Discricionariedade judicial e força normativa dos precedentes na teoria pura do direito
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Discricionariedade judicial e força normativa dos precedentes na teoria pura do direito - Maíra Gondim Almeida
1 Introdução
O presente trabalho propõe investigar o problema da discricionariedade judicial, sob a perspectiva da teoria pura do direito, nas hipóteses em que casos concretos com circunstâncias fáticas e jurídicas idênticas resultam em soluções jurídicas distintas. Vale-se do conceito de norma jurídica de Kelsen para defender o caráter normativo do precedente, funcionando como critério objetivo de redução do espaço de liberdade criativa do intérprete autêntico.
Isso porque não parece ser incompatível com a tese da teoria da interpretação do direito kelseniana, segundo a qual não há somente uma única resposta correta, o estabelecimento de padrões mínimos de racionalidade no ato de interpretar. A atividade criativa dos juízes e tribunais deve ser exercida de forma complementar à legislação. Assim, a sentença, considerada por Kelsen como norma jurídica, deve ser produzida considerando o conjunto normativo já existente. Deve observância à unidade lógica do direito, estruturado hierarquicamente por normas jurídicas, e, também, ao seu caráter integrativo, de forma a guardar coerência com a ordem social a qual irá se constituir.
O respeito ao precedente pode, pois, funcionar como critério objetivo de redução do espaço de indeterminação próprio da operação interpretativa do direito, contribuindo, no limite, para a evitabilidade de decisões contraditórias para casos concretos equivalentes.
Para sustentar que o problema de pesquisa pode ser reduzido pelo manejo do precedente, esse trabalho dividir-se-á em quatro capítulos de desenvolvimento. O primeiro capítulo, intitulado Direito e Discricionariedade, objetiva contextualizar a problemática da discricionariedade judicial na apreciação de demandas massificadas. Principalmente considerando a indeterminação do direito e seu caráter polissêmico.
O segundo capítulo, nomeado Perspectivas conceituais da teoria pura kelseniana, visa desenvolver aspectos conceituais gerais da teoria do direito, de maneira a tornar possível compreender os conceitos fundantes da teoria pura do direito e aplicá-los ao problema de pesquisa. Nessa etapa, focaliza-se naquilo que Kelsen entende como estática jurídica. Propõe-se, assim, investigar o conceito de direito e das normas jurídicas segundo a perspectiva kelseniana. E, ainda, os conceitos acessórios básicos indispensáveis para a compreensão de sua teoria do direito, como dever-ser
, atos de coação
, imputação
, ilicitude
, sanção
, dever jurídico
, direito jurídico
e norma fundamental
.
O terceiro capítulo, nomeado Dinâmica Jurídica, visa abordar os processos constantes da produção normativa. Nesse tópico, propõe-se focar nos pilares fundantes da unidade lógica do direito, principalmente baseado na estrutura escalonada da ordem jurídica e nos processos de interpretação jurídica.
O quarto capítulo, por fim, objetiva construir uma ponte entre os capítulos anteriores, sendo intitulado A Força Normativa do Precedente. Assim, considerando o conceito de norma jurídica para Kelsen, tratado no segundo capítulo e, ainda, considerando que a ordem normativa é una e os processos interpretativos e criativos devem ser promovidos de forma a observar a estrutura hierárquica da ordem jurídica, abordado no terceiro capítulo, a hipótese do manejo do precedente como instituto limitador da discricionariedade judicial pode ser defendida, principalmente em razão das prováveis lesões e consequências danosas à segurança jurídica, à isonomia, ao princípio da confiança e às justas expectativas dos jurisdicionados, quando analisa-se casos idênticos com soluções jurídicas distintas.
A decisão judicial precedente, segundo aquilo que se pretende demonstrar, enquanto norma que regulamenta relações humanas pré-definidas na proposição normativa, deve funcionar como contributo de redução da margem de discricionariedade jurisdicional.
Destarte, é pressuposto investigativo para aquilo que se propõe como hipótese de pesquisa a noção da ausência de incompatibilidade entre a discricionariedade judicial, na perspectiva teórica de Kelsen, com o estabelecimento de critérios objetivos de análise, no momento da produção de normas jurídicas pelos juízes e tribunais, que podem ter feição de normas individuais, normas gerais individualizadas ou normas individuais generalizáveis.
2 Direito e Discricionariedade
A crise institucional do Poder Judiciário repercute tanto nas suas estruturas de poder quanto no padrão decisório dos órgãos jurisdicionais. No contexto brasileiro decide-se muito e decide-se mal. O excesso de trabalho, dentre outros fatores, funciona como justificativa ante a má prestação jurisdicional. O cenário caótico de milhares de processos faz com que a duração razoável do processo seja utopia. E mais, a massificação de demandas, só piora o estado de coisas. Isso porque mesmo diante de matérias fáticas e jurídicas idênticas, a vingar do órgão julgador apreciante, a solução jurídica poderá ser distinta.
A discricionariedade judicial, materializável no momento da aplicação/ criação do direito, representa o espaço de liberdade criativa conferido pela moldura normativa (KELSEN, [1934], 2021; [1960], 2009). Assim, o intérprete exerce a função de criar direito novo ao complementar a ordem jurídica com disposições normativas até então inexistentes, sua atribuição decorre, nesse sentido, da indeterminação própria do direito. Ante a vagueza e a impossibilidade de previsão de todas as hipóteses fáticas de incidência, a extração da norma jurídica demanda atividade interpretativa e criativa do juiz. Nesse sentido, Trivisonno afirma que [a] natureza da linguagem (jurídica) torna impossível que uma norma preveja todos os detalhes de um comportamento, deixando, portanto, ao aplicador uma margem para decidir
(2013, p. 200).
