Algum lugar
De Paloma Vidal
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Algum lugar - Paloma Vidal
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Se llega a un lugar sin haber partido
de otro, sin llegar.
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I
O outono começava a dar sinais no hemisfério norte quando meu voo pousou na cidade, às 10:05. Passei pela imigração sem problemas, mostrando meu visto de estudante, e resgatei a bagagem numa das dezenas de esteiras do desembarque. Só me restava procurar um lugar para sentar, diante das quatro horas que faltavam para a chegada de M.
Empurrando o carrinho com a mala azul imensa, vou em direção a um guarda do lado de fora do saguão: estou esperando uma pessoa que chega no voo 3455, da American Airlines. Onde há um café? Não há nada por aqui, o homem responde sorrindo. E cadeiras? Também não há. Você pode usar um desses bancos para deficientes físicos, ele sugere, mas terá que levantar se alguém pedir. That’s the deal? Sigo em frente com o carrinho pelo lado de fora do saguão, desviando com dificuldade dos outros recém-chegados, e encontro por fim umas poltronas no terminal ao lado, onde me deito e observo meus vizinhos até pegar no sono: duas moças orientais conversando animadamente em sua língua, um rapaz, deitado que nem eu, colado à mala, dois negros altos, em pé, com as pernas bem abertas, segurando cartazes com nomes de passageiros. Não consigo entender a voz que sai do alto-falante. É inglês?
Quando acordo, o voo de M já desembarcou. Procuro inutilmente por ele. Os saguões estão lotados. As pessoas vão e vêm, esbarrando umas nas outras, tentando achar sua esteira para poder pegar o que é seu e deixar o mais rápido possível esse aeroporto que faz questão de expulsá-las. Do lado de fora, as filas dos táxis e vans são longas. Não o vejo em nenhuma delas. Nada disso estaria acontecendo se tivéssemos viajado no mesmo voo, penso, e antecipo as recriminações mútuas: ele, por eu ter me precipitado, comprando a passagem quando nem sabíamos se íamos mesmo viajar; eu, por ele ter deixado para comprá-la na última hora. Volto com o carrinho para o meu terminal, com a esperança de que M tenha ido me pegar lá guiado pelo número que rabisquei num pedaço de papel antes da partida. Cruzo com o guarda da chegada, que olha para mim mas não me reconhece. Não consigo acreditar que já estejamos perdidos sem sequer sair do aeroporto. Não quero acreditar: se me deixar levar, verei retrospectivamente a conexão entre muitos sinais antes invisíveis que indicavam o que só agora, sozinha na cidade, sou capaz de entender. A decisão de virmos em voos separados me parecerá um primeiro passo em falso. Pior, o fato de não haver dois lugares num mesmo voo se mostrará com um sinal que não consegui identificar, mas que punha em dúvida o sentido mesmo da viagem. O choque da lembrança de repente paralisa o meu pensamento: combinamos que nos encontraríamos na locadora de carros. Quando chego, lá está ele, tomando um café e lendo o Los Angeles Times.
Ao ouvir minha voz, M abaixa o jornal e sorri. Depois o deixa no chão, se levanta, vem na minha direção e me abraça, como se intuísse nosso desencontro, que não menciono para não desaproveitar a possibilidade de um recomeço. Chegamos. Deu certo. Em breve, estaremos atravessando a cidade. O que veremos será bastante próximo de um cenário onde os contornos entre realidade e ficção se desmancham. A imaginação nesse caso não terá trabalhado sozinha, daí essa sensação de que tudo já foi visto em algum outro lugar fora daqui. Dirigindo devagar o carro branco que alugamos, imenso apesar de ser o mais barato da loja, ele também parecerá ter saído de um filme, com um sorriso de quem está pensando algo inconfessável. Um sorriso que o distanciará de mim e me fará abrir a janela para me entregar à paisagem transparente que a cidade oferece, seduzindo-me com uma familiaridade simulada, de casas baixas e palmeiras, lojas e marcas conhecidas, de longas avenidas sob um céu perfeitamente azul. Deixarei que ela me seduza com sua geometria cinematográfica, abandonando a impressão perturbadora do aeroporto por uma sensação de reconhecimento que nesse instante me confortará.
Você queria realmente estar aqui?
Na tv do quarto que alugamos no centro da cidade, dezenas de canais de vendas oferecem inutilidades. Dezenas de canais de notícias, todos falando da mesma coisa, do mesmo jeito: a guerra do Iraque, nossos mortos no Iraque, como sair do Iraque. A abordagem parece irreal. Iraq War pisca na tela como o letreiro de uma nova estreia. Segue-se uma espécie de trailer, igual em todos os canais, com as mesmas imagens coladas às mesmas frases. Quando desligo o aparelho, estou exausta, mas não consigo fechar os olhos.
Na primeira semana, percorremos diariamente o Wilshire Boulevard, que vai de Downtown até o mar, passando por Westwood, onde fica a universidade. Quilômetros de uma avenida que, na volta sobretudo, parece interminável. Passamos o dia inteiro em estado de nomadismo, da universidade a algum apartamento anunciado na internet, depois a um bar, de novo à universidade, depois ao banco, para tentar abrir uma conta, outro apartamento, mas nada habitável no preço que podemos pagar.
