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O Despertar da Nova Guardiã
O Despertar da Nova Guardiã
O Despertar da Nova Guardiã
E-book502 páginas7 horas

O Despertar da Nova Guardiã

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Sobre este e-book

Em um mundo onde os deuses dominam os quatro elementos, algumas pessoas são abençoadas e, supostamente, tem o dever de cuidar daqueles que não foram. Infelizmente, não é isso que acontece.

Ao perder seu bem mais precioso, Samudra, descobre ter sido abençoada com poderes da deusa Banyu, sendo resgatada e adotada por uma figura política de seu reino, indo morar junto com ele e sua equipe, onde aprenderá muito mais do que apenas controlar suas novas habilidades.

Ao construir novas relações e conseguir uma nova família, o paraíso torna a se fragmentar com a ocorrência de vários incêndios que matam pessoas e destroem vilarejos inteiros. E caberá a Sam, junto daqueles que a cercam, proteger o seu povo, provando que a ganância e a ideia superioridade são os males que mais assolam a sociedade.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento14 de mai. de 2024
ISBN9786583009111
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    O Despertar da Nova Guardiã - Letícia Souto

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    Prólogo

    —Vai ficar bem dormindo aqui? — Minha mãe perguntou enquanto passava a mão no meu rosto, tirando o cabelo da minha testa. Adoro quando ela faz isso. — Logo seu pai vai montar uma cama nova para você e vai poder dormir com seus irmãos de novo. A porta do nosso quarto estará aberta para caso precise da gente, tudo bem? — Seu tom era calmo e doce ao falar, como se não existisse nenhuma outra preocupação que a pudesse incomodar. — É só gritar, então aparecemos aqui rapidinho.

    — Não precisa falar comigo assim, mamãe, já sou bem grandinha para me cuidar e, além disso, não sou um bebê como o Bima e a Buana. Vou ficar bem.

    Sua risada soou baixinha perto de mim. Ela foi se afastando após se levantar do chão, ficando parada em frente ao sofá. Seus olhos, apesar da pouca luz, tinham um brilho estranho que eu não conhecia bem.

    — Não importa quantos anos você tenha, sempre vai ser minha garotinha. Agora, durma. Teremos mais um longo dia amanhã. Amo você, minha peixinha.

    Acenei positivamente com a cabeça e fechei os olhos quando ela se inclinou para beijar minha testa. Com um sorriso calmo, minha mãe foi em direção ao seu quarto me deixando sozinha na sala da nossa pequena casa.

    Os gêmeos tinham quebrado a minha cama enquanto brincavam no quarto e como meus pais estavam muito ocupados trabalhando, não tiveram tempo para arrumar antes que chegasse a hora de dormir. Os dois se sentiram culpados durante o jantar, mas eu não me importei em dormir no sofá, mesmo que durasse mais que alguns dias. Sempre entendi que os dois faziam o máximo por mim e meus irmãos, parecia errado cobrar deles que consertassem minha cama no mesmo dia.

    Abraçada com o meu melhor amigo, o Sr. Dourado, um peixe de pelúcia que ganhara dois anos antes, no meu aniversário de oito anos, feito de retalhos e restos de pano que sobravam das roupas que minha mãe fazia, fiquei pensando em como deveria ser bem legal ser um peixe; nadar nos rios sem ter medo do que poderia acontecer e brincar o tempo que quisesse. Fazia muito tempo que não brincava. Às vezes, eu gostaria de ser um peixe. Adoro a água. Aos poucos senti o sono chegar enquanto me imaginava flutuando em um rio, sentindo o vento e os peixes nadarem embaixo de mim.

    Parecia ser um bom sonho.

    Não sabia dizer quanto tempo depois eu acordei com a voz do meu pai me chamando ao fundo. Ele parecia com pressa, o que era estranho, porque meu pai nunca estava com pressa. Abri os olhos, e no mesmo instante um clarão me atingiu, tudo estava colorido em tons de vermelho, laranja e amarelo. Uma fumaça cobria o teto da nossa casa, era escura e parecia pesada. No instante em que respirei, senti o ar queimar meu nariz e minha garganta. Tossindo, meu pai me pegou no colo, cobriu meu corpo com o lençol em que eu estava agarrada e correu para fora de casa, chutando a porta com força para ela abrir. O mundo à minha volta parecia vir de um pesadelo. Estava quente e todas as casas próximas à nossa estavam cobertas pelo fogo brilhante, que iluminava a rua com suas cores.

    — Sua mãe está juntando nossas coisas. Vou pegar os gêmeos e logo estaremos aqui fora. Não saia daqui, logo estarei de volta, entendeu? — Meu pai me colocou no chão e segurou meus ombros com cuidado ao mesmo tempo em que arrumava, de forma nervosa, o lençol em volta do meu corpo. — Você entendeu, Sam?

