O mestre dos abraços: um olhar humano sobre o sofrimento
De Celso Traub
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O mestre dos abraços - Celso Traub
© Editora Gato-Bravo, 2022
Não é permitida a reprodução total ou parcial deste livro nem o seu registo em sistema informático, transmissão mediante qualquer forma, meio ou suporte, sem autorização prévia e por escrito dos proprietários do registo do copyright.
editor Marcel Lopes
coordenação editorial Paula Cajaty
revisão e adaptação Julia Roveri
projecto gráfico e capa Bookxpress
imagens da capa AdobeStock
Título
O mestre dos abraços: um olhar humano sobre o sofrimento
Autor
Celso Traub
Impressão
Europress Indústria Gráfica
Versão digital
Flex Estúdio
isbn 978-989-9069-19-0
e-isbn 978-989-9069-20-6
1a edição: Abril, 2022
Depósito legal: 497492/22
GATO BRAVO
rua Veloso Salgado 15 A
1600-216 Lisboa, Portugal
tel. [+351] 308 803 682
editoragatobravo@gmail.com
editoragatobravo.pt
Sumário
Agradecimentos
Prefácio
Introdução
1. Epílogo
2. Primavera
3. Rubem
4. Primeiros livros
5. Angelo
6. Nascimento
7. Helena
8. Infância
9. Escola
10. Daniel
11. Capão da Canoa
12. Catarina
13. Descoberta
14. Enfermaria 37
15. Antonio
16. O mestre
17. Paternidade
18. Sandra
19. Treze anos
20. Caio
21. Mom
22. Romeu
23. Amizade
24. Grupo I
25. Amboise
26. Grupo
27. O mundo
28. Sérgio
29. Paz
30. O planador
Ao meu pai, mestre do amor.
¿A qué le llaman distancia?:
eso me habrán de explicar.
Sólo están lejos las cosas
que no sabemos mirar.
Atahualpa Yupanqui
Agradecimentos
SOU GRATO À MINHA ESPOSA, minha grande cúmplice e alma gémea.
À minha filha, por estar sempre comigo, suportar os meus impulsos, os meus erros e me permitir ser o seu pai.
Ao enorme esforço despendido pelos meus pais para me proporcionar as melhores condições para o meu desenvolvimento, com todos os obstáculos que enfrentaram e que eu jamais vivenciei.
À Rosane Queiroz, por generosamente me apoiar e fazer parte da descoberta do processo que resultou neste livro.
Aos meus mestres, amigos e mentores que me mostraram as infinitas possibilidades de escolha pessoal e profissional que são a base do que faço.
Meu agradecimento especial a todos os meus pacientes, por me honrarem com a sua confiança. Fazer parte das suas vidas, testemunhar o seu sofrimento e merecer os seus segredos têm forjado, através dos anos, a forma como vivo e dou significado à vida.
Prefácio
LEVEI UM BOM TEMPO PARA ME DESVENCILHAR da tarefa de escrever este prefácio. O convite, como toda missão honrosa, rimou com responsabilidade.
Demorei tanto que veio a pandemia do coronavírus. Instalou-se a quarentena. Refugiei-me em uma quinta, com borboletas e bem-te-vis pela manhã e estrelas cadentes à noite. Nem assim. Não sabia por onde entrar neste subsolo povoado de personagens intensos que Celso Traub, com destreza e leveza, conseguiu descrever em textos que enlaçam memória, realidade e invenção.
Também não fazia ideia de como sair desse lugar que se pode chamar de um bom prefácio, aquele que, em vez de ser a pedra no caminho entre o leitor e o livro, surge como um portal que facilita o encontro. Como, então, abrir esse caminho da maneira mais breve, bonita e acolhedora?
Desnecessário dizer que não conheço o autor pessoalmente. Mas vou dizer mesmo assim. É um detalhe que confere algo mais à relação que se estabeleceu entre nós, em um ano e pouco de convívio, com foco na produção literária deste livro. Celso se tornou, ao longo do nosso trabalho, um bom amigo, desses que a pessoa não sabe bem o que fez para merecer.
