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Flor Do Equinócio De Outono
Flor Do Equinócio De Outono
Flor Do Equinócio De Outono
E-book673 páginas9 horas

Flor Do Equinócio De Outono

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Sobre este e-book

A escuridão cai sobre a terra A hora da meia noite está mais próxima Criaturas rastejam em busca de sangue Prontos para aterrorizar sua vizinhança E quem for encontrado com a alma ainda ainda no corpo Deve encarar os cães do inferno, e apodrecer dentro de um cadáver O pior cheiro está no ar O mais pútrido de quarenta mil anos Ghouls famintos se levantam de seus túmulos Estão chegando para selar o seu destino E o quanto mais você lute para ficar vivo Seu corpo começa a arrepiar e a tremer Porque mortal algum pode resistir O mal do thriller - Michael Jackson - Thriller
IdiomaPortuguês
Data de lançamento8 de abr. de 2024
Flor Do Equinócio De Outono

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    Flor Do Equinócio De Outono - H. C. Almeia

    CAPÍTULO 1

    O Garoto de Cabelos Brancos

    Parte 1: O Hospital

    Eram corredores largos, estreitos, paredes limpas, amareladas pela idade, mas limpas. Lustres velhos quase escuros, portas brancas, maçanetas que só se abriam por fora, áudio falantes que não funcionavam. Pequenas janelas nas extremidades dos corredores. Os dois andares de cima daquele pavilhão eram como o térreo, repleto de quadro de doutores e paisagens, das quais os pacientes não conseguiam alcançar.

    Um hospício.

    Diziam alguns que era um dos lugares mais sãos que se podia estar.

    Um lugar calmo, entre verdes serras e ar puro.

    O dia começava mais uma vez.

    Como rotina um carro preto azulado, bem fosco, entra pelos portões do recanto, batendo o cartão com o guarda na guarita. Já era conhecida, a doutora Lucia, trabalhava lá a dois anos e meio e não cansava de trazer doces de casa para o senhorzinho da guarita. Tinha chegado mais cedo pois um paciente tinha dado problemas na tarde do dia anterior.

    Ruiva, alta e séria, ela tinha sacrificado o café daquela manhã por aquele paciente. Estava fora de seu humor, mas ainda sim fria o suficiente para fazê-lo.

    Estacionou o carro na vaga particular, e desceu carregando a bolsa com uma garrafa de água na outra mão.

    Empurrou os óculos enormes no rosto olhando para o alto da serra ao longe, e apertou o alarme do carro se aproximando do lugar.

    Palmeiras em ambas as extremidades da entrada daquele pavilhão. Ela entra pela recepção. Uma entrada pequena para um lugar que se estendia para um complexo maior ao fundo.

    A serra era bem perto dali, ainda dava para se sentir o gosto de terra molhada da manhã.

    - Bom dia, doutora! – Disse a recepcionista assistindo televisão.

    - Bom dia, meu anjo. – Vinha doutora Lucia procurando dentro da bolsa.

    Na televisão presa ao teto, passava o noticiário. Nada bom, nada promissor.

    O vírus continua a se espalhar, Mais mortos que no mês passado, O governo começa a fechar aeroportos, portos e fronteiras, Pior que a peste negra.

    Meio irritada por não ter guardo direito seu cartão, doutora Lucia o puxa de dentro da carteira colocando sobre o balcão sem se dar conta da televisão.

    - .... De novo. – Comentou a recepcionista.

    Lucia olha para a televisão e volta a fechar a bolsa.

    A imagem dos supostos cadáveres vetores de transmissão empilhados em uma cova coletiva prestes a ser incendiada, causava um desconforto naquelas duas mulheres. O bastante para que roubasse a voz de suas bocas.

    - Meu Deus... – Murmurou a doutora.

    - O país está começando a pegar fogo, hein! – Disse a moça.

    - Deus me livre! E eu aqui pensando no que fazer! – Dizia ela. – Minha mãe mora para lá, nem sei como ela está. Deveria procurar saber.

    O botão do trinco da porta é acionado. Um estalo. A recepcionista volta a assistir aquilo acontecer.

    Pensando se deveria estar mesmo ali, doutora Lucia se encarrega de calçar o devido foco e entra para o hospício batendo o portão.

    Aqueles cadáveres, Aquelas pessoas, pensou.

    Era algo global. Preocupante para todos, de certa forma. Ainda assim, ela não tinha tempo para pensar naquilo. Era sexta-feira, ela tinha meio expediente para terminar e ir para casa ficar com a filha. Talvez pensar em uma forma de evitar tudo aquilo. Talvez.

    Era um talvez grande.

    De cabeça baixa, ela caminhou para fora da entrada, caminhou por uma pequena praça, a poucos passos da entrada, e foi se preparando para o paciente daquele dia.

    Duas enfermeiras conversavam baixo, rindo ao telefone em baixo do coqueiro.

    Ela apenas acenou.

    Lá estava Roberto mais adiante, um dos enfermeiros mais antigos do hospital. Estava fumando um cigarro do lado de fora da cozinha dos funcionários bem calmo como era.

    Era negro, alto, tinha cara de sério. Talvez tivesse sido polícia antes de virar parar ali. O padrão perfeito para os enfermeiros daquele lugar.

    Ela não perguntava muito e ele não tinha o que dizer. Era um homem ocupado.

    - Bom dia...

    - Bom dia. – Respondeu ela colocando a cabeça para dentro da pequena cozinha, sem ver ninguém.

    - Droga... – Murmurou vendo o relógio. – Você sabe se a Rosane já chegou?

    - Ela ligou cedo dizendo que não vai vir. – Disse ele. – Disse que a mãe dela teve que viajar, e ela foi junto. Algo a ver com o pai.

    O sol brilha forte sem machucar acima da serra pelada.

    - Você consegue buscar o Rogério para mim? Eu só o tenho hoje de manhã, então quero fazer rápido.

    - .... Hmm, eu não sei se a senhora vai conseguir tirar algo dele hoje, não. – Disse esfarelando as cinzas para lá. – Ele estava bem agitado ontem. Deram não sei o que para ele, e ele capotou mole no chão.

    - Jesus, eu já disse para eles pararem com essas coisas...

