Explore mais de 1,5 milhão de audiolivros e e-books gratuitamente por dias

A partir de $11.99/mês após o período de teste gratuito. Cancele quando quiser.

Cidade Cinza
Cidade Cinza
Cidade Cinza
E-book220 páginas2 horas

Cidade Cinza

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

A Cidade Cinza acontece a quem nela vive. Nada pode ser feito em relação a isso. É nela que começamos a seguir a história de Maddy, vinda da Costa, agora nativa de Cinza. Maddy pouco sabe, na realidade, como veio ali parar. Armada com a coragem de quem procura as suas raízes, Maddy mergulha nesta urdidura urbana repleta de espelhos e sombras. A sua jornada é um trilho de descobertas e reencontros, um desafio aos limites na busca de laços familiares perdidos no tempo.
IdiomaPortuguês
EditoraClube de Autores
Data de lançamento14 de jan. de 2024
Cidade Cinza

Relacionado a Cidade Cinza

Ebooks relacionados

Ficção Científica para você

Visualizar mais

Categorias relacionadas

Avaliações de Cidade Cinza

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Cidade Cinza - Sara F. Costa

    Cidade Cinza

    Sara F. Costa

    A consciência dispõe de duas maneiras de representar o mundo. Uma direta, segundo a qual a própria coisa parece estar presente ao espírito, como acontece na perceção ou na simples sensação. A outra indireta quando, por qualquer razão, a coisa não pode apresentar-se em carne e osso à sensibilidade, como acontece por exemplo na recordação da nossa infância, no imaginar as paisagens do planeta Marte, na compreensão da órbita dos eletrões em torno do núcleo atómico, ou na representação de um mundo para lá da morte. Em todos estes casos de consciência indireta, o objeto ausente é re/a/presentado à consciência através de uma imagem, no sentido mais lato do termo.

    - Gilbert Durand¹

    Epigrama - eu amo os meus sonhos

    Eu amo os meus sonhos, disse eu, na manhã invernal,

    Ao homem prático e ele, com desprezo

    Respondeu "Eu não sou escravo do ideal,

    Mas, como todos os homens sensatos, eu amo o Real."

    Pobre tolo, confundindo tudo o que parece com aquilo que é.

    Eu amo o real quando amo os meus sonhos.

    Alexander Search

    O condomínio era uma espécie de criança impossível, atravessada entre os dentes. Nenhum rosto humano ao abrigo da dialética. Podíamos olhar para os sucessivos edifícios de cinquenta andares sabendo que nos devolveriam o olhar. A diferença entre os dois observadores simultaneamente observados era aquela que existe entre o criador e aquele que é criado. Entre tantos, o criado é apenas episódico e tal é a sua experiência da realidade. Entretanto, todas as ocorrências da vida se vão agrupando em representações: nada que as justifique, nada que seja delas direta consequência. Quando os pais de Maddy se mudaram para o condomínio, os vizinhos já sabiam disso. Comentavam com frequência o estado de saúde mental daquele cão que era visto a exasperar-se com o seu próprio reflexo nas águas do canal, diziam: Aquele cão não tem problema nenhum, mas quer morrer.

    - Esse cão é depressivo! - Dizia o Sr. Yu, vizinho do andar de cima. - Põe-se a correr ao longo do canal como se quisesse bater em retirada, digo mesmo, tenta afogar-se! Atira-se e quer deixar-se por ali. Grande e pesado como é, consegue ostentosamente ir ao fundo e não oferece resistência! Já o fui resgatar quatro vezes, ele sai sempre com um cheiro latrinário a carne putrefata. Tenho que pôr a roupa para lavar logo que chego a casa e meter-me debaixo do chuveiro para não ficar com esse eflúvio entranhado.

