Vozes à flor da pele: Uma humanitária brasileira em busca de propósito
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Sobre este e-book
Um dos diferenciais da obra é que a autora mescla a narrativa de suas missões a sua vida pessoal. Em ritmo de aventura, e às vezes beirando uma "série" de TV, ela revela os bastidores do mundo humanitário, um setor, em geral, distante e romantizado no imaginário das pessoas. Nas 244 páginas do livro estão expostos, sem filtro e com coragem, seus dilemas nos relacionamentos amorosos e as difíceis escolhas que teve que fazer pelo caminho. Sobressaem-se também as histórias de 11 mulheres – a maioria migrantes e refugiadas – entrelaçadas à voz e questionamentos da própria autora durante a sua trajetória.
Em grande parte de suas missões, por meio de técnicas de comunicação participativa, Fernanda encorajou pessoas em situações de crise a segurar o microfone, soltar a voz, filmar suas histórias e sugerir soluções humanitárias que possam gerar mais impacto em suas vidas. Na curadoria deste conteúdo e na edição da narrativa, a autora contou com a colaboração da jornalista, e ex-editora da revista Marie Claire, Rosane Queiroz. O prefácio é assinado por Maria Paula Carvalho, jornalista que foi da TV Globo e agora está baseada na Rádio France Internationale, em Paris.
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Vozes à flor da pele - Fernanda Baumhard
SUMÁRIO
PREFÁCIO
POR QUE ESTE LIVRO?
parte I
O DESPERTAR PARA A BUSCA DE PROPÓSITO
Pé na África e coração de aprendiz | O que estou fazendo aqui?
A grande virada | De executiva a estudante, de bike, em Amsterdã
Encontro com meu futuro
parte II
PONTES PARA O MUNDO
Malaui – a descoberta da força da voz das comunidades
Life is a mission, meu novo mantra: Índia, Etiópia, Marrocos, Egito e Brasil
Missão: Uganda – luz e caos
parte III
O MICROFONE NA MÃO DAS MULHERES
Missão: Terremoto no Equador – A voz de Sandra, a líder entre escombros
Missão: Inundações no Peru – a voz de Maria, a estudante de matemática
Missão: Conflito étnico no Sudão do Sul – o canto de Khamisa e o clamor do povo Shilluk pela paz
Missão: Migrantes venezuelanos no Brasil – as vozes de Eudilia, a indígena refugiada, e Vilse, a repórter de la calle
Missão: Dor profunda no Afeganistão – a voz de Maryam, por trás da burca
Missão: Sobreviventes da guerilha colombiana – as vozes de Juana, a artesã que tece dor em cor, e Maira, a indígena mensageira da paz
Missão: Uganda, no campo de refugiados do Sudão do Sul – a voz de Lona, a leoa
Missão: Fronteira Colômbia com Venezuela – a voz de Naileth: "Señorita, vá para dentro da Venezuela"
parte IV
A ESTRADA DE VOLTA PARA CASA
Entre monges e Caracas – do Camboja à Missão humanitária na Venezuela
Missão: resgate próprio
AGRADECIMENTOS
FERNANDA é um amplificador de VOZES. PREFÁCIO. MARIA PAULA CARVALHO Jornalista, baseada na Radio France Internationale, em ParisQuando o mundo parece desabar em catástrofes climáticas e conflitos que sobrecarregamos noticiários de drama, Fernanda escreve sobre empatia e compaixão e chama a atenção para o básico: aquilo que é humano em cada um de nós.
Vozes à Flor da Pele propõe uma descoberta conjunta do verdadeiro significado da palavra humanidade, enquanto viajamos por países que são palco das maiores adversidades do planeta. Locais cujos nomes, apenas de ouvir falar, nos causam arrepios. Mas foi nesses lugares que Fernanda encontrou histórias que não podem mais ficar ocultas. Seus relatos são como se as leitoras calçassem suas botas e embarcassem em missão.
Com um humor delicado e muita compaixão, ela nos convida a passear pelo submundo de importantes crises humanitárias. De dentro de organizações internacionais e nos países atingidos por desequilíbrios e fortes tensões, a autora revira um baú de memórias e escuta as vozes que se misturam aos seus próprios pensamentos.
