Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

perigosas obsessões
perigosas obsessões
perigosas obsessões
E-book114 páginas1 hora

perigosas obsessões

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Enxutos, tensos e perturbadores, os contos deste livro retratam as distorções do amor como fontes de violência. O belga flamengo Bob Van Laerhoven, vencedor do USA Best Book Award 2014 na categoria Mistério/Suspense e o prêmio Hercule Poirot por seu polêmico romance, Baudelaire’s Revenge, associa neste livro o destino de vários indivíduos a profundas mudanças sociais. A versão em inglês desta coletânea (publicada nos EUA pela The Anaphora Literary Press em 2015 sob o título Dangerous Obsessions) foi escolhida a “melhor coletânea de contos de 2015” pelo The San Diego Book Review.  Van Laerhoven foi escritor de viagens em áreas de conflito de 1990 a 2003. Ecos dessa experiência ressoam nestes contos eletrizantes de conflito, que se passam na Argélia arrasada pela guerra dos anos 1950, em um campo de concentração para ciganos da Segunda Guerra, em uma cidade fronteiriça do Peru onde roubar é uma arte mortífera, na Libéria durante a guerra civil dos anos 1990, e no Congo belga durante o levante sangrento dos anos 1960. Omnia vincit amor: o amor vence tudo, diz o ditado. Menos as nossas Perigosas Obsessões.

IdiomaPortuguês
EditoraBadPress
Data de lançamento10 de nov. de 2017
ISBN9781507198223
perigosas obsessões

Relacionado a perigosas obsessões

Ebooks relacionados

Suspense para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de perigosas obsessões

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    perigosas obsessões - Bob Van Laerhoven

    UM CORAÇÃO NÃO BATE POR LETRAS

    Fotos? Está aqui para tirar fotos do meu quarto, de mim?

    Para um livro, é isso? Quem diria! No passado, lá na Argélia, isso me arrancaria um sorriso.

    Dê uma olhada naquela gaveta ali, à direita, embaixo. Está vendo aquela medalha? Não dá nem para imaginar, hein, um velho, um sasa como eu, já nos seus setenta, em plena soneca no doce conforto do lar Saint-Lambert em Bruxelas. Mas estou falando sério: eu um dia fui boudin, um mercenário, naquela guerra suja no final dos anos cinquenta. Faz muito tempo, tanto tempo!

    Minha voz é como uma serra circular hoje em dia, excesso de cigarro, entende, mas naquele tempo — mesmo um stupide belge! — eles me deixavam comandar o coro quando a Legião partia para as batalhas. Um belo barítono!  Bons tempos, bons tempos.

    Nous sommes des degourdis,

    Nous sommes des lascars,

    Des types pas ordinaires,

    Nous avons souvent notre cafard,

    Nous sommes des Legionnaires.[1]

    ***

    Sobre o que é esse seu livro? É sobre os pensionistas deste fino lar, aqui reunidos para apodrecer em paz? Diga a verdade. Hm? Tem muita coisa boa neste lugar, isso é fato. Quando estou na cadeira de rodas, no jardim, me chama atenção o jogo de luz mutante que se cria entre o vidro e as pedras. Nunca tinha pensado em um prédio como algo bonito antes, entende? Um prédio era um lugar onde o inimigo poderia se esconder, um local do qual desconfiar. Mas agora, jovem, consigo ver meu passado na luz que se reflete em todos estes vidros. O que mais tem um velho, exceto um passado? O rapaz se incomodaria de abrir a porta? Sim, o máximo que puder. Está vendo aquele mural na parede do corredor? Aquela cena tropical com palmeiras e cores brilhantes e uniformes? Era exatamente assim que eu imaginava a Argélia quando lá cheguei, ainda um jovem soldado. Mas o que vi estava muito longe desse sol, desse mar e dessa areia aí na parede. Os jovens de hoje têm uma Trindade Sagrada — sol, praia e sexo; nós não sentíamos nem o cheiro. As plages eram magníficas, mas ficávamos presos no interior como gado, e era outra a Trindade Sagrada que nos esperava, a Trindade Sagrada da guerra: sangue, merda e medo. Acredite, rapaz, a sujeira, você nem imagina o que era. A nossa brutalidade e a brutalidade deles, juro por Deus que minha garganta queima só de pensar. Dê uma olhada naquele armário, por favor; pegue dois copos, a garrafa está na prateleira de baixo. Vamos tomar um trago dos bons. É coisa fina, pode ficar tranquilo, que um légionnaire sabe diferenciar.  Fazíamos questão de nos manter bem regados mesmo na Argélia, e depois de uns bons goles meu amigo Bisserund e eu começávamos a cantar:

    Pigalle, Pigalle,

    das ist die grosse Mausefalle,

    mitten in Paris.[2]