    Roberto traga mais uma vez profundamente e joga a bituca de cigarro no chão, pisando em cima.

    - Bem, não custar tentar. De qualquer forma eu já estava indo para lá mesmo.

    - Hmm, espero que não tenham matado ele dessa vez.

    O enfermeiro nada diz.

    Anestesia de sossega leão mal aplicada não era difícil de se ver naqueles lugares. Aquele homem já tinha visto sua dose do estranho.

    Quietos em respeito ao silêncio do lugar, eles sobem a rampa de cimento do barranco pedroso, sobem a outra e entram no prédio centenário feito em um hospício.

    Sala de espera estava vazia como sempre. Sol entrava pela porta de lá. O mesmo silêncio de sempre. Trinta anos e aquilo não tinha mudado.

    Subiram as escadas.

    - .... Espera, eu pensei que ele estivesse no dormitório. – Disse a doutora.

    - Não, o diretor mandou levarem ele para o colchão. – Disse Roberto. – Como eu disse doutora, ele estava bem agitado.

    - Sim, o diretor me contou ontem. Mas o que vocês deram para ele?

    - Não sei, não era meu turno. – Disse o homem pouco se importando.

    Sem mais perguntas, ela não tinha cargo para opinar. E não queria arrumar problemas na prefeitura. Quem dirá com o diretor daquele lugar.

    Continuaram pelo corredor a direita. Alguns consultórios, o dela estava ali de porta fechada. Viraram à esquerda de novo. Mais três consultórios, dois leitos para feridos, e duas salas para atividades. Cadeira de rodas soltas perto das janelas, pediam ajuda. Pouco sol por ali. Uma clínica limpa, mas com o cheiro que a doutora não suportava.

    No fim daquele corredor, uma oitava porta com uma pequena janela de vidro temperado, estava trincado com a evidencia das cabeçadas dos pacientes que vinham parar ali.

    Aquele lugar era um pesadelo limpo, calmo e silencioso.

    Ela lembra da filha na hora. E então chega ao vê-lo.

    - Lá está ele. – Mostrou o enfermeiro. – Acho melhor a senhora deixá-lo descansar...

    Aquilo nem chegava a ser a sombra de uma criança.

    Algo ruim. Uma visão amarga. Diluído em meio ao silêncio branco das paredes acolchoadas sem cantos.

    Estava em uma camisa de força, justa, amarrado a si mesmo, por precaução, ao que parecia. Decadente, talvez demente. Encolhido, caído e deitado de lado em posição fecal. Seus cabelos longos eram completamente brancos, a pele de sua nuca, de onde ela conseguia ver, ainda continuava completamente cinza claro. Sua mente era um estilhaço do que poderia ter sido. Era apenas um garoto de quatorze anos, que foi trancado como um animal.

    A doutora só lamentou.

    - Tire ele daí e depois leve para a minha sala...

    Sem entender aquilo, o enfermeiro puxa a chave da cintura, e assobia para outro colega de trabalho que passava no corredor.

    Bateram no vidro para verem se ele respondia ou acordasse, mas nada. Nem um movimento.

    Descalço.

    Quando os dois enfermeiros chegaram perto, perceberam que o menino estava em uma poça da própria urina. Estava pálido. Ainda vivo. Babava um pouco, mas não parecia machucado.

    O tipo de coisa que se dava nó na garganta de qualquer um se visse.

    Gemeu. Não conseguiu se levantar e foi arrastado pelos braços para fora da sala branca. Escorreu urina pelo corredor inteiro descalço. Não o tiraram da camisa de força porque não queriam correr risco. Era obrigatório dois enfermeiros ou enfermeiras para o cuidado de um paciente.

    O levaram para o tratamento e fizeram o que tinha que fazer. Trocaram roupa, banho, medicação de quatro comprimidos. Dois antes da refeição, dois depois. O colocaram em outra camisa de força e o puseram sentado de volta na cadeira de rodas com um doce na boca.

    Perdida no silêncio de seu escritório, a doutora tinha duas janelas atrás de si, que mais pareciam uma vidraça. A mesa era ampla e um vaso de for à esquerda dela não mudava o cheiro ou o fato daquele lugar. Um gabinete de metal com quatro grandes gavetas empilhadas ao lado direito da porta, pesava o trabalho dela.

    A limpeza. Ela se distraia no celular respondendo a filha. A limpeza daquele lugar era assustadora. Nem insetos ousavam ciscar por ali.

    Doutora Lucia estava ficando preocupada com a filha.

    Barulho do ranger de uma cadeira de rodas, vem pelo corredor. Mais uma mensagem chega, e ela bloqueia o celular sem ver, o pondo sobre a mesa ao lado da garrafa de água.

    - Pode entrar, Roberto. – Disse ela vendo aquilo sendo empurrado. – Tira a cadeira da frente e traga ele mais perto.

    Estalos nos aros enferrujados. O ranger daquilo deixava gosto ruim na boca.

    Roberto puxa a cadeira do paciente da frente da mesa até a porta. Ele empurra o garoto cinza para perto da mesa, e se diminui acendendo um cigarro, sentado na porta aberta.

    Cabeça inclinada para trás com o rosto para cima.

    Estava amarrado a si mesmo naquela camisa de força sem saber onde estava. A calça moletom que vestia, além de suja nas cinturas, parecia estar rasgado nos tornozelos.

    O cabelo branco do garoto ainda pingava água para trás no chão. Água de mangueira. Não parecia nem acordado ou dormindo, mas estava mexendo a boca.

    - Já tomou café, Rogério? – Perguntou a doutora.

    Inclinando a cabeça meio zonzo, ele parece estar voltando a si.

    - .... Eu não sinto a minha perna...

    A doutora troca olhares com o enfermeiro sentado na porta, sem saber como abordar aquilo.

    - .... Rogério, ontem à tarde na oficina de Artes, você atacou a enfermeira Sueli, e arrancou um pedaço da orelha dela. Você se lembra disso, não é?

    Engolindo seco o pedaço de doce na boca, o garoto olha pelos cantos das janelas e para fora da sala, no topo das arvores atrás da doutora, como se procurasse algo.

    - .... Porque eu fiz isso?