Com a sua câmera, busca dar visibilidade às comunidades afetadas, construindo pontes entre as realidades do terreno e as mesas de decisões internacionais que precisam dar respostas aos problemas, sempre na esperança de que essa ajuda seja mais bem direcionada. Como a autora evidencia, ao longo destas páginas, nenhuma estratégia de resposta humanitária dará certo sem partir de uma base fundamentada nas vozes das pessoas afetadas. Afinal, do que adianta milhões de dólares atravessarem oceanos se o que chega na ponta, nos locais de crise, não é o que aquelas pessoas precisam? Fernanda viu isso in loco. E batalha para que projetos correspondam ao que as comunidades realmente necessitam.
E neste processo de escuta constante, revelam-se histórias de vida normalmente apresentadas como números em relatórios. Este livro traz vozes de mulheres que, não fosse pelo microfone desta gaúcha, jamais seriam ouvidas. Foi assim com Maryam, a mulher por trás da burca, no Afeganistão. Em missões na América do Sul, a autora também relata como foi ajudar sobreviventes de um terremoto no Equador. Essa gente leva o que restou da vida em uma sacola
, como Sandra, a líder entre os escombros
. Dores que se esvaem nas veias abertas do coração latino
da autora.
Eu tenho tido a honra de acompanhar a busca de Fernanda há muitos anos. Nosso encontro fortuito vem do Rio Grande do Sul e a admiração estará sempre presente em meu relato. Fernanda deixou o Sul do Brasil cedo, para descobrir o mundo. Adolescente, foi estudar fora e aprendeu inglês, o que a diferenciava. Porém, nunca aceitou o rótulo de patricinha
e entendeu logo como fazer uma limonada das condições familiares azedas. Sobretudo, ela nunca teve medo de arriscar.
A palavra, o som, o verbo sempre nos fascinaram. Ambas jornalistas, seguimos caminhos distintos: enquanto Fernanda galgava altos postos em comunicação e marketing na costa leste dos Estados Unidos, eu seguia um caminho de reportagem hardnews em televisão, no Rio de Janeiro. Ela estava no topo quando decidiu saltar sem paraquedas, preencher o vazio existencial. Deixou um emprego que, à época, ninguém recusaria, quando a sociedade já descobria que o consumo exacerbado estava destruindo o planeta.
Eu estava em New York, em 2009, quando ela recebeu o prêmioImagens e Vozes de Esperança
, um reconhecimento a profissionais de comunicação que atuam no mundo como agentes de transformação. Nem sempre, contudo, tínhamos as mesmas visões sobre o mundo e essa contrariedade e argumentações constantes alimentam nossa amizade sinuosa – cheia de idas e vindas. A vida sempre dá um jeito de nos reconectar.
Fernanda sabe que para estar a serviço dos mais vulneráveis, paga-se um preço alto na vida pessoal
. Aqui está relatada também a sua batalha como mulher para encontrar o equilíbrio tênue e indispensável entre um relacionamento estável com o companheiro de vida, a família e os amigos e, ao mesmo tempo, resolver o seu propósito pessoal. O que os leitores vão descobrir nas próximas páginas é a tentativa de Fernanda de não ser submersa pelas próprias emoções.
Além de voos em avionetas e aventuras chacoalhando em estradas esburacadas, Fernanda abre o seu diário mais íntimo. Fala das relações amorosas, dos casamentos, celebrações e rompimentos. O êxtase, a decepção, o tombo e o recomeço em outros braços. Uma conversa franca e corajosa de quem não tem medo nem de questionar o encontro com a morte. Ela expõe com graça os contrastes de uma vida cheia de requinte e romance na França e a visão do inferno quando vai ao Sudão do Sul. Pela janelinha do avião, ela nos mostra vilarejos incendiados enquanto ouve mantras para anestesiar o bisturi da realidade
. Eis a luta de alguém que tenta acomodar os próprios sentimentos e angústias geradas pelos fatos que testemunha em suas missões humanitárias.
O dilema da autora é o de muitos de nós. Este livro também pode inspirar pessoas que vivem questionamentos em suas profissões. Fernanda escreve sobre encontrar um propósito de vida, um desafio atual de todos nós, homens e mulheres, em famílias ou a sós. Ela nos mostra que a dúvida faz parte do caminho e que a dor pode ser boa conselheira. Afinal, quem nunca sentiu aquela sensação incômoda de que nada do que fazemos é suficiente para resolver os problemas do mundo? Desigualdade, pobreza, fome, aquecimento global. Fernanda viu tudo isso de perto e com o coração aberto, mas não sem acumular feridas profundas, mágoas e indignação.
Ainda que muitas vezes o sentimento fosse de enxugar gelo
em situações dramáticas, os valores que Fernanda consegue plantar no coração das mulheres que participam de suas dinâmicas nos dá uma pista, mostra um caminho que, no fundo, aponta ao âmago de nós mesmos, ao que realmente somos. É de bondade e misericórdia que ela está falando e é disso que o mundo precisa atualmente. Uma bandeira que Fernanda carrega com orgulho.
