Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Sessões Descontínuas v. 1: Lições de História no Cinema Brasileiro
Sessões Descontínuas v. 1: Lições de História no Cinema Brasileiro
Sessões Descontínuas v. 1: Lições de História no Cinema Brasileiro
E-book281 páginas3 horas

Sessões Descontínuas v. 1: Lições de História no Cinema Brasileiro

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Este livro comenta filmes brasileiros à luz do Conhecimento Histórico. São obras feitas no país onde vivemos, sobre esse mesmo país. Alguns são obras-primas de autores e tradições canonizados. Outros, mais humildemente, remetem a diretores e projetos menos clássicos que provocam reflexões sobre o país onde surgiram. Todos são pedaços reflexivos de Brasil, ajudam a entender a História do país, tanto o que é considerado tema histórico clássico quanto dimensões de experiência social ainda pouco abordadas como historicidades. Os filmes, por diferentes caminhos, fazem parte da experiência cultural de diferentes grupos sociais sob o signo de curiosidade, lazer e aprendizagem informal. Parar para pensar sobre eles é uma tarefa que coloca cada um de nós diante de fazeres dos próprios filmes e das Histórias que eles percorrem como temas e espaços para interferência crítica, nem sempre consciente, trazendo-a para a reflexão sistematizada. Percorrer diferentes gêneros cinematográficos nacionais é refletir sobre múltiplas formas de o país se fazer. Através de seus recursos de linguagem, os filmes convidam os espectadores a pensarem sobre o Brasil e seus trajetos, a enxergarem outras Histórias pouco discutidas. Janelas abertas para a História, janelas abertas pela História: cada filme é uma oportunidade de se repensar os mundos que ele inventa e aborda. Vale a pena ver esses mundos, através dos filmes, com vontade de livre interpretação.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de mai. de 2020
ISBN9788562938405
Sessões Descontínuas v. 1: Lições de História no Cinema Brasileiro

Leia mais títulos de Marcos Silva

Autores relacionados

Relacionado a Sessões Descontínuas v. 1

Títulos nesta série (2)

Visualizar mais

Ebooks relacionados

História para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Sessões Descontínuas v. 1

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Sessões Descontínuas v. 1 - Marcos Silva

    Marcos Silva

    SESSÕES DESCONTÍNUAS

    Volume 1

    Lições de História no Cinema Brasileiro

    70edicao

    SESSÕES DESCONTÍNUAS

    LIÇÕES DE HISTÓRIA NO CINEMA BRASILEIRO

    © ALMEDINA, 2020

    AUTOR: Marcos Silva

    EDITOR DE AQUISIÇÃO: Marco Pace

    REVISÃO: Juliana Leuenroth

    DIAGRAMAÇÃO: Almedina

    DESIGN DE CAPA: Roberta Bassanetto

    ISBN: 9788562938405

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

    (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)


    Silva, Marcos

    Sessões descontínuas: lições de história no cinema brasileiro / Marcos Silva. – São Paulo: Almedina

    Brasil, 2020.

    Bibliografia

    ISBN 978-85-6293-840-5

    1 . Cinema 2. Cinema – Histórias, enredos, etc

    3. Cinema brasileiro 4. Filmes brasileiros – História

    5. Historia do cinema brasileiro I. Título.

    20-34979                  CDD791.430981


    Índices para catálogo sistemático:

    1. Cinema brasileiro: História 791.430981

    Maria Alice Ferreira – Bibliotecária – CRB8/7964

    Este livro segue as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990).

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro, protegido por copyright, pode ser reproduzida, armazenada ou transmitida de alguma forma ou por algum meio, seja eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópia, gravação ou qualquer sistema de armazenagem de informações, sem a permissão expressa e por escrito da editora.

    Maio, 2020

    EDITORA: Almedina Brasil

    Rua José Maria Lisboa, 860, Conj. 131 e 132, Jardim Paulista | 01423-001 São Paulo | Brasil

    editora@almedina.com.br

    www.almedina.com.br

    Para Gilberto Stabile e Moacy Cirne,

    Mestres do Cineclube Tirol (Natal, RN).