    - Eu não sei... espero que você me diga. – Cruzou a doutora os dedos e colocou as mãos sobre a mesa. – É por isso que você está amarrado nessa camisa de força, e eu estou aqui!

    De olhos turvos e vermelhos, o garoto encara os cantos da sala, atrás da doutora, vendo alguma coisa o lado de fora da janela do segundo andar.

    - .... Você pode me contar qualquer coisa, Rogério, você sabe disso, não é?

    - Quando é que eu vou poder tomar os meus remédios de volta?

    - Rogério, você atacou duas enfermeiras ontem. – Disse a doutora. – Você se recusa a comer comida, não quer tomar banho nunca e não obedece a ninguém aqui! Você precisa deixar a gente ajudar você para que você fique bom... ou você nunca vai sair.

    A janela. Ele encara a janela com o medo tomando conta de seu rosto.

    - .... Ninguém sabe como é ser eu... – Murmurou o garoto. – Todos me obrigam a fazer coisas que eu não quero, e quando eu fico irritado, acham que eu estou errado... eu não estou errado... nunca estive errado...

    Atenta a doutora o vê encolher na cadeira de rodas com os olhos espremendo lágrimas.

    - Você ainda consegue ver os monstros negros? – Questionou a médica.

    - Não são monstros... são pessoas.

    - E porque não são monstros? – Perguntou a medica.

    - Porque elas não fazem nada, elas só ficam lá paradas olhando para mim!

    Lágrimas correm pelas bochechas acinzentadas do garoto.

    - Você está vendo-os agora? – Perguntou Lucia.

    Amarrado a si mesmo, o menino fecha os olhos acenando com a cabeça que sim.

    Ele chora em silêncio perdendo o folego.

    Sem se dar conta, a medica se levanta dando a volta na mesa, se abaixando na cadeira de rodas.

    O cigarro na mão do enfermeiro queimava sozinho.

    A janela. Estava lá desde o começo.

    Tinha mais que dois metros de altura e se mexia o mais lento possível entre os coqueiros do hospital. Era negro, hominídeo e informe. Era a escuridão mais escura que a própria escuridão. Não tinha rosto ou semelhança humana alguma, apenas um lugar vazio, sem vida ou acontecimentos.

    Inconcebível. Mórbido. A visão imóvel ao céu continuava a olhar para ele.

    - Você lembra do exercício que nós fizemos? – Cochichou a doutora. – Fecha bem os olhos e o mande embora com toda a força que você conseguir!

    - Eu não quero morrer de medo! – Balbuciava o menino.

    - Feche os olhos bem forte, e os mande embora com bastante força!

    O menino encarou aquilo uma última vez e quando abriu os olhos, aquilo já tinha desaparecido.

    Visão do inferno. Lucia só pensava em voltar para a igreja, trabalhando em um lugar daqueles.

    Não só ela, mas os outros médicos já passaram e ouviram sangue cair no chão daquele lugar mais que uma vez. E ainda assim, depois de tudo que o hospital já presenciou, nenhum crucifixo ou bíblia aberta, se encontrava a vista.

    As paredes brancas e limpinhas, pareciam segurar sangue nos alicerces dos prédios.

    Em conjunto com a doutora e mais uma enfermeira, Roberto levou o paciente até a enfermaria onde o aplicaram uma dose baixa de calmante na veia misturado com soro. O garoto não comia a dias e estava perdendo peso considerável.

    A beira da anorexia.

    Em seguida o tiraram daquela camisa de força reforçada com couro, e o levaram de volta para seu quarto, em sua cama.

    Só aquilo era o suficiente para estragar o fim de semana dela. Não, não tinha forma certa de se lidar com aquele tipo de coisa. Lucia ouvia dos doutores mais velhos, que precisava de anos de otimismo, talvez até religião, para criar uma casca mais grossa para aquele tipo de coisa.

    Os pacientes idosos eram os piores.

    Ela só queria tomar um café preto, forte, que tinha ali no refeitório dos funcionários e ir embora.

    Ela colocou mais uma caneca do café, e pôs a garrafa de volta na bancada da cozinha.

    Fumando um cigarro atrás do outro, Roberto entra pela porta do lugar, a vendo sozinha, e também se serve do café feito por ela.

    Um pouco quente para ele.

    Um pouco de silêncio entre os dois colegas de trabalho.

    - Você acredita em Deus, doutora?

    Ela olha séria para ele com cara de quem não queria saber de mais nada.

    - Você acha que Deus tem algo a ver com aquilo? – Disse com a caneca perto da boca.

    - Claro que não, doutora! – Disse o homem se sentando em uma das mesas de plástico perto dela. – Não sou médico, não sou nenhum profissional da saúde mental, como a senhora mesmo sabe, só acho que tem que ter um motivo para essas coisas acontecerem...

    - Todos sabem quem ele é, Roberto, todos sabem porque ele veio parar aqui! O caso do garoto foi parar até na televisão. – Dizia ela. – Seria estranho se ele não tivesse sequelas.

    Ela se conteve mudando de postura.

    - Crescer daquele jeito... Jesus... onde Deus estava com a cabeça de deixar aquilo acontecer? – Disse com baixo tom.

    Lembrando da reportagem que tinha passado em um domingo de manhã sobre aquele menino que virou celebridade de uma forma horrenda, o enfermeiro olha para o chão meio perplexo.

    - A senhora sabe se ele vai ser levado a Fundação Casa?

    - Não, aquilo é diferente. Ele não é criminoso. Fez aquilo em autodefesa. – Disse ela em dúvida. – O que estou dizendo... o conheci a pouco tempo e já estou tomando decisões precipitadas.

    - Ele é só um garoto. – Disse Roberto como se a reconfortasse.

    - É, queira Deus que sim!

    Faminta e já cansada daquela consulta, a ruiva deixa o copo de café para trás, pega a bolsa ao lado, e vai embora sem dar mais resposta.

    Lucia tinha cursado duas faculdades que quase levaram dez anos de sua vida. Cansada e mãe solteira, ela esperava tratar pacientes com depressão, talvez alcoólatras, viciados em crack, no máximo aquelas mulheres que abortavam e se diziam mães, e não um possível assassino em série psicopático.