E nessa busca por uma vida com mais dignidade, somos todos levados a uma catarse coletiva, sob o olhar holístico que ela começou a desenvolver desde cedo. Há algo de etéreo, de especial e divino em suas palavras, ainda que ela seja uma mulher de ação. Fernanda é um amplificador de vozes. Porém não apenas em nível racional e intelectual, sobretudo, ela abre o coração.
Grandes organizações não-governamentais ou privadas precisam de profissionais como Fernanda. No campo, mapeando, filmando, ouvindo, observando e analisando. Criando sentido de planilhas que descrevem realidades tão distantes. Fernanda e suas dinâmicas de vídeo participativo levam conhecimento e empoderamento às pessoas em situação de risco. E quando tudo for amalgamado com gentileza, escuta e atenção é que poderemos sonhar em acertar o foco da ajuda humanitária e transformar mais vidas.
Sigamos todos os passos de Fernanda. E escutemos mais as vozes que clamam ao nosso redor. Não há como solucionar problemas planetários com fórmulas antigas
, lembra a autora. Se há uma lição a tirar dessa viagem, é que é chegada a hora de nos unirmos. Não há tempo para pensarmos diferente.
Lembro-me de momentos em campo, já nos primeiros anos, em que eu me dizia: Fernanda, esta cena dá um livro
, mas a determinação de escrevê-lo de fato veio anos mais tarde, quando a vida me deu um xeque-mate. É agora ou nunca
. E este agora
foi no Brasil, durante um respiro forçado no ritmo desumano que estava se tornando a minha vida de humanitária. O a-ha
veio numa caminhada de pôr do sol à beira mar, quando meus pensamentos andavam em círculos. Senti algo que é comum e talvez clichê: escrever vai ajudar a me alinhar por dentro
.
As tramas destes 15 anos de jornada humanitária eram profundas e continham densas camadas soterradas em idealismo e racionalidade; sabia também que precisaria da ajuda de um par de mãos fortes neste processo de lapidação, que acabou sendo bem mais duro do que as luzes daquele final de tarde.
No ato, pensei Rosane Queiroz
, a jornalista que conheci como editora da Marie Claire que já havia me desbravado por dentro quando escreveu o meu perfil para a revista TPM, em 2009, sob o título enigmático Quem sou eu mesmo?
. Hoje vejo as cinco e poucas páginas da revista impressa, naquela época, como um ensaio. Na verdade, chamei a Rô para me ajudar com os seus dedinhos mágicos a não somente esmiuçar minhas memórias, mas também a aprofundar nesta mesma pergunta, mais de uma década depois.
Juntas, nessa busca, revisitamos centenas de fotos, vídeos e até mesmo áudios gravados para mim mesma ou para amigas, quando eu encontrava no celular um ouvinte silencioso, uma espécie de conforto durante as missões. Ao mesmo tempo, fizemos dezenas de entrevistas guiadas por roteiros divididos por países e missões, que serviram de base para a minha narrativa, curiosamente, tomando a minha voz falada como base para a voz da escrita.
Almejamos um livro apenas e não uma enciclopédia
, como dizia a Rô, porém o acervo se desvendou maior do que imaginamos. Eu já não conseguia mais distinguir as árvores da floresta. Neste momento, a curadoria da experiente jornalista se revelou mais que essencial. Formamos uma parceria criativa na organização da estrutura do livro, número de capítulos e tônicas a serem exploradas. Durante este processo todo, que durou mais de um ano, nos encontramos frequentemente pelo Zoom e apenas três vezes de forma presencial. Isso sem falar nas incontáveis mensagens de áudios, que viravam podcasts quando o assunto transbordava para outras áreas de nossas vidas. Nossos mergulhos eram intensos e também nos transformaram.
Os desafios continuaram fora do papel, quando Rô recebe o diagnóstico de um câncer de mama. A partir daí, o livro virou um livro vivo, acontecendo em real time sob cenas de déjà vu. De parceiras de projeto, passamos a ser sobreviventes. Saí do incômodo lugar de nova autora para voltar a ocupar minha cadeira de humanitária – e amiga. Tentei lhe oferecer minha escuta ativa, que veio também embalada pela minha fé budista. Acabei ocupando a cadeira oficial dapuxadora de mantras
em prol da sua cura. E ela se agigantou, lutou como uma leoa e se curou. E a Rô, que é cantora e compositora, seguiu cantando com um tom mais doce e profundo (sim, ela é praticamente uma super-mulher!). Sua voz levou o processo do livro para um outro lugar de inspiração muito mais crua, se unindo às vozes das mulheres gigantes que permeiam todas as páginas – e, principalmente, à minha.