A história começa com um telefonema. Com o sotaque gaúcho denunciado pelo pronome tu, ele se apresentou, tímido e gentil, como um psicanalista, natural de Porto Alegre, radicado em Florianópolis. Contou que estava perto de completar sessenta anos, uma das razões pelas quais decidiu jogar pesado consigo mesmo e colocar seus escritos à prova. Precisava de uma interlocutora. Pediu sinceridade total, mesmo que doesse em seu ego leonino. Falou fartamente sobre suas influências literárias, de Rilke a Roth.
Para escrever, é preciso ter algo a dizer. Celso tinha.
Sempre, ou quase sempre, às quintas-feiras, chegavam os textos, que tive o privilégio de ler em primeira mão. Eram os únicos que me faziam, eventualmente, quebrar as regras do meu home office e levar o notebook para a cama, para relê-los, à luz do abajur, como capítulos de um livro já consagrado.
Quinzenalmente, as manhãs de sexta ficaram marcadas por longos telefonemas, para colocar os pingos nos is na segunda mão do texto. Depois passamos para as chamadas de vídeo, quando pude confirmar a impressão que havia formado sobre Celso. Um homem elegante, de sorriso aberto e humor sagaz.
Naturalmente a conversa derivava para todos os temas de nossas vidas. Nossos amores, filhos, discos, livros e muito mais. Eu, tirando uma casquinha dos conselhos do terapeuta, em troca de adjetivos e vírgulas. Ele, com a generosidade dos grandes, oferecendo, mais do que palavras, uma mão estendida para ajudar.
Mas vamos ao que interessa a um prefácio que se preze: dar uma palhinha do que o leitor vai encontrar nas próximas páginas. Lendo e relendo os originais, me pego pensando sobre quais aspectos da reflexão trazida nos trinta capítulos deste livro valeria destacar.
O título é uma boa pista. Há frases que são como abraços. Curtos e intensos. Há parágrafos que acolhem como longos abraços. Especialmente os que narram as lembranças de Miguel, o pai que partiu precocemente, personagem absolutamente empático, que permeia todo o livro com seu olhar luminoso, sorriso largo e gestos incalculados. Eis O Mestre
que marcou a infância e a juventude do caçula Celso.
Da movimentada casa dos Traub, na rua Augusto Pestana, em Porto Alegre, temos passagens inesperadas para a sala do consultório do psicanalista, em Florianópolis. Ali, o leitor pode realizar a fantasia de ser uma formiguinha, ouvir as confissões dos pacientes e ainda ler o que se passa na cabeça do terapeuta.
Celso nos guia pelo labirinto da psicanálise, revelando reflexões sobre diagnósticos e teses de tratamento que não sabe bem se vão funcionar. Não por acaso, entre suas principais influências consta o génio do género, o norte-americano Irvin Yalom, autor de O carrasco do amor, Mentiras no divã e Quando Nietzsche chorou, entre outros best-sellers.
Yalom é dos poucos psicoterapeutas que conseguem a proeza de escrever com leveza e profundidade sobre as dores humanas e seus modos de enfrentamento. Traub, por sua vez, aborda o género com uma concisão maior. Um de seus méritos é conseguir resumir uma sessão de psicoterapia e o resultado do tratamento em poucas páginas. Cada crônica de consultório é um shot de terapia. Sempre tem uma coisinha que a gente aproveita para o próprio bem emocional.
Outro traço importante na escrita de Celso é acrescentar às histórias reais um claro envolvimento emocional. Como Yalom, ele aposta na relação terapeuta-paciente como ingrediente fundamental da psicoterapia. Permite-se expor-se, dentro dos limites impostos pela profissão.
Mais habituado a cuidar do que ser cuidado, Celso oferta seus fragmentos íntimos
, como ele mesmo diz. Aos poucos, o leitor vai descobrindo que o que ele oferece é um pouco do que recebe diariamente.
Os pacientes no divã trazem os dilemas humanos, a dificuldade para estabelecer relacionamentos verdadeiros, os traumas que travam o desenvolvimento de uma sexualidade saudável, os nós das relações familiares, que muitos passam a vida tentando transformar em laços. O que se pode aprender, a cada página virada, é que se a psicanálise serve para algo, é para reconectar cada um com a sua essência.
Ao mesclar esse conteúdo a suas memórias, Celso narra sua trajetória pessoal, criando um mosaico de pessoas importantes em sua linha do tempo. A perda do pai, a relação complexa com a mãe, os amigos e as paixões da juventude, os conflitos diante da própria paternidade, o amor explícito pela mulher, Clara, declarado em muitas linhas e entrelinhas.