    — Sim, papai.

    — Ótimo. Boa menina. — Ao fundo, a voz da minha mãe gritando e o som da madeira se partindo alertou meu pai. Com um último olhar, ele correu para dentro de casa me deixando sozinha ali no meio da rua.

    Os gritos à minha volta eram assustadores. Nossos vizinhos corriam de um lado para o outro com baldes de água para tentar apagar o fogo que se espalhava depressa. Todas as hortas estavam em chamas e não parecia restar nenhuma planta viva, o verde aos poucos se tornara preto e queimado. Ao longe, escutei o barulho de pessoas correndo e os gritos e vozes desesperadas pedindo por ajuda. O som agudo da sirene que indicava que os Pelins haviam sido chamados soava cada vez mais estridente. Os vizinhos tiravam suas famílias de dentro das casas em chamas, alguns gritavam para as outras crianças que os Pelins estavam chegando e que iriam ajudar e fazer o fogo sumir.

    Eu queria correr, mas meu pai disse para ficar onde estava. Então, abracei o Sr. Dourado e voltei a olhar para a entrada da minha casa. Meus pais ainda não tinham voltado, mas eu podia ouvir suas vozes vindo daquela direção, os gritos chamando um pelo outro. Quando avistei os dois, minha mãe segurava minha irmã em um dos braços e uma bolsa estava pendurada no outro ombro. Meu pai segurava o meu irmão e estava indo em direção à cozinha. A última coisa que eu vi foi o olhar de espanto da minha mãe parada perto da porta.

    Algo estava errado.

    Ouvi a voz do meu pai gritando, mas não consegui entender o que ele estava dizendo. Do local em que eu estava parada, percebi que minha mãe estava se abaixando, ficando ajoelhada e apertava ainda mais minha irmã nos braços, como se pretendesse escondê-la de alguma coisa. Seu olhar encontrou o meu do outro lado. O espaço vazio onde minutos atrás estivera uma porta era a única coisa que nos separava. Eu queria correr até ela e dizer que estava com medo, mas o aceno sutil que ela fez com a cabeça, dizendo que não era para me mexer, fez com que eu ficasse onde estava. Sua boca se moveu dizendo palavras que eu conhecia.

    Eu amo você.

    Ela fechou os olhos. No canto da casa, algo queimava e fazia um barulho estranho. Com um susto, alguma coisa explodiu, cobrindo minha casa com fogo, derrubando as paredes feitas de madeira que logo foram consumidas pelas chamas, formando uma grande fogueira. Tudo parecia um enorme pesadelo, mas o som dos Pelins gritando e pedindo para que as pessoas se afastassem das casas me dizia que era real, que aquilo realmente estava acontecendo.

    Não sei bem o que aconteceu em seguida, mas senti um grito sair pela minha garganta que ardia por causa da fumaça. Eu só conseguia olhar para frente, onde minha mãe estava segundos atrás, onde mais cedo nós estávamos rindo e molhando as plantas. Os momentos em que passei com meus pais e meus irmãos começaram a aparecer na frente dos meus olhos, como se eu estivesse vendo um sonho antigo passar nas telas de anúncios do Mercado. Lágrimas escorriam pelos meus olhos e bochechas. Eu devia ter corrido até ela. Devia ter ajudado com meus irmãos, não deveria ter ficado parada vendo minha família ser coberta pela nossa casa, como um grande cobertor de fogo. Algo dentro de mim tremia e eu não sabia bem o que era.

    Mesmo agora, eu ainda estava parada, vendo tudo virar uma mancha escura e preta onde um dia chamei de lar. Por um instante uma sensação diferente tomou conta de mim e eu senti a corrente do rio passar por meus braços até as pontas dos meus dedos, como se estivesse mergulhando a mão na água gelada do rio. De repente estava sentindo cada gota das lágrimas que caíam do meu rosto e iam até o chão, molhando a terra próxima aos meus pés descalços.

    Com um último grito, misturado aos soluços, senti meu corpo estremecer seguindo um ritmo estranho. Fechei os olhos com força, torcendo para que quando os abrisse nada daquilo estivesse acontecendo. Desejei que meus pais estivessem me olhando de cima, me abraçando e dizendo que era tudo um pesadelo, os gêmeos estariam correndo em minha direção, confusos. Eu só queria que aquilo passasse. O cheiro, o som da madeira queimando, as pessoas gritando, o fogo se espalhando cada vez mais…

    Quando reabri os olhos, água saía da terra em direção à minha casa. A pressão com a qual ela subia era tão forte que eu podia sentir como se fosse parte de mim. Em segundos, tudo estava feito. O fogo, o cheiro, tinham ido embora, restando apenas um espaço queimado, coberto de preto e flocos do que poderia ser neve que caía, mas eu sabia que não era.