Um velho nos recebe no portão de um prédio de três andares que parece uma casa, com um pequeno jardim na entrada que, embora descuidado, promete um interior hospitaleiro. Seguimos o homem até uma porta no fundo de um corredor, que se abre para um quadrado escuro, com uma janela alta na parede do lado direito; do lado esquerdo, outra porta, do banheiro; no fundo, uma bancada com uma pia e um fogão portátil com duas fornalhas. O contraste com a luminosidade externa torna o ambiente ainda mais sombrio. Agradecemos o velho e saímos de cabeça baixa.
Falamos pouco, mas estamos unidos na busca e na decisão de não nos rendermos ao desânimo. M diz coisas como é assim mesmo
. Em outros momentos, sou eu quem faço o comentário alentador que nos dá energia adicional para continuar procurando, subindo e descendo as escadas do campus, desorientados ainda, sem saber se a ordem das nossas tarefas vai resultar em algum ganho evidente nesse dia. Voltamos para o quarto exauridos, depois de mais de uma hora de uma demorada travessia pela avenida que corta a cidade. Só alguns meses depois, andando de carona com algum amigo, começaremos a entender que em Los Angeles as avenidas não são exatamente vias de transporte; para se locomover, existem as freeways, que conformam um mapa sobreposto à cidade, um mapa próprio, com suas entradas e saídas que guardam uma relação apenas tangencial com o desenho quadriculado, remanescente de uma cidade em que a calçada ainda fazia algum sentido.
Downtown?, um conhecido do Brasil pergunta quando nos falamos pelo telefone, vou aí agora mesmo pegar vocês. O resgate nunca chega.
No nosso primeiro passeio turístico, pelas ruas movimentadas de Santa Monica, bem perto da praia, entramos numa livraria da 2nd Street, um lugar acolhedor, curiosamente resguardado do burburinho do seu entorno, como se estivesse ali desde antes, num tempo em que não havia tantas lojas, tantos pedestres, tanto movimento, e essa anterioridade lhe permitisse se manter à parte; manter, por exemplo, suas proporções, bem menores do que as filiais das grandes cadeias de livrarias, com um andar somente e poucas seções. Foi na de Critical theory que encontrei uma edição paperback de Rua de mão única, um livro de capa verde claro, com uma introdução de vinte páginas de Susan Sontag, que carreguei indecisa de uma seção a outra durante a meia-hora que passamos na loja até me convencer de que realmente o queria. M saiu com uma pequena coletânea do Wallace Stevens.
Ao chegar no quarto, coloquei o livro sobre a cama, mas não o abri nessa noite pensando que não era exatamente o que deveria ler nesse momento. Deveria, ao invés disso, ir logo à biblioteca e começar minha pesquisa metodicamente, ideia que me produzia uma angústia difusa ligada a outros projetos que não se realizaram. Já o livro do Benjamin, sua forma, sua composição, com inúmeros subtítulos seguidos de pequenos trechos de uma ou duas páginas, me confortava com a possibilidade de outros métodos.
Se depender de Los Angeles, nosso inglês permanecerá eternamente como é: uma língua básica, latinizada, de passagem.
Constato que se não tenho um espaço meu do lado de fora, meus pensamentos não me pertencem. Só que mais um fim de semana se passou e não há perspectivas de encontrarmos um apartamento nos próximos dias, então minha mente continuará boiando em sua própria confusão sem conseguir se concentrar em nenhuma das leituras que lhe propus depois de uma primeira ida à biblioteca. Já esgotamos os anúncios com telefonemas desalentadores e visitas inúteis. As longas idas e vindas da universidade tornaram-se uma silenciosa tortura. Somos massacrados diariamente pela cidade, que nos faz pagar nosso desconhecimento com uma viagem lenta e maçante. Meu único contato com ela é através da janela do carro, uma pequena tela particular, em movimento. Acompanho uma longa sequência em que a cidade exibe sua aparente monotonia – uma calçada única, de um extremo ao outro. Supostamente, qualquer um poderia circular em qualquer lugar, mas não: existem os pedestres de Wilshire e Beverly Drive, os pedestres de Wilshire e Fairfax, os de Wilshire e La Brea, os de Wilshire e Western. À medida que vamos nos aproximando de Downtown, tudo fica menos homogêneo: negros, orientais, árabes, os prédios novos e os antigos, mal preservados, as lojas de departamento e o museu, terrenos baldios, bicicletas e carros. De uma ponta à outra da avenida, as diferenças são evidentes, mas tudo se passa com naturalidade, como uma coisa que necessariamente leva a outra.
Cada vez que chegam ao quarto ela pensa que seria impossível fazer isso sem ele. Como encarar o cômodo claustrofóbico, com velhas cortinas de estampas floridas e uma cama de viúva ocupando sozinha o centro do retângulo acarpetado? Antes mesmo das nove da noite já estão espremidos nela. Ela se lembra de quando era criança e às vezes passava a tarde inteira sem se levantar, albergada do mundo num espaço só seu, capaz de se metamorfosear infinitamente. Se pergunta se teria perdido a habilidade de suportar o isolamento, mas admite que já naquela época ele só era possível porque ao longe se ouvia o barulho da louça na cozinha ou uma sombra sob a porta do quarto denunciava alguém no corredor.
Às vezes ele fica acordado até mais tarde. Ela não sabe em que ocupa o seu tempo, mas nada a conforta mais do que supor que seu olhar de vez em quando se pousa sobre ela enquanto está dormindo. O quanto esse sentimento é recíproco é uma interrogação: o quanto ele precisa dela também? Será que ele conseguiria fazer isso sozinho?