Entre um capítulo e outro, encontramos Celsos diferentes. Neles, o leitor vai conhecer o Celso médico, psicanalista de sucesso, mas também o menino Celso, encantado com a montagem de um planador de brinquedo. Vai se deparar com o jovem Celso, questionando os rituais judaicos da família ou, ainda, ousado, abandonando a casa dos pais e o país, aos quinze anos, para estudar fora.
Em cada época, nota-se um fio condutor da pessoa do escritor – o menino que foi e o homem que se tornou, a partir da forte e terna influência paterna.
Ao associar o título do livro à figura de Miguel, Celso Traub antecipa o tipo de abraço que vamos encontrar em seu livro de estreia. Ao construir histórias repletas de imagens, sons, aromas, o autor nos conduz a uma viagem pelos sentidos e o sentir.
Também há a vista da Lagoa da Conceição e os barquinhos coloridos, dançando ao vento, a partir da janela do consultório, o sabor de hortelã do chá fumegante sobre a mesa, como gesto de boas-vindas, consolo ou cumplicidade, o som de uma sonata de Beethoven, o cheiro de Aqua Velva impregnado na lembrança do pai e, por fim, a memória sensorial, eterna, do inesquecível abraço do Mestre dos Abraços.
— Rosane Queiroz
abril de 2020.
Introdução
LER SEMPRE FOI A MINHA GRANDE JANELA para o não vivido, porta para o desconhecido. Desde sempre, os autores me acompanharam como grandes amigos. Confidentes das minhas dores e do vazio que buscava preenchimento. Sentido para prosseguir.
Escrever parecia improvável. Olimpo dos Lobatos e Verissimos. Capacidade inatingível.
Veio a idade, a vida vivida e pensei, afinal, o que tenho a perder
?
Procurei pessoas que pudessem me dizer para desistir. Para, humildemente, aceitar-me como leitor. Não as encontrei. Generosas, me diziam para ir em frente. Aqui estou.
Ao sacudir as cinzas adormecidas no chão das memórias, acordei anjos e demônios.
Retornei ao bonde da minha infância. À mão que me segurava forte e me fazia poder tudo ver sem ter que me preocupar com mais nada.
Ao paraíso perdido do amor que não resistiu à decrepitude corporal. Às dores da separação e do recomeço.
Antes dessa aventura, dormir sempre foi natural, simples. Durante essa empreitada, surgiram os sonhos, caprichos inconscientes aguardando seu momento para ganharem vida.
Após o primeiro ano de trabalho necessitei parar e me afastar de tudo.
Em uma grande feira de arte percebi que o que me encantava eram referências às décadas anteriores ao meu nascimento.
Me perguntei qual o sentido de me atrair por um óleo de dois meninos pulando cela
, inspirado por uma foto de 1945. Os cabelos curtos, os suspensórios sustentando as calças curtas, as botinas de couro surradas e as meias meia canela da época.
Estava em busca do tempo em que meu pai era jovem, o tempo que eu não vivi.
Esta obra é o resultado de uma vida protegida pelo amor de um homem. Um amor capaz de sobreviver à separação e ao tempo. Um amor que reveste eternamente o ser amado de valor e significado.
— Celso Traub
setembro de 2019.
1. Epílogo
GOSTARIA DE TER TIDO MAIS TEMPO COM O MEU PAI
, pensei, entre um vazio e uma fraqueza que não reconhecia como meus. Quem são essas pessoas?
A quantidade de rostos desconhecidos atrapalhadamente dispostos entre as sepulturas, que roubavam quase todo o espaço do pequeno cemitério judaico, me surpreendeu. Meus amigos estavam postados ao meu lado. Em um movimento simultâneo, entrelaçando os seus braços com os meus, foram eles que me mantiveram ereto no exato momento em que minhas pernas vacilaram. Naquele gesto, senti a tonicidade no corpo como um abraço.
O mestre dos abraços, contudo, permanecia inerte dentro da caixa de madeira sustentada por cordas e braços de dois homens que eu jamais havia visto. Os dois desconhecidos soltavam as cordas lentamente, fazendo com que a caixa deslizasse para dentro do buraco que eles mesmos haviam cavado horas antes. Apesar de tudo, eu não conseguia deixar de sentir o forte cheiro da terra revirada.