    Eu me sentei no chão, me sentindo esgotada e abracei a única coisa que sobrou da minha família, o Sr. Dourado. As vozes à minha volta diminuíram à medida que os Pelins controladores do ar empurravam a fumaça para longe, enquanto os controladores de fogo tentavam extinguir as chamas. Meus vizinhos estavam certos, eles iriam ajudar a fazer o fogo ir embora. Pessoas choravam por parentes, por objetos que foram queimados e pela tristeza de ver tudo o que tinham virar cinzas. Pelins controladores de água e terra passavam entre os restos das casas, apagando o que restava das chamas e procurando por pessoas que pudessem estar entre os escombros.

    Uma mão tocou meu ombro de forma gentil e eu levantei o olhar, esperando encontrar alguém conhecido, mas parado à minha frente estava um senhor com roupas chiques que eu nunca vira antes. Ele tinha o cabelo castanho pintado de branco em algumas partes, uma marca branca cortava o meio da sua bochecha direita e seus olhos eram escuros, mas suaves e acolhedores.

    — Você está bem? Como se chama?

    — Samudra… — falei baixo, sentindo a garganta arranhar por causa da fumaça no ar.

    — Eu sou o Wali Gan, mas pode me chamar de Utari. Cadê sua família?

    — Ali… — Apontei em direção aos restos do que foi minha casa.

    — Não tem mais ninguém? — Neguei com um movimento de cabeça.

    — Tudo bem. — Com um suspiro, ele levantou-se e olhou em volta. Parecia aflito e preocupado com o que tinha acontecido em nosso pequeno vilarejo. — Pelim Kosh, separe as equipes. Controladores de fogo se encarregam de apagar qualquer vestígio de incêndio que ainda existir. Controladores da água e terra, devem vasculhar os escombros. Se encontrarem alguém vivo ou machucado levem direto para a clínica da cidade para receberem os cuidados. Quero um relatório na minha mesa amanhã bem cedo, sem atrasos; nomes das famílias que moravam aqui, o que faziam, para quem trabalhavam, tudo o que conseguirem de informação. Não deixe passar nada. Incêndios assim não começam sozinhos.

    O moço alto, com cabelos loiros, fez sinal de continência e saiu, gritando com os outros Pelins que estavam parados. Acompanhei com o olhar enquanto eles se dividiam e seguiam as ordens que foram passadas, levantando as casas queimadas usando seus poderes. O senhor voltou a olhar para mim, e com um sorriso, movimentou a mão de forma suave fazendo meu cabelo se mexer enquanto caíam as cinzas que estavam grudadas nos fios. Ele era um controlador de ar. Era um Rahayu.

    — Você quer ir comigo para o palácio de Nyoto? Sabe o que é? — Seus olhos me encaravam, sem cobrança e sem pressa. Balancei a cabeça em forma de negativa. — É onde eu moro. Tenho várias coisas legais lá, pode ficar comigo até encontrarmos alguém da sua família, o que acha?

    Apertei ainda mais o meu bichinho de pelúcia e olhei em volta. Tudo estava destruído e acabado, os Pelins corriam de um lado para o outro ajudando quem estava caído e machucado e, apesar de saber que estavam fazendo seu trabalho, eu podia sentir o medo de meus vizinhos e amigos ao serem tocados ou quando algum deles se aproximava. Voltei a olhar para o senhor que estava com a mão esticada na minha direção, esperando que eu a segurasse e fosse junto com ele para sua casa. Assim como os Pelins, ele era como os chefes dos meus pais, um abençoado com poderes dos deuses, superior a mim… uma mera azarada. O que aconteceria comigo se eu fosse com ele? Daqui eu iria para as fábricas. Será que ir com ele é tão ruim quanto?

    Respirei fundo, ainda sentindo tudo queimar por causa da fumaça que aos poucos se dissipava. Olhei para o céu e a escuridão grossa e pesada estava sumindo, dando espaço para a noite e as estrelas lá em cima. O homem à minha frente me olhava com calma, não parecia ter pressa por uma resposta. Talvez, eu não tivesse outra opção a não ser torcer para que existisse alguma família em algum lugar e que eu pudesse ficar com eles, dessa forma não precisaria ir para a fábrica.

