Suplemento Pernambuco #184: Estamos sendo atacados
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Suplemento Pernambuco #184 - Janio Santos
CARTA DOS EDITORES
O Brasil é um filme de terror
, afirmou certa vez Sérgio Sant’Anna (1941–2020) em seu perfil numa rede social. Estamos sob ataque de diversas formas, e nesta edição do Pernambuco quem fala são livreiros e livreiras de todo o Brasil: eles e elas dão sua versão sobre a falta de apoio estatal e sobre as dificuldades de subsistir em meio à pandemia. Com o jornalista Guilherme Sobota, percorremos um roteiro de filme de terror marcado por angústia e criatividade. Por mostrar tudo tomado por uma planta ao mesmo tempo única e múltipla, as ilustrações de Luísa Vasconcelos captam o cenário opressivo para essas livrarias tanto entre os vários pontos em comum quanto entre os distintos. Ouvimos livreiros e livreiras de Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Goiânia, Belo Horizonte, São Paulo e Santos, lembrando sempre do caso singular do Rio de Janeiro — cidade cuja decadência vem se arrastando há anos e que de certa forma viveu antecipadamente crises pelas quais passamos hoje em escala nacional.
Percorremos uma variedade de assuntos nesta edição, na qual uma ideia aberta de narrativa é o eixo central que irradia para vários lados: enquanto a historiadora Virgínia Fontes se debruça sobre os atuais desafios da classe trabalhadora, a crítica Edma de Góis discute o lugar de certas visualidades em romances de Elvira Vigna; a jornalista Luciana Araujo Marques discute como três autoras brasileiras se valem do corpo humano em suas elaborações sobre a ditadura, e, no mês em que Maria Bethânia completa 75 anos, o pesquisador Renato Contente investiga os sentidos históricos (e suas disputas) que envolvem o contato com Álibi, álbum de 1978 que também (mas não apenas) fala sobre a ressaca da ditadura; enquanto a crônica de Laura Erber explora a variedade de performances do macho de palestra, numa via completamente alheia o historiador Rafael Cardoso discute problemas que precisamos enfrentar ao pensar o modernismo, algo que cruza seu mais novo livro (lançado no exterior).
O novo conto da série Botão Vermelho, da escritora Natalia Borges Polesso, imagina uma perfeita e assustadora tecnologia a rondar. A série é uma parceria com o Instituto Serrapilheira para imaginar outros mundos a partir da ciência e da literatura.
Uma boa leitura a todas e todos!
COLABORAM NESTA EDIÇÃO
Carol Almeida, curadora e pesquisadora, editora da série Botão Vermelho; Edma de Góis, pós-doutora em Estudo de Linguagens (UNEB); Fernanda Lobo, mestra em Letras (USP); Flávio Pessoa, designer, assina o projeto gráfico de Botão Vermelho; Natalia Borges Polesso, escritora e tradutora, autora de Amora; Laura Erber, poeta e artista visual, autora de Theadoro Theodor; Leonardo Nascimento, doutorando em Antropologia Social (Museu Nacional/UFRJ); Luísa Vasconcelos, designer e ilustradora; Priscilla Campos, crítica literária e doutoranda em Letras (USP); Renato Contente, doutorando em Sociologia (UFPE), autor de Não se assuste, pessoa!
EXPEDIENTE
Governo do Estado de Pernambuco
Governador
Paulo Henrique Saraiva Câmara
Vice-governadora
Luciana Barbosa de Oliveira Santos
Secretário da Casa Civil
José Francisco Cavalcanti Neto
Companhia editora de Pernambuco – CEPE
Presidente
Ricardo Leitão
Diretor de Produção e Edição
Ricardo Melo
Diretor Administrativo e Financeiro
Bráulio Meneses
Superintendente de produção editorial
Luiz Arrais
EDITOR
Schneider Carpeggiani
EDITOR ASSISTENTE
Igor Gomes
DIAGRAMAÇÃO E ARTE
Hana Luzia e Janio Santos
ESTAGIÁRIOS
André Santa Rosa, Guilherme de Lima e Rafael Olinto
TRATAMENTO DE IMAGEM
Agelson Soares e Sebastião Corrêa
ReVISÃO
Dudley Barbosa e Maria Helena Pôrto
colunistas
Diogo Guedes, Everardo Norões e José Castello
Supervisão de mídias digitais e UI/UX design
Rodolfo Galvão
UI/UX design
Edlamar Soares e Renato Costa
Produção gráfica
Júlio Gonçalves, Eliseu Souza, Márcio Roberto, Joselma Firmino e Sóstenes Fernandes
marketing E vendas
Giselle Melo e Rosana Galvão
E-mail: marketing@cepe.com.br
Telefone: (81) 3183.2756
CanalCepeCRÔNICA
O macho de palestra e seus personagens
Ele está entre nós como estava entre os antigos aquele Deus onisciente
Laura Erber
HANA LUZIA
Cuidado, ele pode ser você. Ou alguém muito próximo. Um ex-amor, ex-amigo, seu professor preferido. Refiro-me ao macho de palestra, figura bem mais encontradiça que a do louco, mas menos célebre, embora de maneira alguma menos importante no funcionamento dos ritos conferenciais. Deve ter acontecido outras vezes sem que eu tenha percebido, mas minha indigna atuação como macho de palestra só se tornou visível aos meus próprios olhos depois daquele seminário em que deixei um palestrante da espécie homem falar desbragadamente durante o dobro do tempo estipulado, comendo assim metade do tempo de fala da professora — amiga minha (!) — que interviria na sequência. Felizmente, passado um tempo, a amiga me deu um abraço chinchado e disse: o que foi aquilo? Coberta de razões estava ela, eu em posição indefensável pedi perdão e bola pra frente.