    ***

    É isso mesmo, o sargento Bisserund era um soldado alemão, um Jerry, e um Jerry de alto escalão; salvou minha pele mais de uma vez, aquele Bisserund com rosto quadrado e constituição pequena e compacta. Nosso grupo tinha outros chucrutes, uns baitas filhos da puta, posso lhe dizer. Nosso instrutor-chefe, um canalha de marca maior, era ex-oficial da SS. Os mandachuvas da Legião gostavam daquele tipo; eles davam os melhores instrutores. Bisserund era um sujeito estranho, juro por Deus. Qualquer tempinho livre, passava com a cara enfiada num livro. Vivia prometendo me ensinar a ler e escrever. Mas, quanto mais velho, mais difícil fica. Eu já tinha vinte e dois anos e não lia uma palavra. Queria o quê? Cresci numa fazenda em Henegouwen, e quando finalmente meu velho me deixou ir à escola — e com relutância, vá por mim — os alemães já estavam na porta. E, quando a guerra acabou, tínhamos que dar duro na fazenda para colocar comida na mesa. A escola era perda de tempo. Bisserund planejava compensar esse histórico me ensinando a ler, me abrindo para o mundo das letras. Mas estávamos no grosso da guerra e o general Massu nos enviava a uma missão após a outra. Então não deu em nada. Jean-Claude, Bisserund costumava dizer, Jean-Claude, você não tem as mãos para isto, tem patas e rabo de urso; isso aí são patas, não mãos, nunca vão conseguir segurar uma caneta. Você se parece um pouco com Bisserund, se me permite dizer, esses cachos e, bem, esse nariz empinado. Bisserund, meu melhor amigo... É uma semelhança bem grande, viu, mas você é muito mais jovem, é claro. É fotógrafo, tem um olhar treinado. Bisserund também tinha, acredite se puder. E esse olhar dele vinha a calhar nos momentos mais impossíveis. Por exemplo, uma noite, no meio do deserto, não muito longe de Colomb Béchar, quando nos vimos cercados por beduínos que atiravam contra nós como loucos, com seus rifles de carregamento frontal. À noite, suas mulheres, com aquele choramingo incessante, quase nos tiravam do sério. Depois de algumas horas, meus nervos já estavam em frangalhos. Minha vontade era descer a lenha naqueles cabeças de pano, meter bala até só sobrarem pedacinhos, esburacá-los inteiros com a minha baioneta, mas aí lá vinha Bisserund com aquele sorriso enrugado dele: Olhe para o céu, patas de urso, dizia ele, está vendo as estrelas, fogos-fátuos sobre veludo? Foi por pouco que não meti bala nele, mas sua expressão era tão marota que lhe dei um tapinha nas costas, quase engasgando para não rir, e saí dizendo que ele era meu amigo, a porra do meu melhor amigo.

    ***

    A beleza, rapaz, como se diz: é preciso ter olhos para vê-la, e isso ele tinha, o Chucrute. Minha vida toda, tive mais olhos para as merdas, com o perdão da palavra. Só Deus sabe por que Bisserund se alistou na Legião, nunca falamos sobre isso, mas ele tinha estudado Medicina anteriormente e queria escrever um livro sobre as nossas experiências quando voltássemos para casa. Nós o chamávamos de sargento Baraka, que quer dizer imortal em árabe. Ele sobreviveu a tudo: ataques de morteiro no deserto, bombardeios em Argel, batalhas armadas contra os militantes mal-encarados da Frente de Libertação Nacional. O sargento Baraka podia estar coberto de sangue, cortes e lacerações, mas ainda assim ficava de pé, firme como uma rocha. Nenhuma bala tinha uma inscrição com o seu nome. Olha, eu tenho uma foto dele em algum lugar por aqui; deixe-me ver... ali está. Que tal? Consegue ver como se parecem?  Um pouco, pelo menos? Esse rosto angular, esse nariz... Talvez eu esteja vendo coisas, não enxergo direito mais. Mas até sua voz... E é claro que ele adorava tirar fotos. Você fotografa prédios, ele gostava de mulheres... Também gosta de fotografar mulheres? Ah, entendo. Os homens são todos iguais, mesmo na minha idade. Tem uma enfermeira aqui, crème-chocolat, uma coisinha linda... Nós não facilitamos a vida delas, com o nosso bafo e outros, digamos... odores. Os gases nos corredores deste lugar às vezes são piores do que uma latrina no deserto... Envelhecer não é nada além de tristeza; você ainda é jovem, aproveite a vida, que voa mais rápido do que uma bala... Aquela enfermeira, aquela gazelinha simpática, me lembra uma moça de Argel que partiu meu coração... Ai, ai, ai, é uma beleza essa menina, mas na minha idade a beleza é uma ratoeira: o aço quebra o seu pescoço de rato, você vê o queijo a um centímetro do alcance, o cheiro o intoxica, sua vida

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1