    APRESENTAÇÃO

    Entre o cineclube (a cinemateca, a sala de cinema, o espaço residencial) e a sala de aula – ver filmes brasileiros

    Sou historiador e professor de História. Assisti a esses filmes em várias ocasiões ao longo de minha vida. Por diferentes motivos, cada um me deixou uma memória especialmente forte, donde escrever sobre eles. Muitos dos filmes aqui comentados foram discutidos por mim em atividades de pesquisa e em sala de aula, com alunos do Ensino Fundamental à Pós-Graduação. Noutros casos, abordei-os em palestras e atividades similares. Alguns dos escritos tiveram uma primeira divulgação em periódicos impressos (Jornal da Tarde, O Poti) ou eletrônicos (Olho da História, Teorema da Feira, Substantivo Plural e GGN – O jornal de todos os Brasis). Penso que ainda podem ser debatidos por outros pesquisadores, professores e seus alunos, bem como merecem a atenção do espectador em geral, visando à maior compreensão do mundo de que tratam e que também constroem, onde foram feitos e circulam.

    Dentre os títulos abordados, há obras-primas como Vidas Secas, dirigido por Nelson Pereira dos Santos. Outros são reveladores de talentos um pouco ou muito mais modestos em relação àquele (tão gigantesco!). São, todavia, instigantes – às vezes, até por oposição a seus encaminhamentos –, e trabalham com arquétipos de grande força social, como novas modalidades de fábulas ou contos de fadas para pessoas de diferentes faixas etárias. Também há exemplos de filmes com grande impacto junto à opinião pública, verdadeiros acontecimentos de cinema, que homens e mulheres de diferentes grupos sociais comentaram e continuam a comentar apaixonadamente.

    Todos retornam à minha lembrança, inclusive na atividade docente e na pesquisa em História, dotados de capacidade indagadora sobre o mundo ou de desafios a essa capacidade.

    Comecei a ver filmes na infância, em salas de cinema de Natal, RN, com tela grande, na segunda metade dos anos 1950, levado principalmente por minha mãe, Amélia Pereira das Neves, junto com minha irmã, Sônia Maria da Silva. Assisto a filmes, hoje, mais em vídeo, numa época em que as telas de televisão se aproximam do tamanho atual das de cinema, como observou o grande diretor italiano Michelangelo Antonioni.

    Falar desses filmes tem um sabor de memória pessoal. Mas também remete a um tempo em que o cinema era referência intelectual e estética para diferentes camadas da população. Meu pai, Antonio Ferreira da Silva, fotógrafo ambulante, sempre recontava alguns filmes como exemplos de sentimentos: era o caso de Os brutos também amam, de George Stevens. Fui vizinho de um operário de idade semelhante à de meu pai, Geraldo Timóteo da Silva, que comentava filmes americanos, citando diretor e produtor, além do elenco. Procuro dialogar com parte dessa memória que é, também, coletiva.

    Ao mesmo tempo, repasso minha formação de juventude, no Cineclube Tirol (Natal, RN) e nas sessões do Cinema de Arte que ele promovia. Fazia parte desse universo o ato de assistir às exposições orais que colegas muito mais experientes do cineclube faziam sobre filmes clássicos ou então recentes, seguidas de debates.

    Depois, já em São Paulo, assisti a filmes raros nas programações do Museu Lasar Segall, de cineclubes, da Fundação Cinemateca Brasileira e de cinemas comerciais que relançaram obras muito importantes da cinematografia internacional (Alfred Hitchcok, John Ford, Ingmar Bergman, Jean Renoir e outros excelentes diretores), bem como aos lançamentos, desde os anos 1970, de novos filmes de Bergman, Antonioni, Federico Fellini, Martin Scorcese, Francis Ford Coppola, os diretores iranianos, chineses, argentinos e cubanos e os brasileiros Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, dentre outros. E o campus da Universidade de São Paulo tem sido um espaço para assistir a filmes raros, desde os tempos da ditadura (o cinema underground brasileiro), exibidos em condições precárias. Sem esquecer de Serguei Eisenstein (O encouraçado Potemkin) e outros malditos da época, como Mario Monicelli (Os companheiros) e Stanley Kubrick (Laranja mecânica): a censura era especialmente feroz contra visões de primeira necessidade – política e erotismo). Até as sessões regulares do CINUSP e dos pequenos grupos de cinema, em diferentes unidades.