Tal indeterminação, partindo do pressuposto da diferenciação entre texto e norma e considerando norma como esquema de interpretação, confere ao juiz a tarefa de complementar o ordenamento jurídico nos pontos em que a atividade legislativa é insuficiente para solucionar casos concretos. Na perspectiva de Kelsen ([1934], 2021; [1960], 2009), a indeterminação não ocorre somente no momento em que o juiz produz determinada sentença judicial, mas também na produção de novas normas jurídicas pelo legislador, a partir da observância da constituição na produção de leis infraconstitucionais.
Segundo Trivisonno (2013), Kelsen não adere a visão tradicional de que somente o legislador produz o direito e o juiz o aplica. De acordo com sua visão proposta, ambos são responsáveis tanto pela criação quando pela aplicação do direito. Isso porque legislador e juiz aplicam uma norma superior já existente para criar uma norma inferior. Para Kelsen ([1934], 2021; [1960], 2009) a diferença entre legislação e jurisdição é uma particularização de grau. Tal diferenciação não é, portanto, qualitativa, mas sim quantitativa. A limitação da margem criativa exercida pela constituição é menor quando comparada à limitação da lei sobre o juiz (TRIVISONNO, 2013).
Assim como a partir da constituição não é possível inferir somente uma única norma geral sobre a matéria, a partir da legislação também não é possível deduzir apenas uma única solução jurídica para o caso concreto, materializada na sentença judicial. Disso decorre que, legislador e juiz possuem discricionariedade, representada pela liberdade criativa. O que os diferencia é o grau de amplitude de cada um dos órgãos. A discricionariedade do legislador é maior do que a discricionariedade judicial (KELSEN, [1934], 2021; [1960], 2009).
Sobre o caráter plural das interpretações, José Rodrigo Rodriguez (2015, p. 105) afirma que: Textos normativos costumam admitir múltiplas interpretações e, portanto, os órgãos que detêm a competência para utilizá-los na solução de casos concretos também precisam zelar pela segurança jurídica
. Justamente em razão das várias possibilidades de intepretação, dentro do que Kelsen ([1934], 2021; [1960], 2009) estabelece como moldura da norma jurídica, é que se investiga meios hábeis a limitar a liberdade interpretativa do juiz e conferir padrões mínimos de racionalidade às decisões judiciais. Isso porque a decisão judicial nada mais é que a continuação do processo de criação jurídica e representa verdadeiro ato de vontade do intérprete autêntico, em que se opta por essa ou aquela solução jurídica.
De acordo com Fábio Ulhoa (2019, p. 66), [a] decisão judicial é, para Kelsen, a edição de norma jurídica individual
. Dentro do espaço de liberdade, o juiz realiza ato de vontade ao atribuir determinado sentido à norma aplicanda. É pressuposto dessa escolha a existência de várias soluções jurídicas igualmente possíveis (KELSEN, [1934], 2021; [1960], 2009). Assim, invariavelmente, a discricionariedade é inafastável. [...] o juiz, quando escolhe uma interpretação, não atua cientificamente, mas sim politicamente. Sua escolha é subjetiva [...]
(RODRIGUEZ, 2013, p. 204).
Nesse mesmo sentido, Elival da Silva Ramos (2015, p. 53) bem sustenta a interconexão entre o positivismo e o caráter cognoscível da interpretação, de maneira que [e]ssa liberdade de movimentação, por certo, não é incompatível com a teoria positivista, sendo, ao contrário, convertida no postulado da discricionariedade ou liberdade de escolha do aplicador [...]
. Segundo Trivisonno (2013), o poder discricionário nada mais é que a existência de diferentes soluções para o caso concreto, já que o direito não consegue fornecer um critério, prima facie, para a realização de escolha prévia.
A partir de vieses políticos e morais, os intérpretes autênticos: [...] produzem direito ao completar o trabalho do legislador
(GRAU, 2013, p. 25). Em razão da margem de escolha do juiz, o tema da discricionariedade judicial ganha bastante relevo. Isso porque passa-se a discutir quais critérios são utilizados pelo intérprete autêntico para a produção da norma jurídica individualizada e, ainda, se tais parâmetros são moralmente justos. Entretanto, a concepção de decisões justas carrega consigo subjetivismos. Assim, por mais que se percorra pela fiel observância do ideário de justiça, é preciso definir, antes, o que é justiça? Ou melhor, qual justiça julga-se ideal? E ainda, qual critério ótimo para a escolha do padrão do justo?
Nas palavras de Kelsen, [m]as qual ideal de Justiça? Ao capitalismo-individualista ou ao socialista-coletivista ideal de Justiça? Correspondendo ela a um, entra em conflito com o outro;
(KELSEN, [1979] /1989, p. 155). Para Larenz, [q]uando se pede que o Direito se oriente por normas morais, deveria perguntar-se, em contrapartida, a que ordem moral pertencem essas normas.
(LARENZ, 2014, p. 96). O caminho para a investigação de tais respostas, além de nebuloso, pode nunca atingir a um padrão materialmente conciliável, no mundo real. Isso porque é impossível determinar, sob todas as especificidades, o que é ou não é considerado justo ou injusto (KELSEN, [1934]