    Ela sentia que aquele peixe, mesmo sendo uma criança, era grande demais para ela fisgar. Era muito chão para cobrir sozinha. Era muita bizarrice acontecendo com uma pessoa só, ainda mais na idade dele.

    Aquilo era um campo minado para ela.

    A quase dois anos e meio, bem perto da época em que entrou para trabalhar no hospital, Lucia acompanhou o tratamento de uma paciente de cinquenta e nove anos que dizia ter matado e estuprado seis crianças além de suas duas filhas adolescentes de dezesseis anos.

    O senhorzinho simpático que era cego de um olho, e que oferecia os doces de abobora que fazia no hospital naquela época, contava a ela e aos outros novatos, em conjunto aos médicos mais velhos, sobre as coisas que fez ainda moço.

    Só foi preciso um dia de entrevista com o Diabo, para ela ficar descrente em Deus.

    E mesmo depois de saber que o velho foi assassinado com um travesseiro em seu rosto, por outro paciente durante a madrugada de natal, ela não teve pena. Disse que ele mereceu. O condenou ao enxofre, e ficou sem saber que aquele mesmo homem foi abusado pelos tios quando criança.

    Parte 2: Aquilo No Escuro

    O vento assoprava forte com a chuva do lado de fora. De certa forma em silêncio, se escondendo entre as nuvens pesadas e negras.

    Com suas janelas fechadas, e suas cortinas pesadas cobrindo a pouca luz da lua, o dormitório daquele hospício ficava mais isolado do mundo, ao decorrer da noite. E com a promessa de esconder o sol para sempre, a chuva começou a assobiar por entre as telhas levantadas da calha, derrubando o mastro da bandeira da cidade, do alto do terceiro andar, do prédio ao lado.

    Agora, com Rogério acordado, o frio da noite passou a ser um sussurro que o arrepiou a espinha de olhos abertos.

    Tenebrosa era a noite, e frio era o chão.

    Ele se encolheu o mínimo em baixo dos dois cobertores e olhou para o pequeno armário de toalhas vendo se não tinha nenhuma sombra à espreita, a encará-lo.

    Arrepios na espinha o conteve. Se não estavam ali, estavam zanzando em outro lugar. Era questão de minutos ou até horas até aparecerem, ele tinha certeza.

    Com a bexiga ardendo, meio suado e assustado com o baque do metal do lado de fora, ele se levanta, se sentando na cama, arruma o suéter velho no corpo, e puxa o cobertor para o lado, se esticando para fora do colchão.

    Com pés tímidos e pequenos, o garotinho de cabelos brancos, pisa no chão calçando as sandálias geriátricas, e se equilibra arrumando o cabelo atrás da cabeça. Ele ascende o abajur da cabeceira da cama de solteiro, e se arruma para fora do quarto, abrindo a porta bem devagar.

    Não tinha ninguém no corredor, era o mesmo silêncio de todas as noites, sem deixar dúvidas.

    Um suspiro foi o suficiente para se recompor e começar a andar.

    Como se fosse azia, ele sentiu o gosto dos comprimidos subirem boca acima, misturado com algo pior que um simples mal hálito. Parecia até que algo o segurava pelo pescoço durante o sono.

    Ausência de água. O copinho dos comprimidos que tomava antes de dormir, ainda estavam no criado mudo ao lado do abajur enferrujado.

    A boca dele estava meio seca de certa forma.

    Duas aftas no fundo da boca. Uma era do lado de fora da gengiva, a outra era para dentro.

    Abriu a porta do quarto, saindo de forma tímida, e viu que além dos quadros dos doutores a olharem para ele do alto, os relâmpagos potentes da tempestade faziam luz no corredor escuro.

    Ele caminhou em direção a escada vendo os senhores de bigode e terno nas molduras, e foi se diminuindo de frio, encolhendo-se dentro das mangas daquele suéter fino.

    Olhando para trás com receio de que alguém o visse fora da cama, ele desce os degraus daquela escada velha, e se permite respirar um pouco melhor.

    Ninguém a vista na enorme sala de estar. Apenas os três longos sofás com algumas almofadas espalhadas por ali.

    Era o mesmo cheiro de mofo de sempre.

    Sem parar para procurar por alguém, ele passa pela sala e segue pelo pequeno corredor de oficinas ocupacionais.

    Luzes apagadas como sempre. Portas trancadas como sempre.

    Ele vira à esquerda em outro pequeno corredor e empurra a porta leve entrando no banheiro.

    Cheiro de cloro.

    Ladrilhos brancos com fissuras negras faziam o lugar mais escuro. No teto branco, só uma lâmpada pequena era pendurada por dois fios desencapados. Espelho comprido na parede esquerda, e as cabines na parede da direita. Sim, amplo. Cheiro de limpeza apesar das loucuras que os loucos faziam ali.

    Sangue e fezes eram o mínimo que já se foi esfregado ali.

    Rogério já tinha visto o que outros pacientes podiam fazer durante surtos, era por isso que ele não usava o banheiro com outros.

    De certa forma gostava de ficar sozinho nesses momentos à noite. Isso o fazia lembrar de casa.

    Ele vai até a penúltima cabine, abre a porta tomando espaço e levanta a tampa do vaso sem se preocupar ao redor. Os ladrilhos acima da descarga pareciam estar descolando do rejunte. Pareciam estar se mexendo.

    Como se fosse a própria brisa da noite, ele sente algo se aproximar por trás, lentamente, com uma intenção estranha. Talvez até maliciosa.

    Dos pés à cabeça seu corpo arrepiou, e ele teve certeza que uma das sombras estava ali.

    No momento em que apertou a descarga, ele ouviu algo como uma batida na porta de uma das outras cabines.

    Ele levantou o rosto pensando ser outro paciente, mas não ouviu passos.

    Outra batida segue em um curto intervalo para mais duas. Mais duas batidas fortes viram socos.

    Ele se vira, puxa a porta da cabine e se tranca lá dentro, subindo no vazo descalço, com medo de ter sido descoberto.

    Mais dois baques seguidos.

    Chutes.

    Baques fortes o fazem ouvir as portas das cabines baterem a ponto de serem arrancadas de suas juntas e serem arremessadas para cima e para os lados, em uma ventania de um tornado amedrontador.