    Na condição de docente, trabalhei, com os alunos de graduação em História da FFLCH/USP, filmes baseados em textos literários, refletindo sobre a historicidade das diferentes linguagens e dos diferentes momentos de cada fazer, bem como outras obras sobre determinados campos temáticos, e filmes expressivos sobre questões do momento de sua realização. E orientei algumas pesquisas que usaram filmes para a interpretação histórica, dentre outras fontes documentais.

    O trabalho da História com filmes procura preservar a potência crítica desses materiais como obras de arte que abrem perspectivas para a percepção de múltiplas historicidades nos planos de conteúdos, linguagens e intervenções daquelas obras no meio social.

    Cada comentário inclui algumas indicações de leituras em seu final, que podem, e devem, ser ampliadas em busca de uma compreensão crescentemente aprofundada dos filmes e de suas histórias. Mencionei textos em línguas estrangeiras apenas quando isso foi indispensável, os sites da Internet costumam fazer tradução dos escritos ali reproduzidos.

    O presente volume é dedicado a autores brasileiros, evocando as clássicas lições de Antonio Cândido, para a Literatura, e Paulo Emílio Salles Gomes, para o Cinema: é uma cinematografia que nos debate e nos projeta. Precisamos discuti-la sem qualquer viés ufanista, mas como necessidade de nos conhecermos. Em volume posterior abordarei exemplos da cinematografia produzida noutros países, que circulou e continua a ser vista entre nós.

    Agradeço à Fundação Cinemateca Brasileira (São Paulo, SP), que facilitou o acesso a filmes de seu acervo; e aos alunos da FFLCH/USP e de outras instituições onde conversei sobre esses e mais filmes. E faço um agradecimento especial ao Cineclube Tirol (Natal, RN), onde comecei a sistematizar a compreensão de filmes, ao dedicar o volume a seus principais Mestres – Gilberto Stabile e Moacy Cirne.

    SUMÁRIO

    APRESENTAÇÃO

    Entre o cineclube (a cinemateca, a sala de cinema, o espaço residencial) e a sala de aula – ver filmes brasileiros

    ENCONTRAR E SER ENCONTRADO

    (Agulha no palheiro, de Alex Viany, 1953)

    WUNDERBARE HARMONIE

    (O canto do mar, de Alberto Cavalcanti, 1953)

    POEIRA VIVA

    (Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, 1963)

    POESIA SALVA DO INCÊNDIO

    (O Desafio, de Paulo Cesar Saraceni, 1965)

    SER ALGUÉM

    (A hora e vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos, 1965)

    LONGE DOS "NOBRES HERÓIS UM BRASILEIRO MAIS OU MENOS COMO EU E VOCÊ

    (Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, 1969)

    QUEM COME QUEM?

    (Como era gostoso meu francês, de Nelson Pereira dos Santos, 1971)

    GENI DESNUDA

    (Toda nudez será castigada, de Arnaldo Jabor, 1972)

    DITADURAS E BOVINIZAÇÃO: ALEMANHA/BRASIL, 1933/1946

    (Aleluia, Gretchen, de Sylvio Back, 1976)

    O BELO DOCUMENTO

    (Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho, 1964/1984)

    TRISTEZA, TRISTEZA

    (Nunca fomos tão felizes, de Murilo Salles, 1984)

    A CARMEN DE TODOS NÓS

    (Bananas Is My Business, de Helena Solberg e David Meyer, 1995)

    LONGE DA POLTRONA

    (Lamarca, de Sérgio Rezende, 1994)

    ENFIM UMA PRINCESA DE CARNE

    (Carlota Joaquina, princesa do Brasil, de Carla Camurati, 1995)

    CADÊ OS EMBALOS? EMBALAGENS DA DECADÊNCIA

    (Sábado, de Ugo Giorgetti, 1995)

    COMPANHEIRO ELBRICK

    (O que é isso, companheiro?, de Bruno Barreto, 1997)

    EM BUSCA DO SAGRADO CORAÇÃO DA NAÇÃO

    (Central do Brasil, de Walter Salles, 1998)

    ANACRONISMO COMO LICENÇA POÉTICA

    (Cruz e Souza, O Poeta do Desterro, de Sylvio Back, 1998)

