Corpos Invisíveis A Olhos Nus
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Corpos Invisíveis A Olhos Nus - Eliseu Paranhos
Eliseu Paranhos
Corpos Invisíveis
A
Olhos Nus
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Eliseu Paranhos
Corpos Invisíveis
A
Olhos Nus
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© 2024 de Eliseu Paranhos
Título Original em Português: Corpos Invisíveis a Olhos Nus
Revisão: Juliana Fagundes
Ilustração da Capa: Luciano Ferrari
Fotos e Design Gráfico: Paula de Paoli
Produção Executiva: Juliana Fagundes
Esta edição foi possível graças ao Governo do Estado de São Paulo, através da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas e do
Programa de Ação Cultural – ProAC.
Projeto contemplado no edital nº. 22/2023, de literatura /
realização e publicação de obra teatral inédita no estado de São
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6
Para Claudete, Clarete e Leonora.
A origem.
E para Manuela e Juliana.
O destino.
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8
Sumário
Prefácio ................................................................................11
Uma conexão entre tempos
Prólogo ................................................................................17
Primeira Parte .....................................................................23
Santo André, São Paulo
1975 – 1978
Segunda Parte .....................................................................53
Campinas, São Paulo
1979 – 1982
Terceira Parte.......................................................................71
Campinas, São Paulo
1983 – 1984
Quarta Parte .......................................................................101
Itália e Brasil
1881 – 1970
Quinta Parte .......................................................................125
Campinas, São Paulo
1984 – 1986
Epílogo ...............................................................................147
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Prefácio
Uma conexão entre tempos
A peça Corpos Invisíveis a Olhos Nus, de Eliseu Paranhos, atravessa e é atravessada por conexões de diversa natureza entre o passado e o presente. Refiro-me sobretudo, mas não apenas, àquelas conexões que fazem uma espécie de acerto de contas com o passado para possibilitar um futuro guiado por forças novas – ou antigas, até então subjugadas.
Em sentido amplo, essa bonita peça aciona, à sua maneira, a necessidade ancestral de buscar uma compreensão sobre quem somos, que acompanha a humanidade ao longo da história, da qual convém destacar a Grécia Antiga, considerada o berço do teatro ocidental. No entanto, estamos já em outro tempo. Assim, se Édipo e outros heróis trágicos veem seu passado familiar desabar sobre seus ombros, impelindo-os ao tal desenlace funesto
, a figura central de Corpos Invisíveis..., denominada Ele, dota-se da possibilidade de reconstruir sua identidade e seus futuros caminhos. Para isso, compreende e reconhece os passos que o trouxeram até o presente, mas busca desfazer-se de parte da carga que compõe essa espécie de herança, que o formou e o constitui. Não são, portanto, os desígnios dos deuses que o moldam e induzem suas decisões, mas seu crescimento numa família da era moderna, na qual ninguém é herói, que possui defeitos e qualidades e comete diversos erros e acertos, tal como todos nós.
Embora estejamos no campo do particular, do íntimo, podemos, a partir dessas frações da vida privada de um 11
indivíduo e sua família, vislumbrar muitas características da sociedade que os tolda, oferecendo-nos um olhar para o Brasil desde a infância à vida adulta da personagem, que se situa por volta dos últimos cinquenta anos e aponta para um futuro a ser inventado. Assim, Corpos Invisíveis a Olhos Nus nos remete à busca da compreensão do eu, num reconhecimento de sua herança, mas diferencia-se na maneira como o faz, por ser de outro tempo e ter, portanto, pretensões diferentes das de uma tragédia. Isso se reflete no tipo de construção de personagens e na possibilidade de o protagonista assumir ao menos parte do comando de seu destino, o que distingue a peça também daquele tipo de drama que se caracteriza pela influência de forças externas sobre o destino das personagens, nesses casos não mais forças divinas, porém sociais ou naturais e assim por diante.
Se essa mudança aparece como intensão de Ele, a despeito de ter que carregar também um peso do passado que não escolheu, projeta-se coerentemente na estrutura da peça, que alterna cenas dialogadas com narrações feitas pelo protagonista, tendo as últimas como seu eixo central. Se não controla a maior parte dos acontecimentos, até porque está num processo de entender o caminho que o levou a ser quem é, Ele é quem determina pelo menos como a história a que assistimos se organiza. Tudo o que vemos é pela perspectiva dessa personagem. Predomina a linguagem dramatúrgica, no sentido do gênero dramático, mas é na perspectiva da subjetividade de Ele que a peça se assenta. Vemos cenas diversas e muito interessantes de sua família e de outras pessoas que passaram por sua vida, como se as testemunhássemos de forma objetiva, sem que houvesse interferência, mas, no fundo, são a memória, a percepção e os sentimentos de Ele que nos trazem os acontecimentos do início ao fim, não apenas nos momentos que ele aparece e 12
dirige suas falas diretamente para o público – ou para os leitores, se assim se preferir.
Se analisarmos a escolha dessa forma na mencionada intersecção entre o passado e o presente, Eliseu insere sua peça num diálogo entre o teatro moderno e algumas questões da sociedade e do teatro contemporâneos. Assim como Ele, as criações cênicas e os debates das últimas décadas adentram na ideia de identidade, de um olhar para si, de modo a reconhecer seus anos de formação
em tais condições, época e lugar, porém na perspectiva de compreender como revê-los e tentar transcender os horizontes desenhados nesse contexto.