    Ele sentiu a parede as suas costas esfriarem de uma forma que até machucava ao toque.

    Ele não suspeitava. Estava acontecendo. Ele conseguia sentir na pele.

    Vaso por vaso, as latrinas e as descargas d’águas das privadas começaram a arrebentar e explodir, alagando o lugar.

    O espelho comprido na parede estourou em estilhaços sobre a pia de mármore. Com força, as vigas dentro das paredes começaram a ranger, e o lugar parecia prestes a colapsar em cima dele.

    Estava se aproximando dele. Ele conseguia sentir aquele mesmo aperto no peito conforme tentava prender a respiração.

    Não, não podia ser. Rogério não queria que fosse aquele.

    Ele pedia para que alguém viesse ajuda-lo, mas não conseguia abrir a boca. Não podia dizer nada. Se respirasse, o desafiaria, se abrisse os olhos, o insultaria. Se pedisse por ajuda, ele apareceria.

    Sem poder fazer nada, Rogério começa a gemer perdendo o folego conforme chorava.

    Foi então que a sombra apareceu diante dele.

    O arrepio na espinha o fez olhar para cima, e ele se arrependeu de ter desafiado a escuridão viva.

    E viu ele, no canto alto do banheiro, saindo do teto em uma penumbra liquida que escorria negro pelas paredes, algo completamente diferente da realidade em que as pessoas pisavam. Era poderoso, vazio, desprovido de qualquer emoção humana ou possibilidade de parecer mentira. Mas era mentiroso por si só, perverso, tinha vindo se rastejando de lugar nenhum, e via aquele garotinho de cabelos brancos como inimigo.

    Aquela coisa fora do comum estava olhando para ele.

    Maldita. Traiçoeira, peçonhenta.

    Era mais tenebroso que os senhores do inferno. O inominável, o abominável.

    Vinha para vencer acima de qualquer custo. Vinha para conquistar.

    O garoto se levantou olhando para cima, enquanto segurava o folego dentro da boca, e viu aquilo se esticar para fora de seu buraco, tentando alcançar. Rogério explodiu em adrenalina saindo da cabine por debaixo da porta, e saiu correndo do banheiro em ruinas sem olhar para trás.

    Três horas depois naquela manhã o guarda do portão achou o garoto sentado e abraçado as próprias pernas, se escondendo atrás da caixa de força do hospital com um olhar catatônico. Ele estava com os pés sujos de barro, estava sem os chinelos, tinha caído e se arranhado no jardim da enfermaria. Com fome acima de tudo, mas dizia que não queria voltar para o dormitório.

    Sem saberem o que fazer para acalma-lo, além de dopa-lo de novo, as enfermeiras restantes do turno da noite, fizeram os curativos em seus joelhos, braços e deram de comer o que ele pediu. Pão, manteiga, e leita com café, onde ele molhava o pão.

    Depois das tarjas pretas, o garoto desmaiou em sono no sofá do dormitório, e foi levado ao seu quarto. Sem mais cuidados para sua esquizofrenia ou medidas de segurança para ele ou para os outros.

    Sozinho no mundo mais uma vez.

    Parte 3: Um Mundo em Chamas

    A movimentação estranha no hospital havia mexido com o funcionamento do lugar. O último carregamento de remédios havia chegado na segunda, alguns enfermeiros pararam de vir na terça pedindo a conta, outros simplesmente desaparecerão. Na quarta de manhã, fora do dia e do horário de visitas, as famílias dos pacientes começaram a aparecer para os doentes mentais ainda queridos, sem permissão da direção ou de um médico especialista.

    O lugar virou um formigueiro de gritaria e movimentação de carro.

    Sozinho no mundo o garoto de cabelos brancos apenas se sentou no refeitório, e ficou vendo os familiares levarem seus fardos para casa.

    Algo o incomodava.

    Como sempre esteve sozinho e sempre tomou conta de si mesmo, ele queria sair de lá com as próprias pernas e de cabeça erguida, mas não sabia como. Os muros tinham mais de três metros de altura e estavam cobertos com arame farpados. Tinha o matagal da parte de trás do hospital, por onde o caminhão de lixo vinha pegar os restos, mas até lá estava trancado e era íngreme demais do outro lado para que descer sem se machucar.

    Fazer uma trouxa de duas cuecas, duas meias e uma blusa seriam fáceis. Os tênis surrados ele tinha no armário, o embrulho ele poderia improvisar com uma cortina ou um lençol, mas o problema maior que ele não tinha planejava, era para onde iria, com que dinheiro e o que comeria quando chegasse lá.

    Passar fome ele estava acostumado. O pobre garoto sem influencia nenhuma na vida tinha apenas o seriado chaves como exemplo. Talvez até um exemplo de perseverança enviado por Deus.

    Ficar naquele lugar sem supervisão nenhuma dos enfermeiros não era opção. O ar estava frio e o céu já estava escuro a dois dias, prometendo com trovões e nuvens rajadas uma certa danação aos mortais ainda vivos, que ninguém poderia parar.

    Uma vez um dos pacientes que estava ali a mais tempo tentou molestar Rogério durante o banho. Ele nunca mais quis sentar ou falar com ninguém.

    A cabeça dele apodreceu mais ainda.

    Ele já tinha separado os tênis fajutos que o hospital tinha dado, enrolou as duas meias dentro de forma prática, e saiu a procura de um gorro no quarto ao lado.

    Um paciente acompanhado de dois familiares esbarra nele sem olhar para trás. Sem dar muita atenção, ele nota aquela certa pressa e uma conversa sobre passagens de avião.

    Não pensava se iria chegar longe ou como estava as coisas estavam do lado de fora daquele, ele apenas pegou o boné que viu no alto do cabide, naquele quarto, e voltou um pouco apressado para o seu quarto, arrumando mais uma vez de forma aflita os tênis com meias, o moletom e a blusa rasgada nas mangas.

    Um enfermeiro passou no corredor correndo em um pique apressado, sem ver a fuga dele.

    Por alguns segundos ele sente o coração pular no peito.

    A inocência ainda não tinha arrumado uma desculpa.

    Ele amarra todas aquelas coisas no lençol da cama, e escuta mais conversas no corredor do dormitório.