    POLICARPO & POLICARPO

    (Policarpo Quaresma, Herói do Brasil, de Paulo Thiago, 1998)

    SEM DEUS – A IMPOSSÍVEL FELICIDADE

    (Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, 2002)

    COMPARTILHANDO BELEZA E DOR

    (Cidade Baixa, de Sérgio Machado, 2005)

    NÃO HÁ PARAÍSO

    (O céu de Suely, de Karim Aïnouz, 2006)

    SEM REVOLUÇÃO – O RETORNO DA CLASSE MÉDIA

    (Tropa de elite, de José Padilha, 2007)

    REITERAR A DOR?

    (Batismo de sangue, de Helvécio Ratton, 2007)

    O RETORNO DO VOLUNTARISMO CONSERVADOR

    (Tropa de Elite 2: O inimigo agora é outro, de José Padilha 2010)

    ADEUS AO FIM DO MUNDO

    (Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019)

    FONTES CITADAS

    (Agulha no palheiro, de Alex Viany, 1953)

    ENCONTRAR E SER ENCONTRADO

    ( Agulha no palheiro , de Alex Viany, 1953)

    Era uma vez o Segundo Pós-Guerra, na Itália, no Brasil e no mundo. Os estúdios cinematográficos italianos estavam em parte destruídos pelos bombardeios, além de desmoralizados pela associação que tiveram com o derrotado fascismo (a Cinecittà foi fundada por Mussolini, em 1937). Os brasileiros mal tinham sido construídos, e já ruíam a olhos vistos – defeitos especiais num capitalismo estabanado. Hollywood continuava de vento em popa, depois de atuar no lado vencedor da guerra, reforçando a hegemonia estadunidense, mas abrigando o trabalho de grandes diretores – John Ford, Fritz Lang e outros.

    A experiência da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, em São Paulo, naufragava a todo vapor, em meados dos anos 1950; apesar de alguns de seus filmes terem alcançado sucesso até internacional, com destaque para O Cangaceiro, sem esquecer de Sinhá Moça e Tico-Tico-no Fubá, dentre outros. Um dos fatores para o fracasso da empresa foi o contrato com a Columbia Pictures, que distribuía a produção da Vera Cruz e ficava com os lucros, sem responsabilidades de investir. O amadorismo administrativo (compadrios entre conterrâneos), o autoritarismo contra gente talentosa e experiente, como o diretor e produtor Alberto Cavalcanti, e o simulacro de um star system também contribuíram para aquela derrocada.

    Falar em diálogos de setores do Cinema brasileiro com o Neorrealismo italiano e outras tradições internacionais da época é considerar essa historicidade e suas múltiplas mãos: naquele momento, tanto as relações políticas e sociais marcaram a produção artística e cultural, quanto a arte e a cultura interferiram, de diferentes formas, na política e na sociedade. A importância do Neorrealismo não se restringiu à experiência imediata. As expressões faciais e corporais de Anna Magnani, em Roma cidade aberta e tantos outros filmes, se fizeram pura poesia, assim como a montagem e a sensibilidade histórica de Luchino Visconti e a capacidade emocional das obras de Vitorio De Sicca e Cesare Zavattini. Neorrealismo não era simples reprodução especular da realidade, e sim várias maneiras de produzir beleza (faceta da verdade), preocupadas com experiências sociais. Ao invés de mimetismo (reprodução do real), estava-se diante de escolhas, interpretações e interferências.

    É preciso reconhecer diferentes dimensões do Neorrealismo italiano: parâmetros de produção, uma Poética, transcender esteticamente sua historicidade – o Cinema mundial continuaria a aprender com Visconti, De Sicca e Zavattini e Rosselini, depois daquela conjuntura. E debater as diferenças entre obras associadas a essa tradição, até entre os filmes de um mesmo diretor: Rosselini não é igual a Visconti, nem a De Sicca e Zavattini; Roma Cidade Aberta (1945) não é a mesma coisa que Alemanha Ano Zero (1948).