Todo cuidado é pouco, pois o macho de palestra pode perfeitamente ser amável, doce, gentil e educado. Um tipo bacana à beça, quem sabe até seu parça em mil projetos, seu confrade, seu cúmplice, dedo mindinho, seu vizinho, o pai de todos os seus filhos. Ele pode ser minoria e, ele que tudo pode, também pode ser surfista, advogado pro bono, psi nas quebradas, bom cozinheiro, belo ou esquisito. Claro, ele pode ser milico. E nas conferências ele pode reinar sozinho sobre o reinado dos sentidos. Naqueles 30 segundos antes ou depois de a palestra começar, ele pode te elogiar de um jeito que te diminui ou te diminuir como se fosse um elogio. Pode ser safadinho e querer saber mais sobre a sua… pesquisa.
Ele pode ser artista e chegar risonho e atrasado, traje casual, havaianas com bermuda. Oba, lá vem ele sensualizando de camisa de linho não toda abotoada a revelar alguns pelinhos sapecas. Ele pode resolver que o melhor lugar do mundo é aqui e agora para uma majestosa arreganhada de pernas. Quem sabe assim transmite ao público a imagem de um ser mais livre e à vontade, afinal formalidade é coisa de businessmachos, gente sem traquejo na vida. Ele que é todo trabalhado em odara, não se amarra em dinheiro não. Poder? Só se for verbo: eu posso e tu também, entendeu, querida? Tempo cronometrado também não é pra sua pessoa, gente é pra brilhar, deixa ser, o que será será.
Ele pode começar a palestra bem modesto, dizendo que não deu pra preparar coisa nenhuma enquanto vai puxando do fundo do bolso notas em papelitos amassados — sua partitura infinita para dizer demais e além. E o barquinho vai, a tardinha cai, ele vai falando livre das amarras temporais, às vezes ri do próprio falatório que não cessa. Até que um dia finalmente cansa, e poderá ser visto espreguiçando enquanto a mediadora prepara uma pergunta. Boceja assim feito um lance natural, necessidades corpóreas às quais ele obedece espontâneo e iridescente.
Ele pode gostar de citar Didi-Huberman com a comoção de um francês na mata virgem, ou ser um astro da filosofia política, tenso e sisudo como manda o figurino da sua instituição, oscilando entre o imperador da indignação e o desprezo por nosso mundo lasso e medíocre. Quando sua colega de mesa começa a falar, ele, o filósofo enfadado, põe-se a brincar com sua garrafinha d’água. Suspira fundo, decide admirar os próprios pés, repara no verniz que cintila sobre o couro do sapato sem se dar conta de que sua careca nua e lustrosa agora se mostra em perfeita lua inteira para a plateia concentrada. Ou nem isso, talvez ela já tenha batido em retirada. É que depois de se ouvir falar — afinal pra isso estava lá — ele zarpa, há compromissos que um homem deve cumprir, e lá se vai, deixando para trás aquelas mulheres que falam demais.
Não é incomum que todas as perguntas da plateia sejam endereçadas a ele. E assim vamos sustentando o moço palestrante no centro cosmológico de interesse e atenção, o misterioso magnetismo exercido por sua figura é uma depressão à parte. Não que não seja necessário algum tipo de esforço para evitar se deixar seduzir pelo élan do macho de palestra, sobretudo na versão artista, com sua informalidade bem calculada, capaz de deslizar de odara ao show de pedigree numa frase só.