    Uma trouxa mal amarrada todo mundo saberia, pensou ele.

    Pensou nas caixas que vinham os remédios, pensou que fosse ficar naquele hospício para sempre. Ficou meio desesperado, e pensou em sair de lá só com o moletom rasgado. Ele não tinha tempo para pensar, talvez ao anoitecer aquele lugar estaria vazio.

    Agora que tinha posto o boné na cabeça, estava se sentindo mais confiante.

    Calçou os tênis que tinha separado e jogou as sandálias sujas para perto da janela.

    Sentindo que estava prestes a fugir, ele desceu as escadas daquele lugar mofado e foi passando pelas pessoas preocupadas, que arrumavam bagagens e faziam planos para sair da cidade.

    Alguém que largou o que estava fazendo, viu o garoto passando de relance apressado. Já pensou logo na fuga, o que era verdade. E era verdade, os longos cabelos brancos do garoto e sua pele cinza entregavam de longe.

    - Rogério, onde você vai? – Exclamou de longe.

    O menino olha por cima do ombro, e quase cai esbarrando em uma moça na saída do lugar.

    Ele desce os poucos degraus da escada e vê uma sequência de carros parados no complexo de prédios do hospício.

    Garoa cai gelada no pescoço dele.

    Como se fosse para assustá-lo, o vento assopra seu boné para longe, e ele se vira se protegendo da chuva.

    - .... Rogério, a onde você vai!? – Berrou o homem na ventania.

    - .... Eu vou passar na consulta com a doutora, Lucia.

    - A doutora Lúcia não veio hoje. Volta para dentro, agora! – Disse de forma ríspida com uma autoridade, que Rogério sentiu efeito.

    Mas naquele momento, naqueles poucos segundos. O menino vê duas sombras negras aparecer de trás do enfermeiro pulando como duas crianças o mais alto que podiam, se tremendo todo e balançando todos. Rogério sentiu o frio na espinha descer mais gelado que aquele frio. Ele tinha perdido completamente a força das pernas.

    De repente, como se tivessem visto o menino na calçada, as sombras olham para ele e dão dois saltos no alto para cima dele.

    Empurrado ao ponto das lágrimas, Rogério geme de medo gritando, e sai correndo sem olhar para trás, chamando atenção de algumas pessoas que por ali passavam.

    Ele corre, e corre de medo.

    Precisava se esconder o mais rápido possível, porque só assim elas desapareciam.

    Então correu, correu e correu sem respirar até os prédios dos consultórios perto do estacionamento.

    Estava enxugando as lágrimas para poder ver melhor.

    Tinha pessoas saindo pela porta de trás com alguns guarda chuvas. Pessoas que o percebera correndo e chorando. Sem querer levante mais alarde, ele passa de cabeça baixa limpando o rosto e arrumando os cabelos longos atrás das orelhas.

    Não olharam muito para ele. Não sabiam o que perguntar, não sabiam se queriam perguntar.

    Por mais que estivesse cheio, aquele lugar estava mandando as pessoas embora com berros e má educação. Parecia estar vivo, parecia estar agonizando.

    Ele passa por entre as pessoas sem incomodar, e sobe as escadas para o segundo andar procurando alguma sala aberta para se esconder.

    Talvez a sala acolchoada estivesse aberta. Aquelas criaturas tinham aversão aquele lugar. Diferente dos outros loucos, aquele lugar branco sem cantos era reconfortante para o menino.

    Ele passa pela sala fechada de doutora Lucia, e não vê ninguém. Passa pelo consultório do doutor Rubens e não vê ninguém. Passa pela sala da doutora Lidiane e não vê ninguém.

    Ele dobra o corredor a direita, a caminho da sala acolchoada, e vê pela vidraça da janela que lá fora, na chuva, no gramado das estátuas de mármore, as duas sombras ainda estavam saltando para ele de uma forma medonha.

    Eram tristes e empolgados ao mesmo tempo.

    Estavam olhando para ele enquanto pulavam, e ele sabia que aquele nó em sua garganta, era algo perigoso.

    Com medo de perder aquelas coisas de vista, ele caminha com as mãos na vidraça, as encarando de volta sem piscar.

    Estava de costas para sala acolchoada, ele sentia aquele arrepio na nuca como se fosse uma câimbra fria. E os chuviscos frios do mal tempo ainda caiam sobre aquele lugar doente.

    Sem tirar os olhos daquelas coisas, ele vê relâmpagos claros cortarem as nuvens negras como os tapas de seu pai acertavam seu rosto. Eram fortes, chegavam sem ninguém perceber. E quando chegavam, vinham com o barulho do trovão.

    Com a força assustadora da natureza, um raio acerta o topo de um dos postes a quilômetros do hospício. O barulho é ensurdecedor para todos no hospital. E de repente, a luz do corredor acesa acima dele, se apaga.

    Ele olha para cima vendo as lâmpadas compridas piscarem, e para o resto do corredor, vendo e ouvindo alguns enfermeiros e doutores subirem as escadas e corredores adentro.

    Quando ele volta a vista no gramado, as sombras já não estavam mais lá.

    Ele amolece começando a chorar.

    Ele se vira, agarra a maçaneta daquela sela branca e torce em vão. Estava trancada.

    O garoto entra em pânico, e começa a puxar os cabelos da cabeça murmurando palavrões consigo mesmo.

    Ele precisava se mover ou as sombras o alcançaria.

    Ele pensa em pedir ajuda, pensa que poderia ter alguém para afastá-lo daquelas coisas, e corre pelo corredor escuro atrás de algum adulto.

    Lá, ele não podia acreditar, doutora Lucia tinha acabado de destrancar sua sala e entrar apressada.

    Assim como ela, os outros médicos entram para as suas salas um pouco apressados cada. Eram seis, alguns tinham até ajuda dos enfermeiros.

    Pareciam estarem atrás de documentos e de seus pertences.

    Ele tinha vergonha de pedir, mas não ia jogar essa oportunidade fora.

    Ele se aproxima da sala dela empurrando a porta bem devagar, e pede licença.

    - .... O hospital vai fechar? – Não soube se dirigir a ela devido ao medo de qualquer coisa.