    Agarrei o lençol e o meu boneco de pano, apertando-o contra meu peito e fiquei de pé. O moço observava enquanto eu me levantava e, com um sorriso estendeu mais a mão, assim como meu pai fazia quando íamos passear no Mercado. Eu a segurei e começamos a caminhar para fora do vilarejo. Ele andava engraçado por causa da bengala que segurava em sua outra mão, apoiando o corpo, durante a caminhada até um carro. Era a primeira vez que eu andava em um daqueles. Com um sinal, pediu que eu entrasse, e quando o fiz, senti o couro do banco sob minhas mãos. Minha mãe sempre me dizia o quanto esse material era difícil de costurar, ao menos, costumava dizer. Com esse pensamento, senti meus olhos se encherem de água, mas segurei o choro e fiquei em silêncio. Ao meu lado, o homem, digo Wali Gan, olhava intrigado pela janela.

    À medida que nos afastávamos do meu vilarejo, árvores iam surgindo, e ao fundo eu consegui ver a luz do sol começando a aparecer através das montanhas. Não sei ao certo quando isso aconteceu, mas o cansaço me alcançou. Enquanto a luz surgia pela janela, meus olhos se fecharam, me levando para a escuridão.

    cap1

     capítulo I

    Nem todos os verões em Unsur tinham sido quentes como aquele, e ainda estávamos na metade da estação, apesar que Unsur era um país com temperaturas bem malucas; eu não deveria estar tão surpresa assim. O sol brilhava fosco através da janela do refeitório do palácio de Nyoto. O vidro cobria as paredes do teto ao chão, permitindo uma maior entrada da luz, fazendo com que, desde a manhã até o pôr do sol, a utilização de lâmpadas fosse dispensável.

    O refeitório era enorme, mas comparado a alguns outros aposentos do palácio, a biblioteca ainda era o maior de todos, na minha opinião. Mesas de madeira bem-feitas e cobertas de arranhões, indicando que algum dia foram muito usadas, cobriam o grande salão. Aquele lugar foi feito para que conseguisse acomodar cem ou mais unsuries que estariam em fase final ou inicial do treinamento para tornarem-se Pelins.

    Nos últimos tempos, o lugar recebia apenas algumas pessoas. Sentado ao meu lado, estava Wali Utari Gan, o governante do meu estado. À nossa volta, estavam algumas das pessoas que ajudavam a cuidar do palácio: Joar, que trabalhava na cozinha; Garroan, que ajudava com o jardim, cuidava da limpeza das armas de treinamento e fazia a restauração dos livros da biblioteca quando necessário; e Kisara, a governanta, responsável pela limpeza do palácio e sua organização. Eram trabalhos simples, sem muita visibilidade e remuneração, por esse motivo os Kurangs eram os responsáveis por eles. Por toda Unsur, era dessa forma.

    Os Rahayus, como eram chamados os unsuries que nasceram com a habilidade de controlar qualquer um dos elementos deixados pelos deuses no país — água, fogo, terra e ar —, se autodenominavam abençoados, e por esse motivo, tinham mais direitos. Os que não nasceram com a capacidade de controlar os elementos, os azarados, eram chamados de Kurangs. E esses, eram os que faziam os trabalhos pesados e que os Rahayus não queriam fazer. Como nunca gostei de rótulos, apenas os ignorava, mas isso não queria dizer que eles não estivessem ali. Porém, no palácio era mais fácil fazer isso, fingir que nada disso existia, ali. Éramos uma família.

    — Sam? — A voz de Utari ecoou na minha mente, me fazendo balançar a cabeça, dispersando os pensamentos. — Você estava prestando atenção?

    — Claro que eu estava prestando atenção. — Levantei a cabeça e olhei em sua direção. — Eu sempre presto atenção no que você fala.

    — Não estava, não — Joar falou entre uma risadinha baixa.

    Olhei para ele de forma acusatória, sussurrando traidor, antes de me virar para Utari.

    — Não estava. Desculpa.

    — Gostaria que focasse em conversas importantes assim como foca nos livros da biblioteca — falou, tomando, em seguida, um longo gole do suco.

    — Falando nisso… Eu preciso de mais livros. Já li quase todos sobre a língua dos deuses — murmurei, fazendo Garroan soltar uma gargalhada.

    — Tem algum livro que ainda não leu naquele lugar? — ele perguntou com carinho, empurrando o prato do café da manhã.

    — Deve ter algum, não tenho certeza.

    — Ter ensinado essa garota a ler foi o maior desastre que você já cometeu, Wali Gan. Olha o prejuízo que ela traz!

    O Wali abriu um sorriso enquanto colocava o copo sobre a mesa.

    — Como eu dizia, hoje vamos receber um garoto para treinar. Como são ordens diretas do Menteri Klein, não pude recusar. Desde que a Sam veio morar com a gente não recebemos unsuries para serem treinados, mas agora será necessário. Devo lembrar que a Sam morar aqui sempre foi um segredo que confiei a vocês que guardassem, apesar de ela estar registrada como funcionária do palácio e ter sido adotada legalmente pela Kisara.

