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As noites de Hong Kong são feitas de neon
As noites de Hong Kong são feitas de neon
As noites de Hong Kong são feitas de neon
E-book67 páginas49 minutos

As noites de Hong Kong são feitas de neon

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Sobre este e-book

A baía de Hong Kong, a fronteira do Brasil com a Argentina, Polónia, a Casa do Sol: contos que ziguezagueiam entre o lá e o aqui, cerzindo passado e presente, os temores e o desejo. Os contos e ensaios do autor Caio Yurgel, um brasileiro atualmente a morar na China, já foram publicados em três idiomas, receberam prémios no Brasil e foram indicados a outros na Alemanha e em Portugal. O livro 'As noites de Hong Kong são feitas de neon', o seu segundo trabalho de ficção, foi selecionado como finalista pelo Prémio Autor 2018.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de jan. de 2020
ISBN9789898938534
As noites de Hong Kong são feitas de neon

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    Pré-visualização do livro

    As noites de Hong Kong são feitas de neon - Caio Yurgel

    © Editora Gato-Bravo 2019

    © ilustrações, Frank Tang Kai Yiu

    Não é permitida a reprodução total ou parcial deste livro nem o seu registo em sistema informático, transmissão mediante qualquer forma, meio ou suporte, sem autorização prévia e por escrito dos proprietários do registo do copyright.

    editor Julio Silveira

    coordenação editorial Paula Cajaty

    capa Sobre ilustrações de Frank Tang

    isbn 978-989-8938-52-7

    e-isbn 978-989-8938-54-4

    1a edição: setembro, 2019

    gato

    ·

    bravo

    rua de Xabregas 12, lote A, 276-289

    1900-440 Lisboa, Portugal

    tel. [+351] 308 803 682

    editoragatobravo@gmail.com

    editoragatobravo.pt

    Índice

    como fazer amigos

    veni, vidi, amavi

    o vendedor de água

    as manhãs de kowloon

    o fantasma de wan chai

    a rebelião dos boxers

    O OVO E A PEDRA

    o grande confinamento

    Epílogo - memórias de um Sobrado português

    agradecimentos

    como fazer amigos

    Vim para Hong Kong como quem vai à procura de algo que nunca perdeu, como quem revive uma memória de infância roubada de um filme de artes marciais que nunca assistiu. Olho bem para os dois lados antes de atravessar a rua. Não sou eu que estou aqui. Sempre que escrevo tenho a sensação de ser um bicho que está sendo caçado. Os carros vêm no sentido contrário, eu olho bem para os dois lados. Não sou eu que estou aqui, são os meus olhos.

    Em 1987 minha família cruzou a fronteira a bordo de um caminhão. O caminhão era tudo o que tinham, o caminhão e um relógio de parede que minha avó carregou no colo a viagem inteira. Alugamos um velho sobrado português que dividia um pátio com outro velho sobrado português. No velho sobrado português do outro lado do pátio vivia uma família de poloneses que minha avó desprezava unanimemente. Que no juegues con esos polacos, me advertia, minha mãe havia morrido no parto. Meu pai e meu avô eram caminhoneiros, passavam semanas e por vezes meses na estrada. Minha avó se ocupava da casa, havia pendurado pesadas cortinas de veludo nas janelas que davam para o pátio, as mesmas cortinas vermelhas de nossa antiga casa em Rosário. Ao lado da lareira posicionou uma mesa e uma cadeira e era dali, as cortinas arredadas um dedo para que uma fresta de sol iluminasse seu rosto, que ela escrevia a meu avô longas cartas em cirílico.

    A casa está caindo aos pedaços, minha avó escrevia em cirílico, e para mim dizia, para mim ou para a casa ou para si mesma: Llegamos a este país como hace trece años llegamos a Argentina: con una mano atrás y otra adelante. Salvo o eventual e monossilábico cartão-postal, meu avô nunca respondia às cartas em cirílico, minha avó nunca abria as cortinas mais que um dedo. Meu pai sabia se virar em russo por força da necessidade, mas meus avós não lhe tinham ensinado a ler nem a escrever. A mim sequer me ensinaram a falar, e me deram um nome indígena para evitar que um dia eu voltasse aonde nunca havia estado. O cirílico era sua língua secreta, o disfarce que haviam encontrado para rememorar sua Petersburgo natal sem nunca dizer a palavra. Eu, índio de olhos claros, espiava o mundo pelas frestas que eles deixavam abertas, assombrado.

    Meus avós nunca retornaram à sua Petersburgo natal.

    Minha avó se recusava a comer feijão porque deixava um rastro de sujeira no prato. Somos pobres, pero honrados, repetia, seu rosto duplamente triste quando me pegava jogando futebol com os poloneses no pátio. Pobres, pero honrados. Li meu primeiro Dostoiévski aos doze anos de idade. Estou convencido de que tudo o que aconteceu na minha vida desde então tem a ver com isso.

    Meu melhor amigo foi também meu primeiro e ele morreu de câncer aos trinta anos. Câncer de fígado. Meu primeiro e melhor amigo era negro. Quando minha avó se inteirou desse fato, ela não apenas parou de reclamar dos poloneses, como também passou a chamá-los pelo nome. "¿Por qué no te vas

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