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O humano do mundo
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E-book329 páginas4 horas

O humano do mundo

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Sobre este e-book

Débora Noal nos convida a olhar para fora e assim descobrir o outro que existe em nós. Ao relatar o lado B do mundo, a partir de suas experiências como psicóloga junto à organização internacional Médicos Sem Fronteiras em projetos no Haiti, na Guiné, no Congo e na Líbia, Débora nos presenteia com uma narrativa sobre seu trabalho e nos convida a refletir sobre o propósito da vida. Nesta segunda edição do seu diário de campo, com relatos do cotidiano profissional de muitos desafios e descobertas, além de reflexões significativas acerca da psiquê humana, a autora nos impulsiona a ponderar exatamente como estamos desempenhando o papel de aproximar as arestas do mundo. "Débora nega radicalmente as fronteiras, qualquer fronteira que não seja a do respeito pela dignidade da vida.O mundo inteiro é sua casa e também sua família." (Eliane Brum)
IdiomaPortuguês
Data de lançamento29 de abr. de 2024
ISBN9786580162208
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    O humano do mundo - Débora Noal

    MEU PRIMEIRO PROJETO MÉDICOS SEM FRONTEIRAS: CICLONE EM GONAÏVES, HAITI

    Viagem

    São Paulo – Panamá – Haiti

    seta 23h, no chão do aeroporto, à espera do próximo voo às 4h

    Adormeci no chão do aeroporto de Guarulhos. Catorze quilos somavam a mochila e o laptop que serviram de travesseiro e descanso para as pernas. Além do carregamento de expectativas, eu levava uma frasqueira de ansiedade. Aguardei com entusiasmo o avião que partiria para o Haiti via Panamá no meu primeiro projeto Médicos Sem Fronteiras. Senti-me inquieta por saber que para fazer um mundo mais humano era preciso permanecer identificada como mais um deles. Era tanto desejo de querer encontrar aquela gente desconhecida que era até difícil respirar. Naquela espera inquieta, acessei o site de MSF para saber mais sobre o projeto do qual eu faria parte. Em uma das páginas estava escrito:

    08/09/2008 — Depois que o furacão Gustav provocou um deslizamento de terra na semana passada, a tempestade tropical Hanna causou sérios estragos à costa do Haiti nos dois primeiros dias de setembro. Muitas cidades ficaram alagadas e continuam com acesso difícil, mas não impossível.

    De acordo com autoridades, entre 25 mil ou 30 mil casas foram destruídas e quase quinhentas pessoas morreram em todo o país. As pessoas têm muito pouco acesso a comida e água potável, e importantes colheitas foram devastadas.

    Na quinta-feira, 4 de setembro, uma equipe de Médicos Sem Fronteiras (MSF) com oito profissionais médicos e não médicos chegou a Gonaïves para arrumar o Centro de Saúde Raboteau, a única estrutura ainda em funcionamento (entre quatro centros de saúde e um hospital) depois das enchentes. Graças ao apoio da população local, foi possível que MSF limpasse o lugar, trouxesse medicamentos e reabilitasse o centro cirúrgico. No dia 5 de setembro, MSF realizou 110 consultas, tratou de 49 feridos e executou 16 cirurgias.

    No sábado, milhares de pessoas começaram a fugir da cidade, depois que as autoridades alertaram em relação à chegada do furacão Ike. O Centro de Saúde Raboteau, apoiado por MSF, continua sendo a única estrutura de saúde funcional da cidade.

    A falta de acesso à água potável para os habitantes da cidade é a questão mais crítica. Todas as fontes locais de água foram contaminadas por causa das enchentes. A preocupação se deve ao fato de que grande parte da equipe médica local fugiu da região.

    MSF não conseguiu alcançar muitas áreas da cidade por causa da enchente, tornando difícil avaliar apropriadamente a extensão das necessidades da população.

    Um médico de MSF foi no sábado ao Saint-Michel-de-l’Attalaye, onde quatrocentas pessoas ficaram desamparadas, sem comida ou água, por cinco dias. MSF trouxe uma criança a Gonaïves para atendimento cirúrgico e distribuiu comida e água do Programa Mundial Alimentar (PMA).

    Uma equipe de MSF, com três pessoas, foi ao Cap-Haïtien para avaliar as capacidades de respostas de emergência e estabeleceu contatos locais para ajudar imediatamente na avaliação no cálculo geral após o furacão Ike. Equipes de MSF não conseguiram chegar a muitas regiões alagadas na zona leste da comunidade. Hospitais e estruturas de saúde foram reportados como tendo sido severamente destruídos nessa área.

    Hoje, as áreas alagadas entre Gonaïves, Port-de-Paix e Cap-Haïtien não podem ser alcançadas, enquanto cidades como Enry ou Gros Morne, que foram fortemente afetadas pelo Hanna, não receberam nenhuma assistência. MSF ainda está insistindo para ter acesso a essas áreas, mesmo que o próximo furacão possa limitar sua capacidade de alcançá-las.

    As atividades de MSF em Porto Príncipe continuam. A organização oferece cuidados médicos e cirúrgicos no Centro de Traumatologia de Trinité; cuidados de emergência em obstetrícia no Hospital Jude Anne; e serviços de cuidados emergenciais e essenciais por meio de clínicas móveis no cortiço de Martissant. Uma equipe de clínica móvel foi ao cortiço de La Saline no começo desta semana.