    Abaixei minha cabeça, desviando o olhar para minhas mãos que estavam apoiadas no colo. Em muitos momentos eu me sentia culpada por dar tanto trabalho a todos eles, e fazer Utari mentir para o Conselho e para o Menteri Klein, fazendo-o correr risco de perder a posição que batalhou tanto para conseguir. Durante muito tempo falei que assim que atingisse os quinze anos, iria embora e eles poderiam voltar a viver como antes. Mas os quatro foram extremamente contra. E para provar isso, apareceram com toda a papelada de adoção assinada um dia antes de eu fazer quinze anos. Desde então, Kisara e Joar se tornaram meus pais adotivos, apesar de todos terem me criado, o que me deixa com três pais e uma mãe.

    — Devemos ser cuidadosos enquanto esse garoto estiver aqui, não sabemos se podemos confiar ou não. Sam — levantei um pouco a cabeça, sendo o suficiente para olhar em sua direção —, você não será proibida de circular pelo palácio ou de seguir sua rotina, eu nunca faria isso com você, mas deverá ter cuidado. Todos entenderam?

    Em coro, respondemos que sim.

    — Ótimo. — Ele falou, esboçando um sorriso carinhoso enquanto segurava minha mão. Na maioria das vezes, essa era sua forma de me consolar ou mostrar o quanto sentia muito por eu sempre precisar me esconder ou sair do palácio quando algum Wali de outro estado ou algum comissário do Menteri vinha de Tengah para acompanhar as pesquisas que ele, supostamente, estava fazendo.

    Como de costume, depois de terminarmos de comer, começamos a juntar os pratos e os talheres para retirar a mesa. Quando Utari estava por perto, fazia brincadeiras usando sua habilidade de controlar o ar, para dificultar o processo ou apenas para deixar Kisara desesperada com medo das louças caírem no chão. Dessa vez, quando encontrei seu olhar, percebi que ele estava se preparando para pregar alguma peça, mas o sinal indicando que havia uma ligação em espera no seu escritório soou por todo o palácio. Com um sorriso triste e um suspiro, ele se levantou e saiu do refeitório.

    Eu podia jurar que ouvi Kisara suspirando em alívio.

    — Vai praticar hoje, Sam? Ou devo te esperar na biblioteca? — Garroan perguntou, colocando a pilha de pratos em cima da pia da cozinha. Kisara e Joar estavam discutindo o que poderiam fazer para o almoço enquanto guardavam as sobras na geladeira. Quando eu era mais nova, eles gostavam de esconder os restos de pão doce para que eu não comesse antes do almoço, mas eu sempre encontrava.

    — Talvez eu vá para me distrair um pouco. — Dei de ombros. — Ou, só vou me esconder do garoto novo, não sei dizer ainda.

    — Eu sei que deve ser bem ruim, ter que ficar se esgueirando pelos cantos e andando pelas sombras do palácio, mas se o Wali Gan não tivesse trazido você para cá… Só os deuses sabem o que poderia ter acontecido.

    — Aham. — Suspirei, virando em direção à pia que transbordava com pratos, panelas e vasilhas sujas. Era o meu dia de lavar a louça, e parecia que a pilha só tinha aumentado, comparado há minutos antes, quando estávamos fazendo o café da manhã. Com uma batidinha no meu ombro e um assobio, Garroan saiu de perto me desejando boa sorte.

    Liguei a água da torneira, sentindo a pressão que ela fazia para subir pelos canos, como se estivessem correndo em minhas veias. A sensação era maravilhosa e eu já estava acostumada, mas nem sempre foi assim. Há sete anos isso teria sido impossível, afinal, eu morava em um pequeno vilarejo de fazendeiros. E ninguém da minha família era ou foi abençoada pelos deuses. Ou seja, eu nasci como Kurang, o que significava que eu não deveria conseguir controlar a água.

    Quando mudei para o palácio, vários Rahayus treinavam com o Wali Gan para serem da legião de Pelins de Udara. Ser um Pelim era trabalho daqueles que conseguiam controlar os elementos, assim como todo e qualquer outro cargo de liderança. Geralmente, os homens das famílias de riqueza média eram os que se candidatavam para o cargo. O palácio era movimentado e sempre tinha vozes pelos corredores ou pelas salas de treinamento, mas assim que Utari descobriu que eu não tinha ninguém, enviou uma carta para Tengah, a cidade centro de Unsur, pedindo para abandonar o treinamento e focar em pesquisas. Na semana seguinte, o palácio estava vazio e foi aí que ele começou a me ensinar sobre minhas habilidades e outras coisas, como ler e escrever. Parte da prática era para descobrir como eu tinha desenvolvido os meus poderes e até onde elas poderiam chegar. Para resumir, por um bom tempo eu era a pesquisa.