    A ruiva alta calçando tênis e calças compridas em seu jaleco, olha por cima da mesa para ele mexendo rápido em uma das gavetas.

    - Sim, ele fecha amanhã...

    Ele encosta na porta colando a mão sobre os olhos, e agoniza sem saber o que dizer.

    A doutora parecia estar séria, talvez até nervosa com alguma coisa.

    Ele não queria estar ali, não queria estar vivo.

    - .... Eu não vou poder tomar os meus remédios, não é?

    - Não até a prefeitura reabrir esse lugar. – Disse agachada atrás da mesa.

    Ela enfia a quinta chave do pingente na gaveta com pressa e a quebra ao torcer.

    - Merda, merda... porra!

    Ela se levanta abaixada e puxa a última gaveta mais uma vez.

    Ele engole as próximas palavras a seco.

    Como se não bastasse o mundo estar pegando fogo, a doutora tinha agora o celular tocando no bolso de trás de sua calça.

    Ela estala a língua se erguendo, pegando o celular do bolso e atendendo irritada, sem um pingo de paciência.

    - O que você quer agora Patrícia? Eu já não falei que chego em casa daqui a pouco?

    O menino olha atento.

    Só com um chute em baixo da última gaveta, ela quebra o fundo e deixa os documentos, cadernetas e envelopes se espalharem no chão.

    - .... Eu sei... eu sei... eu sei que você está preocupada comigo, mas daqui a pouco a mãe já chega, viu?! Eu não vou demorar aqui prometo... tranca a casa e desliga a televisão!

    Se abaixando no chão de novo, ela desliga o telefone e põem no bolso.

    Lá estava a busca dela, era o pagamento do mês com o décimo terceiro que ela tinha vindo buscar. Exatamente o que ela precisava para deixar a cidade e talvez o município com a filha.

    Por alguns segundos ela pode se sentir aliviada.

    - A doutora vai embora? – Perguntou o menino parado na porta.

    Ela pega aquele envelope gordo e guarda na bolsa em cima da mesa, já puxando acima do braço.

    - Não, eu vou... tirar as minhas férias desse ano. – Mentiu ela dando a volta na mesa. – As coisas não estão muito boas lá fora ultimamente. O governo até mandou fechas as escolas...

    Ela caminhou na direção da porta o levando para fora só com a presença.

    No corredor, o ultimo medico havia trancado sua sala com a chave e descido as escadas com uma mochila nas costas falando ao celular.

    Ela olha para o colega de profissão, olha para o menino se tremendo de frio, e começa a engasgar o cambalear com o fardo.

    - Escuta Rogério, amanhã de manhã a prefeitura vai mandar um ônibus para cá, para levar os pacientes para São Paulo para passar no médico. – Mentiu ela coçando a sobrancelha sem olhara ele. – Esteja de pé bem cedo e vestido porque eles não vão esperar quem se atrasar, tá bom? Fica bem viu.

    Ela sorriu para ele de forma simpática deixando o para trás na escuridão do corredor.

    Como se fosse uma âncora jogada ao mar de um navio alto. A consciência dela a segura no meio do corredor de forma sobrenatural.

    Ela tem medo só de pensar no que aconteceria se levasse o menino, ela teme pela filha e por si mesma, isso porque sabia porque o garoto tinha vindo parar ali.

    A angustia de fazer uma escolha de que se arrependeria depois, a desfez em estilhaços.

    Ela se endireita com a bolsa no ombro respirando fundo e volta ao menino parado no escuro.

    Ela chega até ele e o segura de forma gentil pelo pulso, quase que acariciando.

    - .... Rogério escute com bastante atenção o que eu vou falar agora! – Murmurou ela perto do rosto dele. – Você vai até a lavanderia, vai pegar o máximo de lençóis que puder e vai se encontrar comigo no estacionamento, que eu vou te levar para minha casa. Você entendeu?

    O coração do menino queima como uma chama forte quase o fazendo sorrir.

    Ele apenas acena com a cabeça para ela.

    - Então vai lá, rápido!

    Ele desce a escada correndo para a própria salvação.

    A doutora já se sentia melhor, mas não sabia se ia dar certo. Não sabia se conseguiria lidar com ele e com a própria filha ao mesmo tempo. Ele parecia ser uma criança que precisava de atenção redobrada. Espera-lo na chuva coçando as sobrancelhas aflita, pensando se foi uma boa ideia ou não, não iria ajudar em nada, e ela sabia. Não tinha como voltar mais atrás agora.

    Ela o colocou no banco de trás do carro com as coxas de cama sobre seu colo, e disse que quando chegassem no pedágio, ele iria ter que se esconder por não possuir documento nenhum. Aprovar a passagem dele dentro da cidade sem um RG não seria tão fácil.

    Com medo da chuva o garoto só escutou e concordou com a cabeça.

    Ele tinha se salvado finalmente. Mas tinha saído de um inferno para entrar em outro.

    CAPÍTULO 2

    As Coisas no Escuro

    Parte 1: Maior Abandono

    De forma rápida e passageira as gotas de chuva do outro lado do vidro do carro, escorriam entre umas às outras, se unindo de forma rápida e fácil. Estava escuro e pesado lá fora. Quase anoitecendo pelo que ele via. As luzes dos postes e os faróis dos outros carros rápidos tinham sido ligados agora a pouco.

    O inverno estava chegando e era uma das estações que ele mais gostava.

    Ele reclinou as costas de volta no banco, puxando as coxas no colo, e viu a doutora séria dirigindo o carro meio tensa. Olhou no retrovisor bem rápido e desviou o olhar do dela. Estava se sentindo deslocado, e não queria ser um fardo.

    Sentiu um pouco de responsabilidade na hora, mas não sabia o que era.

    Estava apertando com força o machucado no rosto por cima do curativo olhando para as serras do município ao longe. Relâmpagos e trovões corriam nos céus mostrando a ele que a escuridão seria longa daquela vez.

    Ele só torcia para não ter sido seguido pelas sombras.

    Mas como evita-las se elas estavam em todos os lugares, atrás de todas as pessoas.

    - Rogério, se abaixa, a gente está chegando no pedágio! – Avisou a doutora.