Núcleo familiar, nacionalidade e outras instituições sociais antes tidas praticamente como molduras dentro das quais precisávamos nos enquadrar são, hoje, questionadas e relativizadas em suas pretensões de universalidade, de fato dado, a ser reproduzido. Identidades podem se refazer, ainda que o passado não se altere e nos deixe marcas. Ele sente isso na infância, na adolescência e na vida adulta, mas precisa de tempo para compreender e iniciar sua emancipação parcial.
É, então, uma ruptura e é, igualmente, um reencontro.
Aproximação e afastamento.
Nessa dialética, desenha-se em Corpos Invisíveis a Olhos Nus uma liberdade em relação a maniqueísmos que a enriquece de complexidade e humanidade. A busca de se compreender empreendida por Ele tem o ponto de vista aparentemente esclarecido da contemporaneidade sobre as muitas desigualdades ignoradas até há poucos anos, mas não se filia a grupos, o que poderia dotar a peça de rasgos de panfletarismo, com a eventual eleição de causas a serem defendidas e vilões a serem odiados, algo também muito recorrente em nossa época. No entanto, a personagem Ele nos mostra várias facetas de seu entorno e de si, observa sua 13
realidade, a história do seu eu
, com sensibilidade. Passa, assim, por toda a sorte de percepções e sentimentos, também de reprovação de atitudes, é evidente, mas sem nos propor um enquadramento totalitário e simplificado das pessoas e do mundo. Nesse sentido, mesmo com crítica, ironia e eventuais comentários jocosos, desenha-se um olhar generoso e maduro para a realidade de um ser que se reconhece e de parte de uma sociedade que é simplesmente aquilo que consegue ser.
Para não correr o risco de me alongar demais ou de antecipar muitas informações sobre a obra, penso que seja prudente encerrar minhas considerações sobre a peça, que você lerá e compreenderá à sua maneira, obviamente. Seria curioso, entretanto, que eu me referisse brevemente à minha relação com Eliseu Paranhos, que também transita entre algo de passado e presente. Em 1998, trabalhamos juntos na montagem de Um Certo Faroeste Caboclo, de Paulo Faria, que originou a Companhia Pessoal do Faroeste, e logo pude conhecer seu enorme talento como músico e ator. Tornamo-nos amigos e estivemos juntos em outros projetos, assim como tentamos em vão nos encontrar algumas vezes, em meio à atribulada e intensa vida paulistana. Foram muitos anos sem que isso acontecesse, salvo em comemorações do Faroeste, pelo que me lembro. Recentemente, por coincidência, mudamo-nos ambos, com pouco tempo de diferença, para Portugal. Hoje, moramos a algumas centenas de quilômetros de distância um do outro, e com tanto mar
a nos separar do Brasil que amamos. Aqui, já conseguimos nos encontrar. Antes disso tudo, entretanto, Eliseu foi aluno da minha mãe, Maria Lúcia Candeias, na Unicamp. Uma história de amizade que começou, portanto, antes de seu início
, trazendo aquele sentimento de cumplicidade que sentimos quando descobrimos já ter algo em comum com 14
alguém a quem somos apresentados, e estende-se pelos anos, acompanhada da crescente admiração que tenho pelo modo como Eliseu se coloca no mundo e na arte. Corpos Invisíveis para Olhos Nus é um exemplo concreto de seu talento, sensibilidade e olhar especial sobre as coisas e as pessoas.
Um encontro de tempos e visões, que carrega muitos choques e alguma harmonia, desembocando numa forma teatral poética, delicada e cativante.
Manoel Candeias*
Braga, 9 de março de 2024.
* Ator, dramaturgo, pesquisador e professor. Doutor em Artes pela Unicamp. Docente da Escola Superior de Artes Célia Helena.
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Prólogo
Ele – A memória de um exilado tende a se expandir.
O desterro clareia os pensamentos e aguça as emoções.
Deixar o Brasil num momento de reconstrução do estrago produzido pela extrema direita foi, mais do que covardia, um gesto de rancorosa vingança. O silêncio cúmplice de boa parte da população acerca da perseguição a pessoas como eu, fora dolorido demais. Eu devolvia à pátria o abandono a que eu fora submetido. Quanto à minha família, ou o que restou dela, foi uma espécie de segundo abandono. Eu a abandonara pela primeira vez aos vinte anos. Deixara minha mãe aos prantos em mais uma das inúmeras casas inacabadas pelas quais passamos e da qual eu jamais sentiria saudade, e entendi, enquanto subia a ladeira em direção ao ponto de ônibus, que a solidão era prima-irmã da liberdade.
Dois anos antes, eu entrara para a universidade e descobrira que, por maiores que fossem as estantes de minha irmã mais velha, elas não seriam grandes o suficiente para conter as Alexandrias de livros que o mundo me guardava.
Elas - minha irmã e minha mãe - se dedicavam então à tarefa de tentar transformar as ruínas de um casebre em um lugar decente para se viver, o que me parecia praticamente impossível. E eu estava cansado de participar de construções intermináveis de casas que, ao final, era obrigado a abandonar. Encontrara o alçapão que me permitiria fugir daquele mundo do qual eu estava farto; eu era o rato abandonando o navio a pique, representava de bom grado o papel do judas traindo o cristo com um beijo, sem olhar para os que ficavam, para não correr o risco de fraquejar. Foi apenas mais um na sucessão de abandonos dos quais eu 17
seria, ora agente ativo, ora passivo. A vida se faz por abandonos.
Desde que cheguei em definitivo ao velho continente,