    O raciocínio se aplica ao nascente Cinema Novo brasileiro, que se inspirou, em parte, no Neorrealismo italiano: Alex Viany é diferente de Nelson Pereira dos Santos e de Roberto Santos, mesmo que tenham trabalhado juntos, como assistentes ou produtores uns dos outros. Agulha no Palheiro (1953), de Viany, junto com Rio 40 Graus (1955), de Pereira dos Santos, e O Grande Momento (1958), de Santos, são filmes inaugurais de um pré-Cinema Novo, ou de um primeiro Cinema Novo, em registros urbanos muito distintos do predomínio rural próprio ao Cinema Novo dos anos 1960¹.

    Agulha no Palheiro se inicia como um agitado mapa parcial do Rio de Janeiro, englobando automóveis, ônibus e pedestres, mais música dramática. Um motorista de pequena lotação, Baiano (o ator Jackson de Souza), é o narrador verbal e personagem que interage com vários outros. A quase briga de Baiano com um motorista de caminhão – homem muito mais alto e forte que ele – apresenta, de cara, sua coragem para enfrentar poderes maiores, que se desdobrará em generosidade e sincera dedicação a amigos e parentes. Amizade e parentela constituem o tecido central da sociabilidade abordada por Viany.

    Ambientado no então Distrito Federal, o Rio de Janeiro, Agulha no Palheiro não perde de vista algumas articulações nacionais e internacionais de seu campo temático: aquele personagem se chama Baiano; a protagonista Mariana (a atriz Fada Santoro) chega do interior de Minas Gerais; seu enamorado, Edu (o ator Roberto Bataglin), apresenta à moça a mulher de um amigo, Mário, chamada Maria (a atriz Helba Nogueira), uma italiana que viveu a experiência final da Segunda Guerra em sua terra e foi resgatada da fome, junto com o filho de um soldado desconhecido, pela generosidade do futuro marido. Em contrapartida, o rico vilão José da Silva (de acordo com informação de sua mãe) costumava viajar para Nova York, como se riqueza e vilania fossem o não-Brasil, ou um Brasil que fugia de si mesmo.

    Abre-se um campo de discussões que ultrapassa o local, sem perder de vista peculiaridades cariocas, expressas na dicotomia subúrbios (bairros não identificados) versus Zona Sul – em especial, Copacabana. Essa dualidade se desdobra numa topografia social de novos pares: pobreza e ostentação, tradição e modernidade, sinceridade e mentira. E é discretamente costurada pela prática musical, nas cenas em que o compositor e pianista Juca (vizinho e amigo da família – o ator César Cruz) se apresenta em emissora de rádio e boate.

    O enredo do filme se concentra na vinda de Mariana para o Rio de Janeiro, a fim de encontrar o namorado carioca que conhecera no interior e lhe dera um endereço falso (número inexistente na Avenida Atlântida), tendo apenas o nome do rapaz como pista – José da Silva, extremamente comum. Ela é prima de Baiano, fica hospedada na casa da tia e faz amizade com Eduardo, que também mora ali.

    O ambiente familiar é marcado por uma pobreza discreta: a casa é arrumada, todos aparecem corretamente vestidos – sem luxo. A mãe de Baiano, Adalgisa (Dona Gisa – a atriz Sara Nobre), e a irmã do rapaz, Elisa (a cantora Dóris Monteiro, muito talentosa como atriz), são pessoas simpáticas, afetuosas e solidárias, o que também se observa em Edu, atraído por Mariana, mas extremamente cauteloso e respeitador.

    Edu é motorneiro de bonde, profissão humilde, mas com um nível de especialização. Ele sempre se apresenta bem arrumado, em farda elegante (terno, quepe), cabelos alinhados. Numa ida à boate, com Mariana, para tentar encontrar José da Silva, Edu é confundido com um endinheirado, e a moça se apresenta vestida com apuro, embora use roupas alheias. São detalhes que ajudam a localizar o universo da pobreza configurado por Viany: pessoas ajustadas, apesar dos limites financeiros de suas vidas, e que se ajudam reciprocamente.

    Uma fala de Eduardo sobre esse mundo é significativa: Talvez até os pobres tenham que pensar mais por serem pobres.... Isso indica racionalidade da ação e preservação de laços afetivos. Os pobres dependem da bondade alheia, sem a angústia em fim de linha de Blanche Dubois, na peça Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, filmada por Elia Kazan (1951), versão lançada no Brasil com o disparatado título Uma Rua Chamada Pecado.