    Ao ver soldados armados de fuzis e cobertos daquelas roupas brancas de contagio, o garoto se abaixa para fora do banco e se cobre com toda aquela sujeira fétida dos outros pacientes o mais rápido que pode, e não mexeu um musculo.

    A doutora temeu mais que um multa daquela situação. Ela viu o que faziam em outras quarentenas pelo país.

    - Eu preciso usar o banheiro... – Sussurrou ele.

    - Fica quietinho e não se mexe, garoto. – Jogou ela mais alguns panos sobre ele. – Vai ser, eu prometo.

    Vendo todo um armamento bélico de caminhões, tanques e jipes do outro lado do pedágio, Lucia diminui a velocidade como ordenado por um dos soldados em hazmat, e toma a terceira passagem da esquerda para direita. Já pegando a bolsa no banco ao lado e procurando os documentos na carteira.

    Luzes fortes dos holofotes cobriram o carro vermelho de cima para baixo.

    Aquele tanque e aqueles caminhões com soldados armando tendas no acostamento não estavam lá quando ela passou pelo pedágio mais cedo.

    Com receio Lucia temeu de que não fosse conseguir sair da cidade tão cedo. Logo lembrou da filha e da mãe que era diabética grave. Sendo diabéticos e outras doenças acima dos sessenta, grupos de risco extremo.

    A noite só estava começando para ela.

    Coberto pelo hazmat amarelo de plástico, usando botas de borracha, dois soldados veem ao carro dela com uma caderneta e uma lanterna. O outro que deu a volta em seu carro com a lanterna acesa, tinha o dedo no gatilho do enorme 7.62.

    Duas batidas no vidro do motorista, eles ordenam. Meio descuidada, ela deixa o celular cair por entra a porta e o banco pedindo para esperarem um pouco com um gesto.

    As cabines do pedágio tinham sido removidas aquela manhã. Só deixaram grades e arames farpados cercando a gaiola que virou a cidade.

    Um certo silêncio estava aquele lugar. Era toque de recolher a quase uma semana. Carros, caminhões e transporte público foram fechados a mais de um mês.

    Ela rezava para que ter ido pegar o pagamento seja uma boa desculpa como foi da última vez.

    Com um sorriso discreto no rosto e o RG na mão, ela abaixa o vidro vendo os outros dois motoristas sendo interrogados.

    O frio invade o carro a deixa mais sem jeito ainda.

    - Boa noite... – Disse ela.

    - Boa noite! Documentação do veículo por gentileza. – Voz grave meio rouca.

    Ela coloca o bolsa de volta no banco do passageiro, encosta o celular e a carteira, e abre o porta-luvas pegando uma fina pasta de documentos, que guardava em casos de paradas como aquela.

    - Aqui... – Ela entrega as cópias dos documentos vendo o outro com a lanterna dar a volta no carro.

    Escorrendo água da chuva por cima do plástico e da máscara, o soldado olha para ela sério, e olha para os papéis.

    - Desliga o carro por gentileza, senhora.

    Movimentação mais à frente, ela vê duas caminhonetes descerem o acostamento cantando pneu de volta à cidade. Talvez uma dúzia em cada um dos carros. Meia correria.

    Estava pior do que ela imaginava.

    Ela apoia o cotovelo na porta, apertando a chave na mão nervosa.

    O homem olha os documentos, olha algumas numerações, e entrega de volta a ela anotando a data, hora e nome de quem era aquela no carro.

    Sistematicamente efetivo.

    Grossa e azul, a máscara a impedia de ver muito do rosto dele. Nada para se perguntar ali, ela queria que fosse o mais rápido possível. As notícias corriam rápido em tempos como aquele, mas de certa forma ela via que pelas sobrancelhas juntas daquele sujeito, as coisas pareciam estarem longes de acabar.

    - A senhora tem noção da quarentena nacional?

    - Sim, eu tive que deixar o meu bairro mesmo só por causa do meu trabalho.

    O soldado só acena com a cabeça escrevendo, parecendo nem se importar com o que ela dizia.

    - Foi mais pelo meu pagamento, sabe!? Desde que as coisas aumentaram de preço a gente tem que ficar atento com o dinheiro. – Sorriu.

    Um dos dois carros a algumas vagas da dela é liberado. O barulho dele cortando a pista molhada a fez olhar pelo retrovisor vendo o outro soldado terminar de dar a volta no carro.

    - A senhora pretende sair da cidade nos próximos dias? – Perguntou o homem amarelo.

    - Não, eu acho melhor ficar em casa por enquanto, até as coisas melhorarem.

    Ele rabisca mais alguma coisa na caderneta.

    - A senhora trabalha no hospital no pé da serra, certo? – Disse mostrando que não era da região.

    - Sim, eu sou doutora e enfermeira lá.

    Respostas diretas para perguntas diretas.

    - Quantas pessoas a senhora tem em casa?

    Ela para alguns segundos olhando os lençóis brancos atrás do carro e disfarça.

    - É a minha filha, meu irmão e eu...

    - A senhora pretende abrigar mais alguém nos próximos dias?

    - Não, porque?

    Prendendo a caneta no alicate da prancheta, o soldado destaca um pedaço do pé da folha e entrega para ela dentro do carro.

    - Segunda-feira a partir das seis e meia da manhã, a senhora vai ligar nesse número no gabinete da prefeitura e vai dizer quantas pessoas vocês são em casa. Na terça a gente vai estar passando de rua em rua distribuindo enlatados e derivados para todos. Não saia de casa, não vá ao mercado ou ao médico, vão estar todos fechados. Se encontrar ou souber que algum vizinho que esteja infectado, a senhora vai ligar para o segundo número grifado aí em baixo em azul, e esperar que a equipe de contenção seja ativada e enviada para o seu bairro. Tome muito cuidado com quem a senhora deixa entrar em sua casa, estão acontecendo muitas ondas de saque pela cidade, e a polícia militar não estará disponível dentro de alguns meses. Siga todas essas regras à risca e você não vai precisar se preocupar com nada. A senhora entendeu o que eu disse?

    Ela acena com a cabeça mais que assustada.

    Com um braço alto o homem de amarelo acena ao outro, do outro lado da grade, e libera a passagem para ela.

    Com um gosto ruim na boca, Lucia torce a chave, liga o carro

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