os negros do Rosário tiveram ação destacada na cidade.

    A Irmandade tinha uma porção de iniciativas. Parece mesmo que desenvolveu papel de relevo na paisagem escravocrata paulista e paulistana. Uma entidade religiosa e social admiravelmente preparada para o bem comum dos escravos – o da sua libertação.⁹⁹

    Embora não se tenham estudos aprofundados sobre os canais de libertação (como fundos de ajuntamento de pecúlio para fins de alforria), estabelecidos pela irmandade dos pretos do Rosário de São Paulo, sabe-se bem que em outras regiões do país as irmandades negras do Rosário desempenharam diligentemente esse papel de favorecer a libertação de seus confrades. É o bem documentado caso das irmandades dos homens pretos em diversas igrejas de Salvador, assim como o das irmandades de pretos e pardos do Rio de Janeiro e de Pernambuco.¹⁰⁰ Como em outras sociedades escravistas atlânticas, as confrarias religiosas de negros foram, também em São Paulo, dos mais importantes espaços comunitários para o socorro mútuo, espiritual e civil, bem como para a liberdade de africanos e negros brasileiros.

    IMAGEM 5. Fotografia da rua do Rosário, tendo, ao fundo, a igreja do Rosário dos Homens Pretos. Nessa rua, Gama viveu parte importantíssima de sua vida em São Paulo.

    Com o passar do tempo, a igreja dos pretos, como também era conhecida, tornou-se ponto de referência no traçado urbano de São Paulo, passando a nomear logradouros como o largo em sua frente e a rua que vai do pátio da Sé para Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos.¹⁰¹ Dada a incontornável importância que a igreja e a irmandade dos pretos iam assumindo na cidade, vale observar como a comunidade negra se constituiu ao redor de sua igreja. Em volta da igreja, em casinhas humildes, anota Arroyo, residiam negros, ex-escravos, que viviam de suas quitandas.¹⁰² Antes de Arroyo, Antonio Egídio Martins tratou do tema em maiores detalhes. A descrição que ele dá do entorno da igreja do Rosário é preciosa para pensarmos a cidade negra de São Paulo. Martins destaca que as casinhas contíguas à igreja e ao cemitério dos pretos eram habitadas

    por casais de pretos africanos, os quais, depois que conseguiam libertar-se do cativeiro, se estabeleciam no mesmo prédio em que residiam, com quitanda, na qual vendiam doces, geleias, frutas, legumes, hortaliças, batata doce, mandioca, pinhão e milho verde cozidos, pamonha (milho verde ralado e cozido na própria palha também verde),

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