    Ike, classificado como categoria quatro para furacões, alcançou os arredores do Haiti agora e as chuvas recomeçaram.

    (https://www.msf.org.br/noticias/atendimento-psicologico-se-mostra-essencial-no-haiti/)

    Como fui capaz de existir uma vida inteira sem ter ideia do que se passava naquele país? Quinhentas pessoas haviam perdido suas vidas em um fenômeno de grande magnitude, e eu não escutara sequer uma nota na imprensa brasileira. Quanto valia a vida de um haitiano? E a minha existência, sem fazer nada com o que eu sabia, teria valor? A partir das minhas buscas e descobertas na noite de hoje, comecei a me aproximar desse contexto. Entendi, naquelas buscas, que o Haiti era um país intenso, de uma cultura singular e rica, onde guardava como peculiaridade uma população 95% negra, 80% católica e 80% voduísta. Como fui capaz de ignorar uma nação inteira?

    seta 4 de novembro de 2008 (escrito em diário de papel)

    Je suis arrivé à Port-au-Prince… (Cheguei a Porto Príncipe)

    Sinto a pulsação do meu corpo. Respiração ruidosa e pensamento acelerado. Olhar atento ao devir. Entrega. Meu desembarque no aeroporto foi acompanhado por uma jovem mulher de cabelos bem trançados que se sentara ao meu lado no voo entre o Panamá e Porto Príncipe. O Haiti é aqui – Caetano Veloso reverberava em minha mente.

    À minha espera, um corpulento homem. Com seus aparentes 60 anos de infortúnio, "Albert, chauffeur MSF", como ele se apresentara, permitia externar o cansaço de uma história que se mesclava ao calor – algo similar à abertura das portas de um forno de padaria no verão. Albert erguera acima do próprio tronco uma camiseta com a marca da organização, gesto que respondi com um vibrante aceno e um largo sorriso de alívio por não ter sido esquecida.

    Uma hora é a distância entre o aeroporto e sua nova casa, atualizou-me Albert, com seu olhar perdido na poeira da estrada. Parecia não se comunicar com ninguém além de si mesmo. Em uma estrada de chão batido, coberta por muitas camadas de uma terra vermelha bem fininha, vi com olhos de infância as centenas de pessoas que dividiam suas existências com carros, animais, urros e buzinas. No rastro, a terracota se confundia com o preto das peles, a poeira e o cheiro de palha dos balaios de feira.

    Do lado avesso ao que Albert poderia enxergar, franzi a testa e desejei encostar as pálpebras. Então era assim: terracota, aquela versão da miséria, que agora estava ali, ao alcance da minha retina. Durante o percurso, mantive um desconforto por eles carregarem seus balaios na cabeça e filhos nos braços enquanto eu seguia como uma sinhá-moça dentro do carro. Em meio à terra que nosso carro deslocava, senti vergonha por tornar ainda mais gritante aquela separação entre dois universos tão desiguais. No carro, Albert entonava intermináveis histórias sobre futebol. Eram infinitas as análises técnicas acerca do jogador Ronaldo da seleção brasileira. Nas poucas vezes em que me dirigiu a palavra, indagou-me se eu via com frequência Ronaldo pelas ruas. Logo eu, que busco estabelecer uma distância considerável de futebol, entrei no diálogo como se fosse meu passatempo preferido.

    Ao chegar ao escritório, alocado na lateral esquerda da casa, senti meus pés congelarem, algo contraditório ao calor de 45 °C que o termômetro da casa registrava. Recepção pouco calorosa. Um olhar rápido em minha direção, desviado na sequência em benefício de uma nota fiscal. Todos aparentavam pressa. Uma moça, nitidamente novata, parecia designada a me receber. Estranhei o fato de que a gentileza e a ternura equivaliam a uma função, e não a uma forma de existir. Recebi um kit com toalha e lençóis limpos, e fui encaminhada às minhas acomodações embaixo da escada. A moça gentil me informara que Bea, a administradora que desviara o olhar para as notas fiscais, diria quais seriam os próximos passos que eu deveria seguir.

    A noite se aproximou. Escutei, atenta, as narrativas de projetos MSF vividas pelos companheiros de casa. Eram cenas de um filme a que eu nunca havia assistido. Após o jantar, repousei com a sensação de que ainda tinha muito a assimilar.

    23h. A diferença de fuso horário se instalou em mim com a sensação de exaustão. Meu quarto estava exatamente embaixo de uma escada que ficava na lateral da cozinha, logo atrás do imenso salão que abrigava um pequeno jogo de sofá surrado e dois gatos desprovidos de pelos. Escutei todos os sons que se pronunciavam fora e dentro de mim. E eu, que sempre tive por hábito adormecer rapidamente, acompanhei com atenção os ruídos que me cercavam. Despertei incontáveis vezes. Aliás, talvez nem tenha dormido. Após a meia-noite a luz que era fornecida por um gerador foi desligada, induzindo-me a procurar minha lanterna. Aquela madrugada foi marcada pela sede e inquietude. Permaneci horas vivendo no

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