Rô foi além da colaboração. Seu olhar foi fundamental para ajudar a me soltar na escrita criativa, pois mesmo sendo jornalista, minha zona de conforto é o audiovisual. Dessa forma, chegamos juntas a certas construções e melhores edições, em um processo participativo – como não podia deixar de ser – e em alguns momentos quase simbiótico, tamanha a sintonia.
Em paralelo às pausas dela, para sessões de quimio, eu tentava não deixar o processo de criação morrer, soterrado pela cruel realidade das novas missões que acabei aceitando nesse mesmo período. Mesmo trabalhando de forma remota, no Brasil, apoiava organizações em várias linhas de frente, entre elas, o terremoto do Haiti, em agosto de 2021. Nossos mundos estavam de uma certa forma em colapso, e em muitos momentos pensamos em desistir.
Mas como? Não havia mais como voltar atrás. A própria Rô, a essa altura, me dizia que o livro tinha se tornado para ela uma missão
. As vozes de tantas mulheres gigantes que encontraram meu microfone e minha câmera, em diferentes cenários e contextos humanitários por onde andei, não podiam mais ficar sem holofote. O mais bonito nesse processo é que estas vozes, ao mesmo tempo, se misturaram e se encontraram à minha. E a cada escuta, suas narrativas retroalimentaram a Fernanda que virava então uma outra Fernanda, em um baile circular de vozes de vida. Eu também não podia desembarcar dessa missão deixando suas vozes suspensas.
Assim, fomos tocando o imenso desafio de concluir o livro, no flow, mas também amparadas pelo apoio de outras mulheres que estavam colaborando com o projeto: Victoria Roza, a Vic, nossa leitora modelo, que também é retratada no livro como a voz de uma jovem brasileira; Eliz, meu apelido carinhoso para Elizângela Marques, jornalista responsável pela transcrição e a pré-edição das entrevistas; Alessandra Vitória, a nossa Alê LA Woman, editora do book-teaser e Dorys Hansen, a carioca sangue bom, que estava ajudando a mapear editoras para publicação, completando o nosso potente círculo.
Este livro, afinal, trata-se disto: da união e da superação de mulheres em todas as esferas. Do fundamental apoio de outras mulheres para não nos deixarem cair. E assim conseguimos, passando o microfone de mão em mão, ouvindo umas às outras, nos levantando juntas para sermos protagonistas das nossas próprias histórias, e finalmente poder imprimir nessas páginas estas vozes imensamente humanas.
Outra beleza deste período todo, transitando em constantes choques de realidades que me fizeram girar que nem peão, foi observar os meus próprios véus e pele sendo arrancados pelo caminho. Evitando deixar simplesmente meus pedaços ali pelo chão, munida de agulhas rústicas e dedos rígidos, me propus a tentar costurar os buracos de uma vida cheia de retalhos, a qual arrisco clamar de uma jornada de propósito
.
Afinal, foi assim que tudo começou, com um crescente desconforto com o rumo disto que chamamos de mundo e uma necessidade de repassar minhas tentativas de mudá-lo. Talvez este livro ainda venha a ser meu mais eficiente floral de cabeceira. Nas noites de insônia e lua cheia, pingarei suas gotas para acalmar minha consciência. Pois a verdade é que apesar do meu sorriso, convivo com uma dor insuportável que não tem remédio nem vacina: a dor do mundo.
Durante este esforço constante de alquimia para transformar veneno em remédio
, pouco tempo sobrou para ressignificar tamanhas transformações. Portanto, ao escrever sobre minhas vulnerabilidades e meu processo de crescimento, neste ato de exposição à flor da pele, busco encontrar a coragem de me olhar, cara a cara, para digitar no espelho da minha própria vida, no intuito de transbordar cores que voam além das dores que me inspiram – para, quem sabe, também inspirar você.
Pé na África e coração de aprendiz
O que estou fazendo aqui?
Foi uma chegada ofegante, com respirações profundas para tentar controlar a ansiedade e o medo, pois não havia ninguém da Cruz Vermelha me esperando no aeroporto, como combinado. Naquele tempo, os smartphones com mensagens na velocidade da luz
ainda não estavam à mão. Passei mais de duas horas esperando sentada no meio-fio da calçada, em frente ao portão de desembarque daquele aeroporto largado às moscas. Ansiosa, girava o pescoço, procurando um carro, um cavalheiro com uma plaquinha com meu nome ou um anjo que me tirasse daquela primeira enrascada, no início da minha jornada humanitária.