    Maddy achava o relato inusitado. Ela nunca tinha visto o cão fora dos limites do condomínio Shenjia. Era um cão pequeno e, por isso, não compreendia porque é que o Sr. Yu insistia em dizer que tinha visto um cão grande e pesado que se deixava afogar assim, intencionalmente. O céu amarelado e o ar com grão a flutuar entre os interstícios da parca luz cinzenta convidavam ao uso de óculos. Maddy não precisava de óculos, mas usava óculos e muitas vezes punha também tampões nos ouvidos. Era desagradável quando a areia aérea lhe entrava nos orifícios. Sentia o amarelo dos grãos a escurecer dentro da caixa do tímpano, a distorcer os sons desde o martelo ao nervo acústico.. Nesse dia, saiu de casa por volta das cinco da tarde. De bicicleta demoraria cerca de uma hora a chegar ao outro lado do canal. Num gesto desembaraçado, sacou do telemóvel para desbloquear uma das bicicletas partilhadas que se acumulavam em frente ao condomínio. Os travões estavam enferrujados e os pedais produziam um som dúbio. À medida que dava aos pedais no mais mecânico manejo, a bicicleta até chegava, ocasionalmente, a ficar completamente imóvel. Tinha uma intimidade muito própria com o vento: sempre que parava de soprar, a bicicleta também se detinha na sua marcha. O percurso sinuoso entre as avalanches de autocarros, as bicicletas, motocicletas, motas e motinhas em contramão, os riquexós e os cavalos, fora os peões sem travões e a poeira amarela que mal entrava no campo de visão das pessoas escurecia. O fumo típico, fumo inconfundível, um fumo de fim de livros, fim do espaço, fim do mundo. A qualquer momento poder-se-ia morrer, mas esse seria apenas um momento, entre todos os outros em que se viveria. Havia uma sensação profunda de vida naquelas estradas onde o perigo de morte sabia a frescura. A frescura poluída de uma cidade hedionda. À sua volta, não conseguia distinguir qualquer veículo em particular, perante todo aquele fluxo indistinto de transportes. A única coisa passível de divisar eram os grandes edifícios de néon, lá ao fundo (constantemente desesperados por atenção). Independentemente dos quilómetros que pedalasse, aqueles edifícios gigantes pareciam estar sempre à mesma distância, soberanos e inexequíveis. Arrogantes, todos eles, nos seus prosaicos pedestais de argamassa. Perguntava-se se algum dia tocaria num. Àquela hora, a luz diurna já quase se extinguia. Não que a noite se tivesse começado a instalar mais cedo. Em vez disso, a luz do sol é que nunca resistia a um dia inteiro em Cinza. A cidade estapafúrdia cuspida pelo fumo cinzento. E era esta cor, na sua singularidade de catástrofe, que deslumbrava Maddy. Acreditava que aqueles tons de cinza continham neles um profundo mistério.