    — Assim que terminar com a louça está livre por hoje, Sam.

    — Não vai precisar de ajuda para mais nada? — perguntei a Kisara, que sorria em minha direção de forma carinhosa.

    — Não, vamos focar na recepção do garoto novo. Então, você está livre.

    — Bom, tudo bem. Mas, caso precisem…

    — Nós te chamaremos, não se preocupe. — Ela se aproximou e beijou o topo da minha cabeça, um hábito que havia desenvolvido ao longo dos anos.

    Os três saíram da cozinha e me deixaram sozinha. Joar, Garroan e Kisara sempre cuidaram de mim, cada um à sua forma. Quando cheguei no palácio, Kisara tinha perdido seu único filho em confronto com outro país. Na época seus cabelos tinham menos traços brancos e seus olhos azuis carregavam uma tristeza que parecia ser irreparável, mas ela me acolheu e tudo mudou. Joar e Garroan eram irmãos, cresceram juntos em Banyu, o estado guardado por um Wali controlador de água ao norte do país; assim que seus pais faleceram, mudaram-se para Udara e conseguiram um emprego no palácio. Assim como Kisara, os anos atingiram suas feições e cabelos, mas o castanho escuro dos olhos não perdera a tranquilidade, tanto no Garroan quanto no Joar.

    Com tudo lavado e em seus devidos lugares, deixei a cozinha e fui em direção à biblioteca. O escritório do Wali, alojamento e salas de treinamento ficavam ao lado oposto e em um andar diferente de onde eu estava indo, parecia o mais sensato, já que o novo morador do palácio deveria ir para o outro lado quando chegasse.

    Os corredores eram largos, cobertos de janelas enormes que davam vista para a cidade. O Mercado e a Praça Maior, os campos de plantação e as fábricas ao fundo. Ao pôr do sol, a vista ficava maravilhosa, mas mesmo depois de anos, ficar parada ali me lembrava da garotinha que das mesmas janelas viu o resto de fumaça subir e desaparecer no céu de onde um dia fora sua casa. Com um suspiro, eu me afastei e voltei a caminhar até meu destino.

    — Sabia que você viria. — A voz do Garroan ecoou pelo lugar.

    Estava sentado na grande mesa do centro, sua cabeça abaixada; provavelmente lia alguma coisa. A biblioteca era composta por três andares de estantes cheias de livros sobre todos os tipos de temas, de pesquisas a histórias sobre grandes cavaleiros que salvaram suas terras de pessoas que queriam o mal. Desde que aprendi a ler esse era meu lugar preferido. Muitos mundos e muitas línguas diferentes estavam dentro dessas paredes. Muitas oportunidades.

    — Você me conhece bem demais. — Abri um sorriso enquanto caminhava até ele. — Achei que seria uma boa vir para cá, é caminho oposto ao nosso convidado. — Revirei os olhos, abaixando para ver o que ele estava fazendo.

    — Se comporte, Samudra. Wali Gan só aceitou o garoto para que não viessem aqui.

    — Eu sei, eu sei. — Sentei-me na cadeira ao lado dele, puxei os livros que estava usando para estudar na noite anterior e só então percebi que ele não estava lendo, e sim avaliando um livro. — Então, o que está fazendo?

    — Esse livro chegou ontem à noite, precisa ser reconstruído. Estou vendo o quanto posso fazer. — Garroan levantou o olhar e abriu um sorriso divertido. — Não, você não pode ler esse livro ainda. Apenas quando estiver consertado.

    Franzi o nariz, afundando na cadeira de forma desanimada.

    Minutos depois eu já estava concentrada no conteúdo dos livros à minha frente. Todos eles estavam escritos em Tambok, uma língua antiga que era falada em nosso país há muitos anos. De acordo com a história, ela foi se perdendo ao longo dos anos, e então poucas pessoas falavam alguma coisa. Todos que trabalhavam em Tengah ou que ocupavam cargos importantes nos estados deveriam entender, mesmo que o básico. Eu já era fluente quando fiz quatorze anos. Muitos dos escritos sobre os deuses e suas bênçãos estavam escritos em Tambok. Utari e eu passávamos horas lendo, pesquisando e procurando depoimentos de pessoas que pudessem ter visto a habilidade se desenvolver em quem não possuía nenhuma antecedência na família. Utari chegou até a cogitar que eu poderia ter sido adotada, mas os dados que ele tinha sobre mim indicavam que isso não era verdade.

