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Um Pássaro, Um Avião
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Um Pássaro, Um Avião
E-book191 páginas2 horas

Um Pássaro, Um Avião

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Sobre este e-book

O que acontece quando um ventríloquo se vê manipulado pelo seu boneco? Ou quando o ventríloquo descobre que se tornou uma espécie de autômato, e que precisa ser urgentemente manipulado para se salvar? Pois é, a vida tem dessas coisas... Mas esta não é uma história com super-heróis? Sim, eles estão aqui, mas de um jeito que você nunca viu (ou que vai achar estranhamente familiar...). Autor de Peles, seu romance anterior, Roque de Ávila Jr. apresenta agora uma obra que, embora ficcional, apresenta nítidos traços autobiográficos, num estilo ágil, vibrante e sempre poético.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento18 de set. de 2017
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    Um Pássaro, Um Avião - Roque De Ávila Jr.

    Créditos

    Copyright © 2017: Roque de Ávila Jr.

    Todos os direitos reservados.

    Proibida a reprodução total ou parcial deste livro, através de quaisquer meios, sem a autorização formal do autor.

    A história e as personagens deste livro são fictícias, na medida em que a realidade influencia o nascimento de toda ficção. O viés autobiográfico situa-se nas alegorias e metáforas, de modo a transmitir a poética das experiências vividas.

    ISBN: 978-85-93730-01-6

    Capa e Ilustrações:

    Roque de Ávila Jr.

    Publicação:

    Roque Pires de Ávila Jr.-ME

    roque.avila@gmail.com

    Agradecimento

    Agradeço a Yakko Sideratos, famoso ventriloquo brasileiro, que a um ilustre desconhecido (que, no caso, era eu) deu a linda demonstração de boa vontade ao conceder uma entrevista via Skype, em plena avenida de São Paulo, enquanto aguardava a chegada do guincho para o seu carro que havia enguiçado ali. Prova de que, até quando o artista não está a comandar a arte, a arte comanda o artista.

    Roque de Ávila Jr.

    epígrafe

    "Je veux vivre

    Dans ce rêve qui m’enivre,

    Ce jour encor,

    Douce flamme,

    Je te garde dans mon âme

    Comme un trésor!"

    "Quero viver

    Nesse sonho que me embriaga

    Este dia novamente,

    Doce chama,

    Eu te guardo na minha alma,

    Com um tesouro."

    (Do libreto de Jules Barbier e Michel Carré,

    para a ópera Romeu e Julieta, de Charles Gounod,

    baseada na peça homônima de William Shakespeare)

    Um Pássaro

    Médio e indicador eram pernas. O tronco, a imaginação supunha. Entre corridas e câmeras lentas, um voo gratuito facilmente acontecia. A tua cabeça, Benedito, pendia como bêbada. Mas não estava. Apenas dava ao olho um steadicam qualquer.

    Digo olho, no singular, porque só um tu usavas. É que, este, tu o conservavas fechado, para que o outro desse um melhor simulacro de câmera cinematográfica.

    Quando querias mais ação, bastava convocar a outra mão, que não se obrigava a parecer qualquer bípede. Algo aranha já podia garantir lindas brigas entre vilão e mocinho. Da tua boca, saíam os ruídos, explosões e falas, estas nada profundas, face ao pouco tempo em que o autor supremo permaneceria no banheiro. Mas a trilha sonora era farta, frequentemente épica, munida de coral e orquestra completos.

    De fato, para um inoportuno observador seria uma visão ridícula, daquelas que causam vergonha alheia.

    Mas alguém como tu, Benedito, não se atém aos bastidores. Não vê as coisas do ponto de vista superficial. A mente tudo isso filtra.

    Assim, o que em ilusão percebias, era somente um resultado, primorosamente acabado, digno de orçamento milionário.

    A consciência de que havia se passado um tempo razoável desde a consumação das demandas fisiológicas, fazia aquele universo se dissolver em poucos instantes. Pressionar o botão da descarga era o ato de se reconectar com uma dimensão onde mãos são apenas coleções de dedos. Um mundo hostil que obriga a se desinfetarem com água e sabão, aquelas que, segundos antes, eram autênticas criaturas de carne e osso, incumbindo-as de logo em seguida abraçar a maçaneta suja.

    Lembras-te disso, Benedito? Aposto que foi através dessas meninices que condenaste o teu destino a eleger vida na ponta dos dedos. Graças a elas, ainda que hoje pareçam bobas, eu reconheço que existo, me agito, falo e te acompanho no braço, empoleirada, embora seja notório que eu também esteja condenada a depender de teus ânimos para me fazer expressar.

    Tanto que te sigo aqui, sentada contigo neste calçadão movimentado da rua Treze de Maio, neste sol escaldante, ao lado de mendigos, vendedores ambulantes, músicos de rua, cruzados evangelistas e as eventuais prostitutas que buscam na luz diurna o que a treva não parece ter sido capaz de suprir.