    Mariana confidencia a Elisa um segredo: está grávida daquele José. A reação dos parentes e amigos ao saberem é de compreensão e apoio, sem preconceito, procurando evitar que ela faça alguma bobagem – provável referência a aborto.

    O filme caracteriza uma sexualidade perigosa e mesmo condenável. A sempre agitada Elisa, cantora em começo de carreira, fala que aquilo não aconteceria com ela, como se estivesse acima do desejo. Mas a sexualidade ligada à formação de uma família aparece com muita simpatia, como se observa na visita de Edu e Mariana à casa de Mário e Maria, casal perfeito até na similaridade dos nomes. Maria se orgulha da prole, em plena produção (diz, sobre o fértil e fogoso marido: Pensa que o Mário perde tempo como você?, questionando a lentidão de Edu, ainda solteiro, para fazer o mesmo. Mário e Maria são um antecedente do amor de redenção experimentado por Edu e Mariana. E Maria tem o nome da mãe de Jesus, arquétipo maternal (à maneira das deusas-mãe) no mundo cristão.

    O sexo enganoso e negativo aparece ligado ao mundo dos ricos, onde José da Silva está: engravidar uma moça sem assumir as responsabilidades, ter relações descontínuas. Através do ausente José (encontrado quase no fim do filme – o ator Hélio Souto), o universo da riqueza aparece como perverso moralmente, sem ser associado à exploração do trabalho alheio. A cena em que a criada negra de uma rica família Silva Moreira Bastos revela ter indicado o endereço de José a Mariana, via jornal, sugere que a opressão sobre os pobres se dá por disciplina. O gesto da empregada (a atriz Augusta Moreira) também exemplifica a solidariedade entre pobres, mesclada a um padrão moral e à vingança contra os patrões.

    A procura por aquele irresponsável José apresenta o mapa do Rio de Janeiro como labirinto, e os amigos solidários de Mariana, inclusive Dona Gisa e o vizinho Juca, buscam chaves para desfazer seus enigmas: lista telefônica, anúncio em jornal, tentativas de informações pessoais. Além de evocar as cidades cinematográficas de Rosselini e De Sica/Zavatini, há um diálogo com o mapeamento urbano elaborado em M, O Vampiro de Dusseldorf, de Fritz Lang (1931), por policiais e contraventores, retomando tradições do cinema alemão dos anos 1920, como Berlim – Sinfonia da Metrópole, de Walther Ruttmann (1927), e Metropolis, de Lang (1927). O extremado idealismo de Frank Capra, em A Felicidade não se Compra (1946), com a solidariedade a toda prova contra o mundo da malvada riqueza, não deve ser esquecido. Nem os mistérios dos filmes noir, metamorfoseados aqui em final feliz, mais algumas doses de melodrama. São referências que Viany – importante crítico cinematográfico já naquela época, tradutor de filmes norte-americanos para o português, com experiência de trabalho jornalístico e estudos nos EUA² – certamente conhecia bem.

    A investigação sobre o paradeiro de José da Silva leva Mariana e Eduardo àquela boate, onde a moça se sente perturbada com um toque afro de música, perguntando se aquilo é macumba. Esse estranhamento sinaliza mais aspectos do popular no filme de Viany. O músico Juca é negro, e se situa numa pequena classe média: dá aulas, compõe, apresenta-se em espaços públicos de elite. Aquela música, com coreografia do poeta e ator Solano Trindade, que parece incomodar a moça mineira, está nesse mundo social domesticado. Há uma dança meio africana numa cena de boate de Noites de Cabíria (1957), de Federico Fellini, mas sua ocorrência em Roma permite entendê-la como exotismo. No Brasil, o exótico é aqui, evidenciando tensões em relação ao meio popular de origem. E o tema do feitiço é metaforizado na atração que une Edu e Mariana.

    As cenas da boate e do estúdio radiofônico são oportunidades para números musicais com Carmélia Alves, Dóris Monteiro, Trigêmeos Vocalistas e Teatro Popular Brasileiro (dirigido por Trindade). Essas canções e danças nos lembram que Agulha no Palheiro,

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1