    Quando aprendi a ler em Tambok, o fiz para ajudar Utari a descobrir o que tinha acontecido comigo. Por muito tempo, tive medo dos Rahayus, principalmente porque os chefes dos meus pais não eram pessoas boas e sempre tratavam mal todos os meus vizinhos. Quando entendi que tinha poderes e que era igual a eles, odiei o que aconteceu comigo, e quis que Utari tirasse aquilo de mim. Não queria me tornar como aqueles que me machucaram por anos. Porém, com o conhecimento que adquiri e com a prática e domínio do meu poder, percebi que não era tão ruim assim. Depois de um tempo, decidimos aceitar que isso tinha acontecido comigo e que eu precisava de treinamento para aprender a controlar minha habilidade.

    Apesar de Wali Gan ter deixado a pesquisa e os livros, eu gostava de poder ter conhecimento, coisa que me foi privada por eu ter nascido entre os Kurangs. Em pouco tempo eu entendi como funcionava a política do nosso país, a diferença entre os estados, a função dos Pelins e a diferença entre eles e os Akehs, que eram os nossos curandeiros e trabalhavam para o estado. Além disso, encontrei várias histórias sobre antigos Rahayus que eram designados para proteger o estado junto com o seu Wali. Eles eram chamados de Anglis, em tradução, Guardiões. Seu dever principal era garantir a segurança e proteção do estado, fosse agindo de forma política ou na frente de batalha, liderando os Pelins. Eles ainda respondiam os Walis, mas trabalhavam juntos sempre.

    Os Anglis estavam muito presentes na grande guerra contra os países vizinhos, mas não existia mais nenhum. Os últimos morreram cumprindo seu dever.

    Muitas coisas ficam claras quando se compreende o mundo a sua volta. Infelizmente, poucas pessoas tinham acesso a essas informações e viviam no escuro. Apesar de ter perdido minha família, ter sido levada para o palácio salvou minha vida de várias formas. Se não fosse por Utari, eu teria sido obrigada a ir para alguma fábrica para trabalhar, já que os chefes dos meus pais não iam querer uma Kurang para sustentar mesmo sendo obrigação deles pela lei. Uma coisa que eu só descobri depois, quando tive acesso aos livros.

    — Por que não tinha ninguém na entrada para me receber? Achei que era assim que recebiam os futuros Pelins nos palácios.

    Uma voz vinda da entrada da biblioteca chamou minha atenção. Tanto eu quanto Garroan levantamos a cabeça para ver de quem se tratava. Pela expressão que surgiu no rosto do meu amigo, aquele deveria ser o novo morador do palácio.

    Ele nos encarava de forma inquisitiva, como se estivesse confuso com a cena que estava vendo. Seus olhos eram azuis como o mar, mas pareciam frios e incompreensíveis; o cabelo era preto e estava bagunçado, como se ele tivesse passado as mãos na tentativa de arrumar a franja que caía na testa. Os ombros eram largos e era possível ver a marca dos músculos nos braços através da camisa de manga comprida de tecido fino que estava enrolada até a altura do cotovelo.

    — Quem são vocês? — Eu e Garroan nos entreolhamos decidindo quem iria responder à pergunta.

    — Me chamo Garroan, trabalho no palácio a serviço do Wali Gan. Em que posso lhe ajudar? — Ele já estava se levantando da cadeira e indo em direção ao garoto que estava parado na porta me encarando de forma curiosa.

    — O que você está fazendo? — Ele deixou a bolsa que tinha nas mãos cair no chão e caminhou com passos largos em direção à mesa a que estávamos assentados, apontando em minha direção. — Está… lendo? Você está transgredindo algumas leis ao fazer isso. E quando digo algumas, quero dizer, muitas. Não deveria reportar isso ao Wali Gan? — O garoto perguntou a Garroan, olhando para mim de soslaio.

    — Reportar o que, exatamente? — perguntei, levantando da cadeira e cruzando os braços na frente do corpo. De perto era possível notar sua mandíbula rija e acentuada, mas o que me chamou a atenção foi a marca no canto esquerdo do seu pescoço, era familiar de alguma forma, vermelha e com o formato de uma chama cortada.

    — Você não deveria estar lendo. Devo lembrar que é contra as leis mulheres e Kurangs saberem ler ou escrever. Não tem trabalho para fazer? — Ele cruzou os braços, fazendo os músculos saltarem e apertarem a manga da blusa. — Esse lugar é apenas para o Wali e para quem está estudando para ser um Pelim. Se não trabalha consertando livros, não é bem-vinda aqui.

    — Uau. Sempre soube que os Rahayus eram metidos e se achavam os donos da razão, principalmente os homens, mas não sabia que chegava a esse nível de estupidez de presumir que, só porque eu estava segurando um livro, isso seria sinônimo de estar lendo. Eu sou ajudante geral, estava auxiliando na reconstrução dos livros.