    Não era comum aventurar-se até ao outro lado do canal, apesar de não ficar muito longe do condomínio Shenjia. Simplesmente, não tinha motivos para ir lá. Tudo o que tinha para fazer, fazia-o do seu lado da cidade. Era outro distrito, mas não era só a divisão geográfica que se impunha, era a chata domesticação de mais um espaço da urbe. Cada bairro, cada distrito, tinha a sua própria compleição. Dominar todos os sítios era laborioso. Maddy nem sempre tinha disposição para tal. Na realidade, nada mudava na sua exterioridade, de uma maneira ecuménica. Ao longo dos 17000 quilómetros quadrados toda a cidade era delimitada por montanhas raramente visíveis - era o caso apenas se o fumo levantasse um pouco numa manhã triunfante. O resto eram os levantamentos em betão disparatados a disparatar em todos os sentidos, sem uma sequência que se pudesse delinear. Quanto maiores, mais distantes. Por vezes, parecia que havia construções novas, outras parecia antes que tinham posto alguns arranha-céus abaixo para logo se edificarem outros. Era um estado de coisas indefinido, altamente imprevisível que enfeitava a vida dos vinte milhões de habitantes que tantas vezes pareciam também, aos olhos de Maddy, indefinidos entre si. Raramente se aventurava até ao outro lado do canal, mas estava hoje em alvoroço face à possibilidade de poder ver o Sam. Viu-o, pela primeira vez, no centro comercial, na loja de roupa onde ela trabalhava. Um homem alto, de cabelo ruivo, pele muito branca, frenético, acelerado  e com aquela atitude de quem pensa que o mundo se lhe vai esvair pelos dedos dentro de alguns minutos. Nisso, identificava-se com ele. Também ela era um alvoroço feito gente, pronta para qualquer coisa que não fosse vender roupa naquele shopping. O rapaz ruivo já tinha passado algumas vezes pela loja dela, mas nunca tinha parado. Certo dia, deteve-se e Maddy vira-o a demonstrar mais interesse na loja. Olhou-a fixamente por uma fração de segundos, depois aproximou-se de uma t-shirt que vertiginosamente puxou até ao nariz. O homem inalou de tal maneira que Maddy sentiu que ele respirava juntinho ao seu pescoço. Depois, virou-se para ela e quase lhe disse: Está um dia cinzento hoje, não está?. Não foi o que ele disse, mas praticamente. Na semana seguinte, levaria consigo o saco de cenouras para o café onde haviam combinado um primeiro encontro. Maddy já tinha percebido que era o trabalho dele - vender cenouras. Um saco enorme onde pareciam caber três vacas. Aquela cena trazia o burlesco que faltava à vida de Maddy. Ali ficou, o saco que ocupava uma cadeira inteira da mesa, como se fosse uma terceira pessoa a observá-los; ou três vacas a observarem duas pessoas naquela primeira interação mais íntima. As cenouras tinham, contudo, um aspeto delicioso. E qual a génese de tal iguaria? -  perguntava-se Maddy. Foi nessa gula que aceitou passar pelo jardim de Sam. Uma plantação de cenouras em plena cidade preconizava algo enigmático. Era desta que Maddy se divertiria à séria.

    Continuava a pedalar a bicicleta, mas esta estava constantemente a imobilizar-se. O vento deixara de colaborar e começara a misturar a escuridão com a poeira - tudo num só remoinho.

    - Que sítio magnífico! - Repetia para si própria, enquanto um carro se aproximava, quase derrubando-a, mas não derrubando mesmo.

    Para se dirigir a casa do Sam, tinha de atravessar duas pontes, virar à esquerda, ir em frente e depois, virar à direita. Verás um grande edifício verde, que é também azul quando visto de mais perto. Eu moro no edifício que se encontra atrás desse. Na continuidade da estrada, uma ponte decorada com pequenos dragões de pedra branca separava a bicicleta de Maddy do canal. Espreitou da bicicleta em movimento e olhou para a água fosca. Nenhuma da iluminação dos candeeiros que circundavam o canal se espelhava. Era uma água que não refletia nada. Não tinha brilho. Seguiu as instruções que Sam lhe tinha dado - até que começou a distinguir, ao longe, o tal edifício verde. Quando se aproximou do edifício verde, verificou que este, realmente, também podia ser azul. Do outro lado da rua havia uma fila de casas geminadas que brilhavam na escuridão. Pedalou em direção àquele brilho. Contudo, ao aproximar-se, apercebeu-se de que não se tratava de casas: eram apenas caixas a arder, umas por cima das outras. Subitamente, no outro lado da estrada, avistou o Sr. Yu a pedalar. Ao vê-lo pedalar na sua bicicleta comunitária, não pôde deixar de pensar na forma como a tecnologia já constava da cultura citadina de Cinza, atravessando todas as gerações. Aproximou-se para o cumprimentar, mas - quando ele se virou na sua direção - apercebeu-se de que não se tratava exatamente do Sr. Yu. Era alguém muito parecido com o Sr. Yu, só que mais novo. Seria o seu neto? Agora, já se tinha aproximado demasiado para entretanto não lhe dizer nada.

    - Olá! Desculpe, pensava que era um vizinho meu.

    O jovem Yu continuou a pedalar como se não a tivesse visto a aproximar-se. Pedalou na direção das caixas a arder, mas a dada altura Maddy viu-o voltar a pé. Tinha deixado a bicicleta encostada a um canto. Cambaleava com urgência, agora em direção a Maddy; parecia ter agora algo a dizer-lhe.

    - Vi ali o cão! - Disse, sem olhar diretamente para Maddy.