    Lembras-te deste sanfoneiro, aqui ao nosso lado?

    Ei sanfoneiro, você sabe tocar aquela música Toujours Aimer? O Benedito aqui certamente acha que você seria capaz de tocá-la, mas não supõe que tu a conheces. Há muitos anos este ventríloquo já te via a tocar sentado neste mesmo calçamento, ainda muito jovem, assim como o mesmo Benedito. Desde aquela época já chamava a atenção a o fato de ser cego e sanfoneiro, como se houvesse algum cabimento em achar isso tão espantoso, afinal nada de exótico há em cegos tocarem sanfonas.

    Mas vocês nunca se conheceram... o que posso resolver de pronto, quer ver?

    Benedito, meu querido, pelo que sei ainda possuis dentes, estou certa?

    - Sim!

    Então, por caridade, escancara esse teu sorriso branco para o rapaz da sanfona. Ele já está quase zombando do meu falatório!

    - Olá.

    Olá? Isso não é conversa! O rapaz vai te achar antipático!

    - Ele vai te mandar calar a boca, isso sim.

    Veja Dito! Ele sorriu de novo!

    - Isso significa educação. Na cabeça dele, você é uma tagarela com voz de taquara rachada.

    Benedito do meu coraçãozinho oco. Apresenta-te a ele, conte um pouco sobre a sua vida eletrizante...

    - Não vejo nada de tanta emoção para contar. Aliás, acho que minha vida foi muito mais medíocre do que eu a princípio julgava poder suportar.

    Vamos! Sem atrito, Benedito! Nem que seja só para passar o tempo! Nós dois estamos sentados a horas neste calçadão azedo. Tua cara já está parecendo um caqui maduro, por causa do sol.

    - Esqueça, não quero falar da vida de ninguém, muito menos da minha.

    Ouça Dito!

    Reconheces a música que ele começa a tocar agora? On n'a pas dans le coeur de quoi toujours aimer....

    Quem manda subestimar o sanfoneiro? Achavas que o moço dominava somente o forró? Pois ele não só conhece a música que disseste, como também a toca divinamente!

    Ei meu povo da Treze de Maio: alguém, por favor, poderia mandar chamar a Edit para vir aqui cantar, mesmo que ressurgida dentre os mortos?

    Que triste, Dito, ninguém dentre os passantes se digna a olhar para um trio em que, de um lado, há um sanfoneiro cego tocando só mais uma das suas infinitas execuções, e, de outro, um ventríloquo de hesitantes palavras, a ouvir o seu surrado boneco...

    Como foi que chegamos aqui, Benedito? Em que ponto aquela criança decidiu que brincaria com as mãos pelo resto de sua vida?

    - Não se esqueça de que herdei você do meu pai...

    Isso é fato!

    E é certo também que haverá o eterno mistério sobre o verdadeiro retrato de teu pai, Alberto Passarinho. Nunca se saberá com clareza onde ou quando ele conseguiu o boneco que, a propósito, sou eu.

    O que se sabe, de fato, é do pouco uso que fez do personagem.

    Provavelmente, os pais dele não abraçassem saltitantes a ideia de um ventríloquo na família. Talvez ele próprio nutrisse algum desprezo ou até uma vergonha de tal arte. Ventriloquismo não cura doenças, não ergue edifícios, não advoga, não gerencia, não alimenta, não limpa, não abastece...

    Habita a esfera do exótico, do interessante. Algo visto até com involuntária admiração, sendo mescla de virtuosismo e dom divino.

    Alberto, por seu turno, dispunha-se a reprimir a centelha providencial, ocultando-a sob o manto seguro dos trabalhos enfadonhos. Quando tu nasceste, ele trabalhava numa empresa de materiais de construção, consolidando a triste profecia familiar dos tempos de seu avô, João, que já sabia ser o último Passarinho a testemunhar os tempos de fazenda e riqueza, reinados nas bandas de Amparo.

    Mas, ao que parece, os surdos ecos do sobrenome bastaram para render a Alberto a chance de não ser tragado pelo trabalho braçal. Assim, dada a sua boa índole e mansidão, rapidamente se tornou pessoa de confiança do dono da empresa, o senhor Bórgia.

    Cuidava de grande parte dos trâmites burocráticos da firma, o que até hoje não desconfio se era muito ou pouco serviço.

    Apesar do menor glamour em relação às atividades artísticas, valia para Alberto o respeito de desempenhar uma função com som de generosidade hierárquica. Colocar comida dentro de casa sempre foi mais honorável quando através de funções ordinárias. Fazer o mesmo com os ganhos oriundos do ventriloquismo soava, de fato, como uma grave ofensa àqueles que possuíam um trabalho de verdade.

    Assim, meu caro Benedito, podemos dizer que teu pai estava indo muito bem e por um caminho socialmente louvável.