    Senti o olhar do Garroan sobre mim no exato momento em que terminei de falar, logo soube que eu estaria encrencada assim que aquele garoto saísse dali.

    — Como se atreve a falar comigo dessa forma? É uma Kurang e uma criada do palácio! Deveria respeitar as pessoas mais poderosas que você. — As veias do pescoço saltaram enquanto ele falava, fazendo o símbolo tatuado criar vida. Em seus olhos, um tipo de fogo estranho crepitava. Não sabia dizer se era raiva ou aversão.

    — E você deveria respeitar todas as pessoas, independentemente de quem sejam, senhor Duson.

    Atrás dele a voz do Wali Gan fez o garoto erguer as costas e se virar, surpreso. No mesmo instante lembrei de ter folheado o Livro das Famílias de Unsur no escritório de Utari, nele continha os nomes e brasões das famílias. O símbolo no pescoço do garoto indicava que ele pertencia a uma linhagem poderosa do estado de Geni, os Duson. Todos eram controladores de fogo e donos de fábricas de ferrarias.

    — Você está defendendo essa Kurang? Ela não deveria estar dentro de uma biblioteca e nem lendo livros, isso é contra as leis.

    — Terminou suas atividades diárias, Srta. Kie? — Utari me perguntou, ignorando o fato de que o garoto à sua frente havia dito alguma coisa.

    Acenei positivamente com a cabeça, mordendo o canto do lábio.

    — Então não vejo problema em estar na biblioteca. — Ele sorriu e se voltou para o controlador de fogo. — Aqui no meu estado, senhor Duson, o palácio é um lugar para as pessoas. Nós recebemos moradores de Udara todos os dias. Não proíbo que façam o que querem e o que gostam de fazer, até em termos de trabalho. Por isso somos o estado mais diversificado. Se a senhorita Kie quer ler os livros da biblioteca, ela tem todo o direito.

    — Mas isso é contra as regras do país. Mulheres não devem entender de política, saber ler ou escrever. Conhecimento é para os homens que vão usá-lo da forma correta.

    — Aqui elas podem, se quiserem. Você está no meu estado, aprenda a respeitar minhas regras ou vai embora. Estamos entendidos?

    Era a primeira vez que eu via Utari falar daquela forma com alguém. Ele sempre era calmo e compreensivo com todos que vinham pedir sua ajuda. Seus olhos estavam sérios enquanto encaravam o garoto, apesar de existir uma pequena diferença de altura, fazendo com que ele olhasse ligeiramente para cima.

    — Sim, senhor.

    — Ótimo, que bom que esse assunto foi esclarecido. Agora, se puder pegar suas coisas e me seguir, vou mostrar onde ficam os alojamentos e as demais instalações do palácio. — Ele fez um sinal, indicando que o garoto deveria passar em sua frente. O garoto pegou a bolsa no chão e me encarou por mais alguns segundos antes de sair. Seu olhar era de raiva e o azul brilhava ainda mais frio, mas algo estava diferente em sua expressão.

    — Nós vamos ter uma conversinha depois, mocinha — Utari falou, saindo da biblioteca.

    — Quando vai aprender a ficar quieta? — disse Garroan, me encarando de forma incrédula.

    — O quê? E deixar ele falar dessa forma comigo ou com a gente? Esse garoto pode ter vindo de uma família rica que esnobava todo mundo, mas aqui, ele não vai fazer isso. Pelo menos, não enquanto eu estiver aqui. Vocês são minha família, nós cuidamos uns dos outros, certo?

    — Sim, mas se não percebeu ele vem de uma família de controladores de fogo. — Ele fez sinal, indicando a marca que o garoto tinha.

    — Notei. Mas eu controlo a água, ele não pode me machucar. — Pisquei apenas um dos olhos para ele, o fazendo rir.

    — E o que pretende fazer? Irritá-lo até ele lançar uma bola de fogo na sua direção para surpreendê-lo usando sua habilidade? Isso é bem arriscado.

    — Eu não tinha pensado nisso, mas você me deu uma ótima ideia. Obrigada! — Ele jogou as mãos para cima, como se estivesse desistindo de argumentar ou acabando com aquela discussão.

    Em minutos estávamos os dois imersos nas atividades que fazíamos antes do garoto entrar. Garroan estava totalmente concentrado entre as páginas do livro. Ao contrário dele, minha cabeça estava a mil. Kurangs estavam acostumados a não terem oportunidades, apenas focar no emprego e sobreviver ao dia seguinte, aguentando xingamentos e opressão. Mas, as regras que restringiam o conhecimento não afetavam apenas aos que não foram abençoados pelos

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