    - Como? Viu o cão do condomínio Shenjia? 

    - Vi ali o cão e ele estava a arder.

    - Também mora no condomínio Shenjia? É neto do Sr. Yu?

    Ele ouviu a pergunta, mas não respondeu, desviou o olhar e seguiu caminho. Maddy viu-o a bambolear em direção ao edifício azul-verde ou verde-azul e a entrar por lá, como quem estava decidido a fazer aquilo, fazendo-o com toda a convicção. Sentiu-se intrigada, talvez fosse uma daquelas situações em que devesse seguir o coelho branco para a sua toca, exceto que aquele não era um coelho - era o Sr.Yu, só que mais novo. Foi atrás,  mas quando entrou pela mesma porta já não o viu. Diante de si erguia-se um lanço de escadas que iam dar às respetivas plataformas de cada andar. Por fora, dir-se-ia que se tratava de um edifício de vinte andares. Com o movimento, os sensores de luz ligavam-se e lâmpadas fluorescentes projetavam a mesma cor verde azulada ou azul esverdeada do seu exterior. Maddy olhou para a própria mão a mudar para aquela cor provocadora, a deixar de ser mão e a ser cor turquesa marinho ou que porra e sentiu-se quente por dentro. Sentiu que estava no sítio certo. Não vislumbrou quaisquer vestígios da versão mais jovem do Sr. Yu. Decidiu subir - até porque não havia outra opção - mas, à medida que subia, ia-se apercebendo de que o lanço de escadas não parecia acabar. O que parecia ser um lanço de dez escadas logo se transformava num de vinte e depois num de trinta, por ali a fora. Começou a aperceber-se que eram degraus a mais, precisamente quando deu conta do quão ofegante estava. Não tinha forma de saber quantos andares tinha subido e quantos andares lhe faltavam subir. Pensou em descer, mas depois pensou que iria ser provavelmente tão útil como subir e aquela cor fazia-a acreditar que era possível que estivesse no lugar certo. Ofuscada pela indefinição daquele verde, fechou os olhos por alguns segundos, esfregou-os e quando os voltou a abrir conseguia distinguir agora um canto escuro, para onde antes não olhara. Ali erguia-se um pequeno portão. Talvez fosse esta a entrada para o jardim de Sam. Empurrou-o. Não teve dificuldade em empurrá-lo, mas assim que o abriu, uma luz pungente turvou-lhe o olhar e uma planta pontiaguda entrou-lhe na boca até à garganta. Engasgou-se e cuspiu aquilo que parecia ser uma folha de palmeira. Sentiu um ar abafado e húmido,  diferente do exterior. No exterior o ar era sempre abafado, mas seco. Ali sentia-se mais um efeito de estufa. Quando voltou a abrir os olhos conseguiu distinguir silhuetas de uma folhagem exuberante, que lhe davam as boas-vindas a um jardim tropical. Haviam palmeiras de vários tipos e estrelítzas, dracenas, gengibres, agaves, etc. Começou a tentar identificar toda a flora que lhe aparecia à frente. Trabalhara no Museu Nacional, logo, percebia do assunto. Dali não conseguiria afirmar se aquele era um espaço aberto ou fechado. A fragrância floral estimulava-lhe os sentidos e pareceu-lhe que alguém estava sentado num barco, circundado por folhas de bananeira. Olhou melhor e viu um banco. Deve ser o jovem Sr. Yu, pensou. Ao aproximar-se um pouco mais, viu que se tratava de um homem alto e ruivo. Diferia em muito da figura do jovem de cabelo preto liso e de estatura baixa que tinha avistado próximo das caixas a arder. Viu a figura voltar-se na sua direção:

    - Maddy! Pensava que já não vinhas! Porque demoraste tanto? Os peixes-gato venenosos devem estar a chegar. Se calhar não vais conseguir voltar a atravessar o canal esta noite.

    - Peixes-gato? Eu não sabia que havia peixes-gato venenosos no canal.

    - Pois há! Nem toda a gente os consegue ver, mas a partir de uma certa altura, pura e simplesmente, deixa de ser seguro atravessar o canal até

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1