– O que estou fazendo aqui? – me perguntei, pela primeira vez.
As lágrimas brotando no canto do olho me deixaram mais nervosa.
– Te controla, Fernanda, te controla, Fernanda.
Repetia esse mantra desde pequenininha.
Meu kit de bagagem era modesto, porém pesado: uma mochila de alpinista vermelha, cheia de roupas, incluindo uma sandália de salto alto – que jamais usaria, revelando meu amadorismo; uma bolsa azul de nylon e uma maleta com os equipamentos audiovisuais: duas câmeras, cabos, baterias, carregadores, um tripé e o mais importante, dois microfones. Paguei caro, e em euros, pelo excesso de peso. A adrenalina começou a correr com o medo de ser assaltada.
Minha iniciação no mundo humanitário, conhecendo de perto uma dura e diferente realidade para a minha pesquisa de mestrado, começava no Malaui, um dos países mais pobres da África. O cenário que eu tinha visto há pouco, com o rosto colado na janelinha do pequeno avião turboélice, não poderia ser mais árido, para não dizer desesperador. Aos meus olhos inexperientes, Malaui era um campo imenso, plano, desabrigado de verde, com pontinhos marrons de cabanas formando aldeias. Uma cena que, até então, eu só conhecia dos documentários do Discovery Channel.
Não havia elefantes passeando pela savana – e nenhuma savana – como eu ingenuamente havia imaginado. Muito menos leões bocejando ao sol. Apenas via de longe os prédios desbotados da capital Lilongwe e seu aeroporto empoeirado.
Exausta e tentando disfarçar a cara de branquela apavorada, coloquei minha máscara da coragem e convenci um taxista a me levar até ao hotel, mesmo sem dinheiro para pagar a corrida, pois ainda não tinha trocado meus euros pela moeda local. Lá encontraria a equipe e estaria sã e salva.
Ao pisar na recepção do hotel e dar de cara com o sorriso de Pablo, meu mentor e coordenador do projeto da Cruz Vermelha, foi como encontrar uma boia salva-vidas depois de dias à deriva. Ele parecia surpreso com minha chegada, mas fez de conta que não notou meu estado deplorável.
Esbaforido, pagou o táxi enquanto me explicava que havia ocorrido um erro de comunicação com a pessoa escalada para me esperar no aeroporto. No alto dos seus quase dois metros, com aquele jeitão argentino, gesticulando muito e falando alto, me disse para esquecer a precisão dos holandeses da minha universidade em Amsterdã e ir me acostumando com a realidade do terreno, onde as coisas simplesmente vão acontecendo. Recomendou-me descansar, pois na manhã seguinte, bem cedo, iríamos juntos ao primeiro povoado previsto para o nosso trabalho em campo.
O hotel, aos meus olhos atuais, era bem OK, mas naquele momento pareceu assustador. Meu quarto ficava ao lado de um refeitório de paredes verdeabacate, com mesas cobertas com toalhas de plástico e moscas, muitas moscas.
A porta do quarto minúsculo não fechava direito. Por mais que eu puxasse, mesmo girando a chave, sobravam dois centímetros de fresta. Eu ouvia tudo o que passava do outro lado. Escutava vozes graves masculinas, imaginava homens com pés enormes e sentia as pegadas deles circulando pelo corredor, perto da minha porta. Liguei para a recepção e me informaram que havia um time de jogadores de basquete hospedados no hotel. Socorro!
– pensei. Minha intuição sobre os homens dos pés gigantes estava certa.
Eu sentia medo de tudo. Medo de comer, medo de respirar, medo de sair do quarto, medo de ficar no quarto, medo de pegar malária, medo de que alguém invadisse minha cama enquanto dormia, medo de ser estuprada e infectada por HIV. A noite escura se desdobrou em dois blocos de sono, entrecortados pelo pânico e a súbita lembrança de onde me encontrava.
Fui até ao banheiro com um enjoo que parecia mais um episódio psicossomático. Vomitei as tripas, sentindo a cabeça latejar. Será que os mosquitos da malária já haviam me picado? Agarrada nos travesseiros fininhos, como escudo de proteção, embaixo daquele mosquiteiro todo furado, me encolhi e senti uma saudade imensa dos braços do André. Onde