    Apesar do talento que saltava até aos olhos mais néscios, ele me relegava à condição de boneca usada, me esquecendo empacotada e escondida sobre o topo do guarda-roupas, oculta até por quinquilharias mais novas, recebidas na ocasião do casamento.

    Sua esposa, Flora, não se queixava daquele curioso acervo.

    Mas, por mais que respeitasse os dons do parceiro, nada de mal seria se ele, num repente, desse um fim àquele desconjuntado boneco, presença dubiamente adormecida na penumbra do quarto.

    Todo o mundo ao redor de Alberto lhe cobrava o papel de pai de família. Em lento assalto, amigos e parentes o apalparam, modelaram-lhe as juntas e sopraram nas suas narinas as virtudes da rotina do trabalho honesto. Ele, criatura educada e avessa à ideia de se apartar do bando, entregou-se aos caprichos das entidades queridas e se elegeu, com naturalidade invejável, um homem comum.

    Era muito agradável conversar com ele. Apesar da timidez, o seu modo acanhado e sorridente lhe dava uma habilidade muito graciosa para contar piadas de sucesso nos bate papos informais, muitas delas, como rezava impune o populacho de então, ricas em preconceitos de toda ordem: Sabe aquela do preto, do japa e o portuga? E aquela da bicha loira com o Salim?

    Ele não percebia, todavia, a inconsciente tristeza que o tomava ao ver que, terminado o momento de descontração, as pessoas voltavam aos seus afazeres, como se nada de pândego houvesse ocorrido antes.

    Inicialmente ele devia achar espantoso quando alguém, em sã consciência, deixava de se entregar prolongadamente às atividades criativas, sucumbindo sem reação ao retorno para o mundo normal das insossas obrigações cotidianas.

    Contudo, após o íntimo e inconfessável acesso de indignação, vinha-lhe a solidão e a lembrança de que ele também possuía as tais obrigações. Então, rapidamente, jogava sobre si as vestes da realidade inequívoca.

    Ao fim, tudo terminava bem. O dia trabalhado preenchia o vazio das planilhas, de sorte que, ao fim do mês, o pagador acatava com alguma simpatia a farta coluna de assinaturas, retribuindo ao seu dono o acordado soldo, sem desfiar altas objeções.

    Alberto, nesse momento, ridicularizava ou até se esquecia daqueles súbitos desconfortos que seu espírito por vezes lhe impunha, restando na espinha um nó de vergonha, qual uma espécie nova de pecado, a que chamariam rapidamente de irresponsabilidade.

    Apesar dessa conquistada entrega pessoal ao dever, pairava junto ao seu espirito a ilusão de que, após intermináveis horas de trabalho, pudesse enfim se encontrar novamente com os colegas de jornada e, todos juntos, desfrutassem de uma boa conversa, acompanhada de uma cerveja gelada e uma porção de alguma coisa frita.

    Nessa dimensão especial, tudo ficava perfeito. O álcool dava ao mundo uma aragem festiva e encolhia os tapumes que a razão em cada um antes esquadrinhava. Todos ficavam mais iguais e um sentimento de irmandade começava a fluir, unindo na alegria o pequeno grupo à mesa e espargindo tal regozijo a todos os povos da Terra. Nessa liturgia, bastavam o sermão da montanha de cevada e o batismo de aguardente, para que toda alma se elevasse em salvação, quase sempre ao som dos hinos arrebatadores das paradas de sucesso, casualmente executados por algum fiel talentoso ao violão.

    Tal programa, concreto e trivial em seus tempos de solteiro, se tornara, de repente, mero sonho, que se extinguia à lembrança de que esposa e filho o aguardavam em casa. Era quando enfim se decretava feliz.

    Alberto amava Flora, mulher companheira e instrutora de datilografia. Além de colaborar com metade do rendimento do casal, ela ainda conseguia cuidar da criança, levando-a consigo ao local onde trabalhava, para a felicidade das suas colegas criançólatras.

    Que menino lindo foste, Benedito! Teu pai te amava mais que tudo. Via em ti uma esperança de não sei o quê! Todas as suas escolhas se pautavam na manutenção dessa família, talvez para que ela um dia pudesse de algum modo empreender uma revanche contra tudo aquilo a que ele renunciou por ela. A paternidade traz em si a sensação de que a morte será trapaceada, como a árvore que, deitando no solo sua semente, busca a estratégia de dividir-se para conquistar.

    Ao nascer, preencheste toda fresta da casa, suscitando nos dois um amor novo, incomensurável, indescritível, assustador até. Uma urgência de cuidado, um peso austero em cada decisão trivial, num mundo de causas e efeitos tão fatais que a razão, de medo, fugia cagona.

    Subitamente, a displicência inicial da vida a dois se tornou impraticável, diante daquela pequena criatura que cobrava inadiáveis responsabilidades, embora uma alegria incontrolável frequentemente inundasse as almas genitoras, diante da visão de um sorriso banguela e os inesperados sons dos primeiros

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