Será que algum dia eles sentiram-se abraçados como eu me senti?
É difícil supor que existam no mundo braços tão amorosos e uma proximidade que jamais respeitou limites.
Estava atordoado, em dúvida sobre a realidade de tudo a minha volta. Desvanecia as imagens, substituindo-as pela fragrância da terra fresca, misturada ao cheiro do meu pai que vivia em mim. Um cheiro forte de suor, loção pós-barba, tabaco e álcool que me remetiam à sensação de proteção e amor incondicional. Seus olhos azuis pálidos intensos sempre me deixaram clara a importância da minha existência, independentemente de qualquer coisa que acontecesse.
O som oco da terra atingindo a madeira amplificou espetacularmente o meu desespero não manifesto. O inferno crescia dentro de mim, oculto de todos. Não encontrava nada que pudesse me apoiar nessa despedida. Rostos, túmulos, braços entrelaçados aos meus, e eu só pensava em sentar no solo, ao lado do buraco, e permanecer ali. Quieto. Com o doce cheiro da terra que envolvia o meu pai.
Os braços dos meus amigos, que praticamente me carregavam no momento em que eu sentia a fuga das minhas pernas, comandaram-me para segui-los. Ao iniciar o movimento, recuperei a força. Ereto, me voltei alternadamente para os homens que amorosamente me sustentavam na última meia hora. Abracei cada um deles, como se pudéssemos manter-nos assim por mais tempo, para depois libertá-los.
Posicionei-me, paciente, em meio aos meus irmãos, para receber mecanicamente as tradicionais palavras de consolo vindas da multidão em fila, de modo a fazer isso de forma organizada. A raiva substituiu a fraqueza. Com esforço, mantive o olhar em cada um dos rostos que passou por mim. Via seus lábios movendo-se, sem escutar o que diziam. Alguns choravam, outros mal me conheciam.
Os meus amigos já haviam partido. Giletes afiadas dançavam dentro de mim.
Me afastei a passos firmes da escura multidão que insistentemente permanecia reunida em frente ao cemitério. Algo não permitia que eles fizessem o mesmo que eu. Talvez a estranheza e o constrangimento de seguirem a sua vida sem o estimado amigo. Desci a ladeira com a minha ruína indisfarçável, fugindo do meu pai e de todos os que se negavam a deixá-lo.
Sentia o meu peso a cada passo colina abaixo. Temia o retorno da incapacidade de me manter em pé. O colarinho da minha camisa, cortada pela lâmina do rabino minutos antes, baloiçava ao vento, contrariando meus movimentos urgentes.
Eram os meus primeiros passos num mundo desconhecido. A brutalidade desse sentimento ainda trago comigo. O frio encontro com um mundo cego e surdo, que não me vê nem me escuta.
A caminho de casa, ouvia dentro de mim as lúgubres vozes do coro do Requiem aeternam, de Mozart. Sentia-me acompanhado pela dor emitida em cada acorde e deixava um rasto de lágrimas por onde passava. Ao chegar, desabei no sofá do meu pequeno apartamento de peça única. A mesma música agora ressoava no ambiente, a partir do toca-discos.
A capa do LP ironicamente estampava a imagem da Pietá. Tentava respirar no ar escuro do meu novo estado, enquanto sentia o meu corpo ser consumido pelas vozes que denunciavam agonia, à medida que os movimentos do Requiem prosseguiam. Repeti infinitas vezes a faixa Rex tremendae. Ao mesmo tempo que o coro grita a agonia da perda, a música de fundo denuncia o inexorável seguir da vida. Sozinho, sofri na companhia do meu amigo Amadeus. A dor pode ser terrivelmente cruel e destruidora, do mesmo modo que pode tornar-se uma companheira valiosa, se soubermos como tratá-la. Ela não é um animal doméstico, um cão que ensinamos a lidar com suas necessidades. Não possui tamanho definido e estável para encontrarmos um local de armazenamento na estante ou na garagem. Um vento pode soprar agradável e envolvente, e em pouco tempo transformar-se em força violenta, ameaçando o nosso equilíbrio.
A presença daquele homem de estatura mediana, gestos largos e cheiro de Aqua Velva me impregnou e me neguei a mudar essa lembrança. Como afastar-me de um amor tão incontido